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A League of Their Own e a importância dos espaços de convivência LGBTQIA+

O ser humano é um ser social. Esta teoria remonta da Grécia Antiga, contexto no qual Aristóteles afirmou que a sociabilidade estava ligada à necessidade de outros membros da espécie para existir, assim como para se sentir pleno e feliz. Logo, o aspecto sociável da humanidade estaria conectado a uma carência que precisava ser suprida.

Além de Aristóteles, Marx e Engels também discutiram a respeito dessa questão considerando a vida política e destacando o individualismo como uma construção da burguesia, de modo que a essência do homem seria a coletividade. Então, ainda que exista uma organização hierárquica em algumas sociedades, o bem comum só pode ser pensado de maneira coletiva e isso se aplica aos relacionamentos de forma geral.

Embora existam teorias que contestem as visões dos três filósofos, os pontos de vista dissonantes se pautam em ideias em podem ser facilmente refutadas e, na verdade, estão ligadas a mecanismos de controle. Esse é o caso, por exemplo, de Thomas Hobbes, que destaca questões relativas à maldade humana, uma característica que impediria os seres de possuírem essa essência social descrita por Aristóteles, Marx e Engels. Porém, não é preciso uma observação muito demorada para perceber as contradições da teoria.

Atenção: este texto contém spoilers!

A League of Their Own

Um argumento que pode ser usado para contrariar essa tese é a importância que espaços de convivência têm para grupos marginalizados. Essa questão é ilustrada pelo sexto episódio da primeira temporada de A League of Their Own, série baseada no filme Uma Equipe Muito Especial (1992), de Penny Marshall. Tanto a série quanto o filme abordam o cotidiano de um time de baseball feminino que competiu na Liga Americana pela primeira vez durante a Segunda Guerra Mundial.

Neste sexto episódio, após seguir uma colega de time, Carson Shaw (Abbi Jacobson) se vê diante de um mundo novo: um bar clandestino frequentado pela comunidade LGBTQIA+. Neste espaço, além de descobrir que ela e Greta Gill (D’Arcy Carden) não eram as únicas sáficas do time, Carson descobre que uma boa parte da liga de baseball também possui sexualidades que se desviam da norma. Mas, mais do que isso, ela descobre que viver essa sexualidade é uma possibilidade, ainda que as dificuldades existam.

No contexto da série, ser homossexual ainda era ilegal nos Estados Unidos. Somente em 1962 a “sodomia consensual” seria retirada do Código Penal do país e antes disso, este “crime” era passível de punição com a pena de morte. À época da Segunda Guerra Mundial, a reclusão por cerca de 10 anos era a pena média e ela vinha acompanhada da exposição pública. Assim, aqueles que eram presos em locais LGBTQIA+, ou mesmo praticando algum ato considerado desviante da norma heterossexual, tinham o seu nome publicado nos jornais no dia seguinte. De acordo com as autoridades, esta era uma forma de proteger a população.

A League of Their Own

Embora tudo pareça um exagero, é importante lembrar que a homossexualidade somente deixou de ser categorizada como doença nos EUA em 1973, ano em que a Associação Americana de Psiquiatria passou a entendê-la da forma como é compreendida atualmente, sendo seguida dois anos mais tarde pela Associação Americana de Psicologia. Em A League of Their Own, esse tratamento à homossexualidade aparece na figura de Shirley (Kate Berlant), que começa a desconfiar que Joey (Melanie Filed) pode ser lésbica e imediatamente pensa em denuncia-la alegando que ninguém sabe se essa doença é contagiosa.

Então, quando Carson entra no bar ela não se vê somente diante de iguais: ela se vê diante de outro futuro. Nas suas conversas com Greta, um tópico recorrente era o que as duas fariam depois que o primeiro ano da Liga Americana de Baseball chegasse ao fim. Cada vez mais apaixonadas, elas não viam possibilidades de permanecer juntas, de modo que a conclusão era que Carson voltaria a viver com o seu marido “na fazenda” e Greta partiria rumo à Califórnia com Joey.

Entretanto, o simples vislumbre de outros iguais e de casais com uma vida inteira juntos foi o suficiente para que Carson se enchesse de coragem para pensar sobre um futuro no qual ela poderia viver a sua sexualidade, já que cada vez mais se tornava claro para ela que o casamento com Charlie (Patrick J. Adams) podia ser bom, mas ela não conseguiria sentir pelo marido o mesmo que sentia quando estava com Greta.

A League of Their Own

Em paralelo à descoberta de Carson, na parte negra de Rockford, Maxine (Chanté Adams) começa a dar os seus primeiros passos rumo ao entendimento da sua identidade. Embora mais experiente e ciente de quem era do que Carson, A League of Their Own mostra que Maxine ainda lutava com uma sombra na sua vida: o medo de se tornar “igual à sua Tia Bertie”, alguém cujo nome não podia ser mencionado na casa da sua família porque Bertie — agora Bert — era um homem trans. Entretanto, apesar do medo que sentia de seguir este destino e acabar desapontando a sua mãe, Max se sentia estranhamente atraída pela figura de Bert e pela forma livre como ele vivia a sua vida.

É exatamente pelas mãos do tio que ela recebe o seu passaporte para a libertação, que vem na forma de um terno e de um convite para uma festa. Ao se deparar com tantas pessoas “como ela”, Maxine tem a mesma reação de Carson: um maravilhamento que se mistura com espanto. Apesar de relutante, ela decide viver a experiência nos braços de uma moça interessante.

Feitos os devidos recortes de raça, as experiências de Carson e Maxine carregam pontos bastante semelhantes. Ambas se sentiam reprimidas pelo meio e coagidas a manter identidades que não eram as suas até se deparar com os espaços de convivência LGBTQIA+. Em um momento muito anterior às discussões sobre a importância da representatividade, é exatamente a compreensão de que existem outros homossexuais o que expande o horizonte das personagens, revelando a importância que estes locais possuíram na formação da identidade e da cultura LGBTQIA+.

A League of Their Own

Para além dos bares, algumas décadas mais tarde, os ballroons cumpririam o mesmo propósito de unir pessoas marginalizadas em um local no qual elas poderiam exercer livremente a sua sexualidade e mostrar os seus talentos. Isso é brilhantemente retratado no documentário Paris Is Burning (1985), de Jenny Livingstone. Se hoje o espaço dos bailes é objeto de interesse de séries como Pose, Legendary e RuPaul’s Drag Race, em momentos anteriores eles agrupavam LGBTQIA+ que recorriam à prostituição como meio de subsistência e que somente se sentiam parte de uma sociedade quando desfilavam em uma das categorias.

Em um tom mais pessoal e atualizado, durante a década de 2000, estes espaços reverberaram na minha vida. Dois amigos de adolescência começaram a frequentar um bar LGBTQIA+ (ou GLS) da cidade e compartilhavam histórias a respeito das pessoas que viam no local. Por ainda não me entender como um  membro da comunidade, não sentia a mesma necessidade de estar ali que eles sentiam, de modo que todos os finais de semana o nosso estoque de conversas sobre os frequentadores era renovado. Com o tempo e à medida que comecei a me entender um pouco melhor, também passei a ocupar esse espaço. Ao assistir A League of Their Own essas memórias, agora desbotadas e bastante longínquas, voltaram para a minha cabeça.

Isso aconteceu porque as coisas não mudaram tanto assim da década de 1940 para o começo dos anos 2000 quando você vive no interior. A ideia de que a comunidade somente poderia existir na clandestinidade ainda era bastante viva. Assim, “o bar” ficava localizado em um local remoto, de difícil acesso e próximo á rodovia Rio-Bahia, que corta a cidade no trecho 116. Para além das questões de localização, a identidade cindida dos frequentadores foi algo que nunca saiu da minha cabeça — talvez porque ela representasse a minha própria identidade naquele ponto da vida.

Era comum encontrar pessoas que ocupavam todos os tipos de funções sociais “no bar”: dos professores do Ensino Fundamental aos bancários engravatados. Entretanto, ali eles se despiam da seriedade das suas rotinas para se tornar pessoas mais afáveis, mais abertas ao contato. Isso, porém, não permanecia uma vez que as luzes se acendiam e um novo dia de trabalho começava. Portanto, ainda que você se encontrasse com um deles, não precisava esperar por uma conversa amigável ou mais do que um cumprimento padrão, como se você fosse um dos pais de alunos ou um cliente da agência. Mas naqueles espaços eles eram pessoas abertas e prontas para interagir com outros semelhantes, o que revelava que eles somente não estavam prontos para ter o seu segredo descoberto e essa parte da sua intimidade exposta.

Embora eu esteja afastada desses espaços de convivência LGBTQIA+ da cidade há pelo menos uma década e meia, algo me diz que se eu retomasse hoje as minhas idas — caso “o bar” ainda existisse — eu estaria diante do mesmo tipo de situação. As discussões avançam, a importância da representação é constantemente pautada, mas a mentalidade permanece estagnada, de modo que a comunidade segue relegada à clandestinidade, ainda que ela se sinta menos propensa a permanecer nesse lugar escuro e pouco glamoroso para o qual é constantemente empurrada.

Tudo isso serve para mostrar a necessidade de sociabilidade e pertencimento de categorias que vivem à margem e se desviam da norma. O encontro entre pares não é mero reflexo no espelho, mas antes retoma a ideia de Aristóteles de que os seres humanos precisam da convivência para se sentir plenos. Indo além, eles precisam do pertencimento para ter a sua existência justificada. Afinal, como diria o poeta, é impossível ser feliz sozinho.