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Meninas Superpoderosas: muito além de um programa infantil

Açúcar, tempero, e tudo o que há de bom (ou, na nova versão, tudo de maneiro). Esses foram os ingredientes escolhidos para criar a garotinha perfeita. Mas o Professor Utônio acidentalmente acrescentou um ingrediente extra na mistura: o Elemento X. E assim nasceram as Meninas Superpoderosas. Usando seus ultra-superpoderes, Lindinha, Florzinha e Docinho têm dedicado suas vidas a combater o crime, as forças do mal, e os padrões de gênero socialmente estabelecidos.

Por incrível que pareça, a primeira versão de As Meninas Superpoderosas nasceu no mesmo ano que eu, 1992, e foi ao ar entre 1995 e 2005. Essa história envolve tantos elementos surpreendentes que faltam dedos na mão para contar: um desenho nesse nível idealizado mais de 20 anos atrás, por um homem, abertamente revolucionário quanto aos padrões de gênero, que durou dez anos e continuou no ar com reprises até hoje (mais dez anos nessa conta). Um desenho animado que tem como protagonistas três garotinhas que ainda estão no jardim de infância e, ainda assim, conquistou audiências iguais de ambos os sexos, dos quais um quarto eram adultos, e rendeu milhões em produtos e mercadorias. Definitivamente temos algo de diferente aí. A única coisa que não surpreende nessa história toda é que elas estejam de volta, mais de vinte anos depois de que tudo começou.

Desde sua primeira aventura na televisão, as meninas atraíram atenção por desafiar os padrões de gênero de todas as formas possíveis e imagináveis. Temos três menininhas que salvam o dia de novo e de novo, um pai solteiro que assume o lugar tradicionalmente ocupado pela mãe, personagens que não se constrangem em usar roupas e acessórios tipicamente associados ao gênero oposto (normalmente homens cis se vestindo de mulher, o que levanta alguns outros questionamentos), um vilão andrógino, crianças que têm dois pais, vilãs que dão aulas declaradas de feminismo. É muito conteúdo subversivo para um programa “infantil” só. Tudo isso gerou incontáveis manifestações empolgadas e apaixonadas por todas as aulas de gênero que essas menininhas deram a todos nós.

Como toda unanimidade é burra, não deixou de haver quem apontasse também questões potencialmente problemáticas envolvendo as meninas. Como, por exemplo, o fato de que todo o poder no desenho emana dos homens: o Professor como criador, dispensando a figura feminina/materna na concepção; o Prefeito, que apesar de ser completamente inútil ocupa formalmente o cargo de chefia, enquanto na prática quem gerenciava tudo era a Srta. Bellum (dona de um raciocínio invejável, mas cuja única imagem visível era o corpo). Houve também quem apontasse tentativas do Professor de encaixar as meninas nos padrões vigentes com um quarto cor de rosa e a decepção dele com a independência das heroínas.

Pessoalmente, ainda que não ache que a primeira versão de As Meninas Superpoderosas esteja acima de quaisquer críticas, considero que o desenho está com destaque entre as melhores animações de todos os tempos no quesito conteúdo. Dificilmente vamos encontrar uma obra perfeita, mesmo porque unanimidade absoluta é algo virtualmente impossível de se alcançar, mas quaisquer críticas que eu tenha a fazer jamais vão abafar todos os méritos do programa. Para muitas de nós As Meninas Superpoderosas foram, sim, o primeiro contato com ideias de igualdade de gênero que nós não víamos em casa, e com o sonho de uma quebra de paradigma que saiu dos círculos de militância feminista para serem veiculado para crianças em todo o mundo. Não é à toa que diversos artigos científicos sérios foram escritos relacionando justamente o conteúdo do programa com o movimento feminista.

Florzinha, Lindinha e Docinho, com suas aparências inofensivas, representam uma ameaça real não apenas aos monstros da cidade de Townsville, como a toda a sociedade patriarcal: elas unem a vulnerabilidade de sua forma física com seus superpoderes para provar definitivamente que vulnerabilidade e força não são mutualmente excludentes, e, sim, complementares — duas facetas indissociáveis do ser humano.

Apesar de alguns apontarem que isso implicitamente desvalorizaria o considerado “essencialmente feminino” (açúcar, tempero e tudo o que há de bom), taxado como fraco e vulnerável em contraposição ao “essencialmente masculino” (elemento X), que daria força e coragem às personagens, ou que a aparência inofensiva das meninas pode indicar nossa incapacidade enquanto sociedade de lidar com a força e o poder femininos a não ser que ele esteja envolto em uma imagem de fofura ou sexualidade, acredito que essas análises pecam em confundir vulnerabilidade e fraqueza. Do meu ponto de vista, As Meninas Superpoderosas vêm derrubar nossa tentação de acreditar que para nós, mulheres, nos impormos como sujeitos fortes e independentes, precisaríamos negar nossa vulnerabilidade, quando a vulnerabilidade é, na verdade, um atributo essencial do ser humano (e não só das mulheres). A genialidade delas é justamente ressaltar que a força existe independente da aparência que se possua.

Enquanto considerarmos a vulnerabilidade como algo essencialmente feminino e, portanto, como uma fraqueza, permaneceremos todos (homens e mulheres) em negação de parte daquilo que nos faz seres humanos. Lindinha, Florzinha e Docinho não negam sua humanidade. Elas se machucam, erram e têm sentimentos, e nada disso faz com que elas sejam menos poderosas, menos heroicas ou menos capazes.

É muito interessante ver também como a nova versão do desenho, que estreou mundialmente no começo de abril, levou em consideração as críticas feitas à série original para corrigir pontos considerados problemáticos por alguns, ainda que possam parecer detalhes. Atualmente, o quarto das meninas não é mais todo rosa. Apesar de a idade delas não ser mencionada — nem na primeira versão, nem agora —, elas parecem um pouco mais velhas e mais maduras. Permanecem crianças e ainda não alcançaram a puberdade, continuando blindadas da sexualização que parece ser a sina de todas as super-heroínas, mas não estão mais no jardim de infância, são ligeiramente menos vulneráveis (mas ainda completamente honestas e humanas e estereotipadamente“femininas”).

Outro ponto importante de destacar sobre o programa é o fato de serem três meninas, e não uma só. Isso é importante não só por possibilitar a representação de características e personalidades completamente diferentes, sem que nenhuma delas seja menos poderosa ou menos mulher por causa disso, como deixa margem para a representação da sororidade na sua forma mais pura. Cada uma tem uma personalidade única, cada uma tem pontos fortes e fracos, elas divergem e elas brigam, mas estão sempre lá uma pela outra, se protegendo e — mais importante — são mais fortes juntas.

Em um dos episódios da nova temporada, por exemplo, as meninas têm dificuldades em derrotar um monstro contratado pela Princesa Maisgrana. Quando elas estão completamente encurraladas, aparece um grupo de amigas da Docinho para ajudar. “Ninguém mexe com as nossas irmãs, e isso inclui as irmãs das irmãs.” Existe mesmo mais alguma coisa que precise ser dita?

Finalmente, também é um ponto relevante o fato de que não temos a Srta. Bellum na nova versão. Vou sentir falta dela, mas de fato era uma personagem controversa. Apesar de positiva enquanto demonstração de que nenhuma mulher se resume ao estereótipo do objeto sexual sem rosto, e que a aparência física não implica falta de inteligência, a personagem também podia ser considerada como um reforço do estereótipo da mulher que usa o corpo para alcançar uma posição de poder e influência. Nem tudo são flores.

Para terminar, caso vocês não saibam ainda, fiquem sabendo agora: a nova versão do desenho tem na equipe de produção uma ilustradora que não apenas é mulher, como é brasileira. Ponto para nós.

2 comentários

  1. Texto incrível, mas discordo em um ponto: acredito que os “erros” apontados na verdade tenham sido planejados, talvez para refletir melhor a realidade. Mesmo com todos os avanços, nem nós, nem as personagens do desenho conseguiram fugir totalmente da estrutura patriarcal, e mas mesmo assim continuam se afirmando.

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