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Big Little Lies e a importância das mulheres que contam suas próprias histórias

Segundo o Dicionário Informal, narrativa é um “relato, exposição de um fato, de um acontecimento”. Sendo assim, a narrativa considerada feminina é aquela produzida por mulheres — e muitas vezes para elas —, abordando temas diversos.

Se você é mulher, consome entretenimento e se interessa pela representatividade feminina nas diversas mídias, deve estar familiarizada com os obstáculos que as mulheres e suas histórias enfrentram ao longo do tempo. Romantização do estupro, Princípio da Smurfette, Manic Pixie Dream Girl e demais estereótipos modernos já foram discutidos em muitos artigos, além de problemas mais tradicionais do mundo real, como salários desiguais para atores e atrizes, assédio sexual em sets de filmagem, etc.

Consciente desse contexto e pronta para transformá-lo, Reese Witherspoon, criadora da produtora Pacific Standard, que possibilitou filmes como Livre e Garota Exemplar, disse:

“Por 25 anos, eu tenho sido a única mulher nos sets de filmagem em que trabalhei, eu não tinha outras mulheres com quem conversar. Eles chamam isso de Síndrome de Smurfette, porque ela tem milhares de Smurfs ao redor dela, mas ela é a única garota. Quem foi que deu à luz a tantos Smurfs? De qualquer forma, é tão revigorante poder passar um tempo com colegas mulheres. As coisas têm que mudar, nós temos que começar a ver as mulheres como elas realmente são. Nós temos que ver as experiências das mulheres, mesmo que elas envolvam violência, abuso sexual, sejam histórias de maternidade, romance, infidelidade ou divórcio. Nós precisamos ver essas coisas representadas. Nós aprendemos muito com a arte, como poderemos aprender com essas experiências se nunca as vemos refletidas? Eu decidi produzir Big Little Lies porque estou cansada de ver mulheres incrivelmente talentosas interpretando sempre ‘a namorada’ ou ‘a esposa’ de alguém em papeis ingratos. Eu cansei. Então é um privilégio muito grande poder chegar até essas mulheres com um roteiro pelo qual eu tenho profundo orgulho de trazer.”

Assim nasce a grande aposta da HBO para 2017, série homônima baseada no livro Big Little Lies (Pequenas Grandes Mentiras no Brasil), de Liane Moriarty, lançado em 2014.

Com grande investimento na divulgação, com teasers enigmáticos prontos para fisgar o telespectador, a trama de Big Little Lies parecia misturar o universo de mulheres luxuosas a intrigas familiares e a cena de um crime aparentemente sem solução. Mas, ao assistir aos três episódios disponibilizados até o momento, é possível enxergar mais substância repousando entre a linha do material, mais obscuro e corajoso dos que os trailers prometiam.

Sentados no banco de carona das rotinas de Madeline (Reese Whiterspoon), Celeste (Nicole Kidman) e a recém-chegada Jane (Shailene Woodley), mães de primeiranistas da Escola Pública de Monterey, acompanhamos um pouco da cultura e vida de uma cidade cujas praias azuis e mansões luxuosas enchem os olhos. Mas, além das pequenas farpas trocadas entre essas mulheres com Bonnie (Zoe Kravitz) e Renata (Laura Dern), envolvendo quase sempre as relações familiares e jogos de poder, somos informados sobre um assassinato brutal cometido aqui. Não sabemos quem matou, quem morreu ou por quê, mas temos uma ideia de quando e onde, podendo acompanhar a detalhada investigação policial baseada nos depoimentos de coadjuvantes que mais parecem espectadores da trama, expondo teorias e tomando lados conforme o show avança.

Por ser vendida inicialmente como uma narrativa baseada em conflitos e amizades femininas, maternidade e família, a série pode acabar sofrendo uma categorização automática de uma parcela do público no rótulo de “narrativa feminina” ou “narrativa de maternidade”, que pode ocasionar afastamento e até rejeição. Quem não consome histórias de mulheres não vai se interessar por Big Little Lies, mesmo com a trama de mistério e assassinato, já que esta é uma série feminina que não recusa ou disfarça esse título. Na verdade, orgulha-se dele — e é aí que pode morar o seu fracasso ou sucesso magistral.

Somos a geração que recusa papéis familiares tradicionais, não casa, não compra casa, não tem filhos. Nos dizemos feministas, mas muitas vezes não entendemos muito bem o que isso quer dizer. Feministas querem acabar com o casamento? Feministas podem casar e ter filhos, como na época das nossas mães? Ser uma esposa é considerado um ato feminista ou retrógrado?

Big Little Lies não quer servir respostas prontas a essas e outras questões que possam surgir no caminho. Em vez disso, contenta-se em simplesmente contar histórias sobre mulheres privilegiadas e vitimizadas, inimigas de umas e amigas de outras, conterrâneas e forasteiras, mães, donas de casa, donas de empresa, segundas mães, filhos e filhas. Nuances sobre sua coragem, força e humanidade estão lá, mas sem textos explicativos. A série parece querer nos dizer o tempo todo que mães têm medo, erram, fazem sexo, sofrem abusos e nem sempre querem ser mães, mas são mulheres em tempo integral.

Para isso, elas não precisam rejeitar papéis tradicionais e núcleos familiares, não precisam ser “duronas” ou  masculinizadas, não precisam chutar uma bundas se não quiserem. Mas se quiserem, também podem.

Em determinada cena, fundamental para o enredo, uma mulher conta a outra sobre uma situação trágica de violência de gênero em sua trajetória. Alguns momentos depois, vemos a interlocutora parando o carro e chorando sozinha na estrada. Limpa as lágrimas, liga o carro e volta a dirigir. Não há narrações em off explicando o que aconteceu ali, pois o roteiro acredita que os espectadores e, principalmente, as espectadoras podem ter um momento de identificação silenciosa em paz.

É cedo para dizer, mas já vimos em outras grandes séries, como o maior fenômeno da HBO, Game of Thrones, que crimes desumanos como o estupro são utilizados de maneira banalizada, como ferramenta de roteiro, principalmente por roteiristas homens. Talvez este seja o grande diferencial aqui até o momento.

Big Little Lies, uma minissérie produzida e protagonizada por mulheres (embora escrita e dirigida por homens, mesmo sendo baseada em uma história criada por uma mulher — uma novela que segue se repetindo), e seus números de audiência, assim como a resposta da crítica e a repercussão ainda no terceiro episódio, que ainda guarda outros quatro para encerrar seu arco, mostram que nossas histórias estão começando a ser contadas como deveriam e, com alguma sorte, ouvidas e apreciadas também.