Categorias: LITERATURA

Para Mata Doce, com amor

Querida Luciany,

Escrever sobre Mata Doce não é tarefa fácil. Desde que acabei a leitura, fiquei pensando em modos de recontar a história contida no seu primeiro romance para que outras pessoas decidissem visitar o vilarejo a partir das minhas palavras. Fazer com que mais pessoas leiam seu livro é algo que quero muito fazer, porque sei a importância de uma leitura dessas: ela nos reconstrói de dentro para fora.

Quando recebi o livro, me encantei com duas coisas: primeiramente, o objeto é adorável. Há muito tempo eu não tinha em mãos um volume que vinha com cheiro bom de livro novo, capa hipnotizante, textura que sussurra segredos à pele e um som de páginas passando que acarinha os ouvidos. Talvez estes detalhes sejam as últimas coisas que você tenha escolhido ou acolhido no objeto-livro, mas as primeiras que conversaram comigo. O segundo encantamento veio da carta que chegou na mesma caixa. Um recado seu sobre a escrita de Mata Doce que me fez de imediato ter o desejo de trocar cartas — nem me lembro a quem foi e quando enviei a última que escrevi. E é por isso que escolhi falar sobre seu livro usando este formato, e abro a carta a quem mais a estiver lendo, na esperança de convencê-las a ler seu livro, ainda que não seja tarefa fácil falar sobre ele.

Mata Doce

Mata Doce é um feitiço que atravessa a nossa pele por meio dos sentidos. Eu vi a fotografia da casa das mulheres do Lajedo, senti o cheiro das rosas brancas, o sabor da cachaça que molhou a boca de alguns personagens, ouvi o som do silêncio, da música e dos gritos que cortaram o ar do lugarejo, senti — com a repulsa de alguém que não viveu a dor de FiIlinha Mata-Boi — a textura do sangue quente ainda fresco cobrindo minha pele. Os sentidos do corpo que sua escrita pronunciou me invadiram, mas foi o sexto sentido — aquele que não se explica e que passa não só pelo corpo — que me povoou de Mata Doce. As suas palavras, Luciany, me fizeram sentir a magia e o mistério do povoado — e isso, leitores outros desta carta, não cabe a mim explicar. Só se sente ao ler as palavras originais da obra.

Os capítulos acompanham a história de Filinha Mata-Boi, mulher que ganhou tal nome ao se ver em uma tragédia típica do Brasil profundo e, transformada por seu trauma e luto, torna-se outra. Maria Tereza, escritora de cartas que nunca chegam a seu destino, abandona a datilografia e abraça por vingança o cargo agourado para mulheres de matadora de bois da região. Filinha assume essa nova identidade para preservar intacta dentro de si a Maria Tereza anterior à perda do amado. Ao redor desta trama e atravessando a falsa linearidade do tempo, todos os acontecimentos vão formando para quem lê a geografia e a história pregressa, presente e futura do povoado na zona da mata baiana chamado Mata Doce.

As mães e madrinha da personagem, o noivo apaixonado, o coronel tirano, o gaiteiro vendedor de quebra-queixo e todos os habitantes do lugar parecem ser personagens que conheço, aqui no meu interior outro — de Minas Gerais — ainda que tenham o sotaque e as particularidades de quem nasce no interior da Bahia. Seu livro acompanha o destino de tanta gente que passa sem ser registrado, e a sua ficção registra as verdades deste local que é universal por ser único, ao mesmo tempo que está em todo lugar e em tantas histórias de dor, amor, brutalidade, delicadeza e vida pulsante mundo afora. A trama é intrincada e atravessada pela espiritualidade, costurada com o fio do destino feito da fibra de cada pessoa que ganha vida nas páginas do livro. Por isso é difícil falar sobre o que acontece no livro, mas espero que minhas palavras transmitam um pouco do que está no cerne da trama — a essência, essa coisa etérea que também é difícil explicar, mas é o que eu acho indispensável descrever a quem se interessa pela leitura de Mata Doce.

É admirável, Luciany, que alguém tenha escrito uma história com tamanha complexidade com protagonismo feminino diverso, um texto que dá lugar às mais variadas nuances do ser humano e condensar tudo isso com sensibilidade e particularidades que ainda assim podem conversar com todas as pessoas que se abrem ao abrirem também o livro. Como escritora, me sinto inspirada pelos temas e formas escolhidas para compor a trama e também pela linguagem própria carregada de poesia e realidade. Ao contar a trajetória de mulheres — um registro de miudezas que poderiam passar batido e serem apagadas da literatura — se conta sobre todo um universo infinito. E você fez isso de um jeito muito bonito e único.

Na carta que acompanhou meu exemplar do livro, você conta sobre as inspirações para alguns dos personagens e achei fascinante a forma como você ficcionalizou as memórias que um integrante da sua família carregava e tornou esse pedaço de história que é sua e dos seus, em algo nosso. Agora, todas as pessoas que correm os olhos e o coração pelas páginas de Mata Doce conhecem um pouco do seu universo. Isso é algo que todas as pessoas que escrevem acabam fazendo também, ainda que nem sempre abertamente como você o fez. Como leitora, agradeço por ter decidido compartilhar esse mundo que nos quebra um pouco, só para nos construir de outras formas.

Antes de encerrar a carta, preciso falar da minha personagem favorita: Chula, a cachorrinha imortal, onipresente e onisciente. Ao ler suas reações, posso jurar que ela sabe mais do que todos os personagens, todos nós leitores e, talvez, ouso dizer, mais do que você que a criou! Para mim, a cadela é a alma de Mata Doce — livro e povoado: ela segue a vida, desfrutando e passando pelo amargo e pelo doce do viver, com toda a sabedoria canina que nós humanos teimamos em desprezar e esquecer. E fico feliz que Chula tenha seguido bem ao longo da trama — temi por seu destino, porque a leitura tem momentos pesados e injustos e não queria nada ruim acontecendo a ela. Chula resistiu a todos os desdobramentos, talvez representando o nosso testemunho aos fatos e a própria humanidade em si — ainda que ela seja um cão. Assim como ela, nós simplesmente resistimos à história, não importa qual ela seja.

Toda a sensibilidade encontrada no livro e as visões tão belas quanto o voo das araras bordadas no céu parece ser muito particular sua — não li outras obras suas para comparar — e sinto que tamanho talento e visão única ainda tem muito chão na estrada das letras. Desejo sucesso a você e que Mata Doce ganhe o mundo para que o mundo ganhe o presente de ler Mata Doce.

Com admiração,

Anna Carolina Ribeiro


Mata Doce é o primeiro romance da Doutora em Letras Luciany Aparecida e foi publicado em 2023 pela editora Alfaguara.


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