Categorias: TV

All Stars 7 é celebração da trajetória de RuPaul’s Drag Race

Em 2016, RuPaul Charles disse em uma entrevista à revista Vulture que drag jamais seria mainstream, já que essa arte é completamente oposta às normas.

De certa forma, isso parece correto, mas também é uma fala que vai na contramão do que vem acontecendo com a franquia de RuPaul’s Drag Race nos últimos anos. O reality de baixo orçamento sobre drag queens que estreou na pequena emissora Logo TV, em 2009, se tornou um monstro (no bom sentido) com versões na Austrália/Nova Zelândia, Bélgica, Reino Unido, Canadá, França, Chile, Itália, Holanda, Filipinas, Espanha, Suécia e Tailândia — e, ao que tudo indica, no Brasil, México e Alemanha. O programa já foi indicado 39 vezes ao Emmy, vencendo 19. RuPaul, por sua vez, já levou 11 prêmios para casa, fazendo dele a pessoa que mais venceu na categoria de Melhor Apresentador de Reality Show ou Programa de Competição na história da premiação.

Se isso não é ser mainstream, então é difícil categorizar o sucesso estrondoso de Drag Race. É claro que é muito improvável que o programa chegue ao nível de comoção de outros realities, como Big Brother, visto que a criação de RuPaul tem um público nichado, mas todas essas conquistas são inegavelmente impressionantes e relevantes.

RuPaul's Drag Race

A competição trouxe luz a uma subcultura marginalizada e inferiorizada, inspirando artistas do mundo todo. Várias drags que participaram do programa já afirmaram que embarcaram no mundo drag justamente por causa de Drag Race, assim como Pabllo Vittar. Também é preciso lembrar como a cultura queer foi enriquecida com os desafios, looks e grandes personalidades que já passaram pelo Werk Room, quebrando preconceitos e mostrando que se montar é muito mais do que se maquiar ou usar uma roupa chamativa — é libertação, autoexpressão, resistência e política.

Diante desses feitos tão marcantes, dentre a franquia crescente de Drag Race, uma em particular domina o coração dos fãs: All Stars. Esta versão traz de volta algumas participantes que se destacaram em suas temporadas originais, mas que não alcançaram o primeiro lugar. O formato é conhecido em realities de competição, como America’s Next Top Model, por exemplo, que resgata competidores que o público já conhece e ama, mas com o bônus da experiência, maturidade e um budget pessoal mais robusto.

Todos os All Stars de RuPaul’s Drag Race deram o que falar, ainda mais com a mudança de regras a cada edição — o que gera tensão nas drags, euforia nos fãs e muito buzz para mais um Emmy. Cada temporada tem seu mérito particular, mas a sétima, conhecida como All Winners, se destaca.

Como o próprio nome já indica, a sétima temporada é composta apenas por participantes que venceram Drag Race, seja em edições regulares ou All Stars. Uma versão como essa era especulada e pedida pelos fãs há tempos, mas só chegou à VH1 (nova emissora) e serviços de streaming variados em maio de 2022. A espera valeu a pena, já que o programa entregou uma de suas melhores temporadas — dentro e fora da bolha norte-americana.

RuPaul's Drag Race

O grande trunfo do All Winners, como todas as outras edições, é seu elenco de drags. A produção teve cuidado o suficiente para selecionar participantes de temporadas mais antigas — como Raja (terceira temporada) e Jinkx Monsoon (quinta temporada) — e mais recentes — Shea Couleé (nona temporada), Trinity The Tuck (nona temporada e quarta temporada de All Stars), Monét X Change (décima temporada e quarta temporada de All Stars), Yvie Oddly (décima primeira temporada), The Vivienne (primeira temporada do Reino Unido) e Jaida Essence Hall (décima segunda temporada).

O nível de All Stars 7 é o mais elevado de todas as temporadas do programa original. Ao longo dos episódios, fica muito claro porque essas artistas foram coroadas como vencedoras. É fascinante observar a evolução da artisticidade e personalidade de cada uma, levando uma competição reconhecidamente difícil para patamares ainda mais altos.

O grande twist da temporada é que não há eliminações. Conforme vão ganhando os desafios, as drags são premiadas com broches de estrela, as Legendary Legend Stars. Em todos os episódios, RuPaul determina duas vencedoras. Elas competem em uma batalha de lip sync para definir quem vai levar o prêmio de 10 mil dólares e ganhar o poder de barrar uma participante de ganhar uma estrela no próximo episódio. Isso significa que, mesmo que a drag vença o desafio e o lip sync, não ganha pontos para deixá-la mais perto da coroa.

Essa mudança nas regras deixa o clima muito mais leve. É divertido assistir os conflitos entre as participantes — as brigas e maquinações para permanecer no programa —, mas a tranquilidade delas ao não ter que se preocupar com a eliminação é um respiro muito bem-vindo, ainda mais em uma temporada com rostos já conhecidos. A produção foi muito esperta ao fazer essa alteração, já sabendo que os fãs iriam gostar de ver suas queens favoritas de volta ao Werk Room pelo máximo de tempo possível.

A estrutura dos próprios episódios também é modificada. Geralmente, o primeiro das temporadas All Stars é marcado pelo show de talentos. Desta vez, além da apresentação das drags para relembrar suas participações em Drag Race e mostrar suas trajetórias de sucesso ao longo do tempo, a edição começa com um desafio em que é preciso escrever uma música, cantar, criar uma coreografia e apresentar tudo isso em grupo.

A complexidade da tarefa deveria render críticas ácidas e exigentes por parte dos jurados, mas não é o que acontece. RuPaul, Carson Kressley e até Michelle Visage, conhecida por ser a jurada mais rígida, oferecem elogios e comentários simpáticos na maior parte do tempo. Com o passar dos episódios, o espectador percebe que, detalhes que seriam duramente reprovados em outras temporadas, são amenizados ou ignorados em All Stars 7. É perceptível que esta é uma tentativa de mostrar como as participantes são especialmente talentosas — o que é verdade —, mas pode gerar certa estranheza em quem acompanha o programa há algum tempo.

Apesar disso, poucas pessoas se mostraram verdadeiramente descontentes. Esse é apenas mais um motivo que faz com que a temporada seja, de modo geral, tão divertida e agradável de assistir. É muito claro como todos os envolvidos — as drags, jurados regulares e jurados convidados — estão aproveitando toda a experiência, parecendo genuinamente felizes em relação à competição, sem a tensão das outras.

RuPaul's Drag Race

O Snatch Game, o desafio de imitação de celebridades que está presente em todas as versões do reality, chegou logo no episódio seguinte — e fez muito barulho quando foi ao ar. Muitos declararam este o melhor episódio de Drag Race. No IMDb, tem a classificação 9,8, a mais alta de toda a franquia.

Isso se deve à ótima performance de todas as drags. O Snatch Game é um desafio que produz mais desastres do que pérolas, então assistir uma versão em que o espectador não sente tanta vergonha alheia que tem vontade de se esconder é uma grande vitória — mesmo as atuações mais fracas foram muito fortes em relação a desempenhos anteriores. A regra de interpretar dois personagens, como fez Bob The Drag Queen na oitava temporada, também mexeu com o formato do quadro.

Embora Raja tenha encantado com a incrível caracterização de Madame e Diana Vreeland, e Trinity The Tuck tenha divertido com a versão gay de Lucifer e um abusado Leslie Jordan, Jinkx Monsoon é o grande motivo para o sucesso do episódio. Sua performance como Natasha Lyonne foi impressionantemente certeira, mas foi sua Judy Garland que deixou RuPaul, Michelle Visage e o público em lágrimas de tanto rir.

As piadas inteligentes, o timing perfeito para comédia, o estudo sobre a personalidade e vida de Judy e uma referência genial à sua temporada original demarcaram o Snatch Game de Jinkx como o melhor de todos os tempos. Para a Vulture, o jornalista Paul McCallion diz que “RuPaul deve dedicar seu próximo Emmy à Jinkx Monsoon”. Vale lembrar que ela também venceu o desafio na quinta temporada como uma brilhante imitação de Little Edie, modelo e socialite norte-americana, mais conhecida por sua participação no documentário Grey Gardens, de 1975.

Outro momento marcante de All Stars 7 acontece no episódio nove. Sem o peso das eliminações, RuPaul tenta algo diferente. No lugar do clássico lip sync de músicas que, de alguma maneira, conversam com a comunidade LBGTQIA+, Jinkx Monsoon e Monét X Change devem dublar um spoken word, isto é, recitar um trecho de alguma obra original ou de outras mídias. Neste caso, as drags tiveram que fazer o lip sync de um monólogo de dois minutos da sitcom Designing Women, de 1986. Além de precisarem ter todas as falas na ponta da língua, as competidoras tiveram que assumir todos os trejeitos necessários para traduzir o sentimento da cena original.

Não é a primeira vez que um spoken word aparece em Drag Race. Em All Stars 2, Tatianna recitou a incrível “The Same Parts” no show de talentos — e ficou entre as duas vencedoras do desafio. Esse tipo de lip sync é tão importante para a cultura drag quanto sua versão musical. Há décadas, drag queens usam monólogos dublados como parte de seus shows. A drag norte-americana Lypsinka é particularmente conhecida por isso. Em 1993, por exemplo, ela dublou e performou diversos fragmentos de spoken word no The Joan Rivers Show. Até hoje, esse número faz muito sucesso em suas apresentações. Chad Michaels (quarta temporada e primeira de All Stars) também tem performances populares em que interpreta Joan Crawford no filme Mommie Dearest.

RuPaul's Drag Race

Alguns fãs, porém, não se empolgaram muito. Nas redes sociais, uma pequena parte do público, em sua maioria mais jovem, não aprovou o tom mais calmo do desafio conhecido por ser tão energético. A outra parcela, esta muito maior, aprovou a novidade, deu ideias no Twitter de quais cenas Drag Race poderia utilizar e espera que o desafio se repita em temporadas futuras. Se depender das risadas de RuPaul, é bem possível que isso aconteça.

Mas Drag Race não é Drag Race sem uma mudança questionável e uma situação que divide parte do fandom. Uma alteração na obtenção de Legendary Legend Stars determinou as finalistas para a coroação, o que não foi visto com bons olhos por uma boa fatia do público. Além disso, algumas pessoas acharam que o desempenho de Jinkx Monsoon, a grande vencedora de All Stars 7, não se comparou ao de Monét X Change no lip sync final.

No entanto, RuPaul deixa claro que a deliberação é feita não somente a partir da dublagem, mas também por toda a trajetória das participantes ao longo dos episódios. Com isso em mente, a vitória de Jinkx faz todo o sentido.

Por ser uma temporada especial, Drag Race decide coroar duas competidoras: Jinkx, a Queen of All Queens, e Raja, a She Done Already Done Had Herses. Raja não se classificou para o time de finalistas para o grande título e o prêmio de 200 mil dólares, assim como Yvie Oddly, The Vivienne e Jaida Essence Hall. Mas ao vencer o lip sync contra Yvie, ela ganhou 50 mil dólares e a segunda coroa.

Ao longo de 11 episódios, RuPaul’s Drag Race All Stars All Winners foca completamente nas competidoras que tanto contribuíram para construir o legado do programa. Em um formato alternativo, a temporada é um presente para os fãs, celebrando a arte drag, a cultura queer, seus artistas e o caminho triunfante do reality que aparenta, felizmente, ainda ter muitos anos pela frente.