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Pílulas Azuis e Oleg, de Frederick Peeters: entre cacofonias e silêncios

O ano é 2020, estamos imersos na pandemia, em suas consequências sócio-mentais-emocionais-existenciais e Frederik Peeters lança a HQ Oleg, uma autoficção que mergulha nas suas angústias e intimidades. Porém, antes de adentrar em Oleg, é necessário voltar 20 anos e conhecer a HQ Pílulas Azuis, uma autobiografia de Peeters, na qual ele conta como conheceu sua esposa, seu enteado e de como, ao longo do tempo, aprenderam a lidar com o fato dela ser soropositivo.

Ambas as obras trazem vivências do autor aliadas a devaneios filosóficos e narrativas visuais que convidam o leitor a olhar para cada traço, na qual o Peeters confia suas intimidades e vulnerabilidades. O tempo de 20 anos que separam as obras permitiram-lhe explorar outros gêneros e histórias, de modo que, quando retoma para histórias de si mesmo, não tratam-se de sequências, e sim de olhar para a própria narrativa de outro lugar.

“Sempre tento fazer livros diferentes, e aí, após me divertir com ficção científica, o suspense, o faroeste gay, o surrealismo e a poesia apocalíptica, quis falar sobre a vida cotidiana, o amor de longo prazo, a idade avançada e o trabalho do desenhista de quadrinhos.” — Trecho da entrevista dada para O Globo.

Na publicação em língua inglesa, o subtítulo de Pílulas Azuis é “a positive love story” [“uma história de amor positiva”]. Somos apresentados à versão jovem e solteira de Peeters, aqui chamada de Fred, vivendo em Genebra, questionando-se como se pode passar 20 anos no mesmo lugar, entre rostos conhecidos de desconhecidos, até que, sem poder prever quando e como, um desconhecido se torna especial. Entre idas e vindas, Fred e Cati se conhecem, se aproximam e saem para um primeiro encontro, que termina com ela contando que ela e o filho — de outro relacionamento — são soropositivos.

pílulas azuis

Logo no início, Cati diz que se ele quiser ir embora, o momento era aquele, ela não iria ficar brava, nem tentaria convencê-lo a ficar. Então, a partir do momento que Fred decide ficar, ele precisa aprender a lidar com a situação sem culpa e sem querer ser o herói da Cati — o que ambos buscam e precisam é segurança e companheirismo.

Ao longo das páginas, acompanhamos as dúvidas e os medos do casal. Podemos transar? A camisinha é segura? Cortei o dedo e agora? Medo de ficar doente, medo do que os outros vão falar, medo de morrer. A camisinha estourou, corre pro médico! A falta de informação é a vilã dessa história de amor, afinal, não é um quadrinho sobre AIDS, doença ou morte — como tantas outras histórias que já vimos —, mas sobre um homem e uma mulher conhecendo os sonhos, desejos, inseguranças e angústias um do outro, construindo uma vida e uma família em torno disso.

No contexto do final dos anos 1990 e início dos 2000, quando a história se passa, os avanços da medicina estavam acontecendo, porém, o estigma e o preconceito também estavam ali. A preocupação do personagem, rapidamente, deixa de ser em relação a si próprio e passa a ser com a companheira e com o enteado, a quem começa a se apegar e entender que aquela seria a sua família.

“Ele e Cati vivem em constante acompanhamento médico… a cada três meses, fazem um exame de sangue que permite avaliar seu estado de saúde e a evolução do vírus… em tempo para tomar providências em caso de piora.”

Porém, o que mais temiam acontece: a camisinha estoura! O casal corre para o médico, que, ao contrário do que eles esperavam, os acalma e diz que a situação não é um bicho de sete cabeças. No momento mais tenso e didático do livro, podemos entender quais são os procedimentos necessários e o quão desinformados, como sociedade, somos em relação ao HIV. Tanto Cati quando Fred já estão esperando pelo pior. Até esse ponto, podemos entender que isso os impedia de determinadas intimidades físicas e emocionais, que o conhecimento e a informação eram o que eles precisavam para abraçarem sua história de amor.

“Ele [o médico] tinha realmente aberto para mim as portas de um mundo insuspeitado, liberado dos clichês sociais e das histórias sensacionalistas… um mundo sem julgamentos apressados, em que os dramas se transformam em experiências. (…) Quando a esperada boa notícia chegou foi a libertação. Não é que tivéssemos o direito de fazer tudo, mas agora as regras estavam definidas… Podíamos jogar um jogo franco, num terreno sem limites.”

Ambas as obras são marcadas pelos devaneios filosóficos dos personagens, e aqui ela acontece em um passeio com o mamute — não tem como explicar além disso, é preciso ler. No momento final de decidir, por fim, que essa é a sua história de amor, Fred fica no impasse entre a compaixão que sente pela família e a raiva pelo preconceito da sociedade, que os atingirá para sempre, desde os pais de Cati que cortam a relação, amigos que se afastam, adolescentes maldosos e preconceituosos, futuros interesse amorosos.

Pílulas Azuis é mais do que uma história de amor em que “o menino conhece a menina”. É uma história de amor que deseja quebrar barreiras internas e externas para construir intimidade. Uma história de amor em que a informação e ciência acolhem para que possam continuar juntos, apesar dos preconceitos.

E então, 20 anos depois, conhecemos Oleg. Não um Freederick mais velho, mas um alter-ego: um quadrinista que passou os últimos anos trabalhando com livros próprios, como ilustrador para outros autores, casado há 20 anos, com uma filha adolescente e que está em conflito criativo para sua próxima publicação.

Entre o público e o mercado que desejam por uma sequência do livro que garantiu seu sucesso, Oleg desenha sobre o estado de si e do mundo, questionando a passagem do tempo, as mudanças tecnológicas e seus ruídos, as cidades cheias de pessoas solitárias. Ao não conseguir criar algo, entra em crise. Entre as conversas com a filha e a esposa, Oleg quer entender quem ele é.

“— Pobrezinho, que tragédia! Basta um pouquinho de dificuldade e você já fica assim? Se a engrenagem resiste um pouco, você já desiste? Não consegue lidar nem com uma pedrinha no caminho? (…) Você se dá conta? Chega a ser surreal! Faz vinte anos que você publica uma HQ atrás da outra! Sempre com três projetos na manga e essa é a primeira vez em que você fica sem nada, super normal! Relaxa. Dá um tempo. Daqui a pouco vem.”

Entre desenhos detalhistas, grandes fluxos de pensamentos, diálogos, causos e algumas páginas de silêncio contemplativo, o livro se estrutura em pequenas narrativas, ora sobre o indivíduo, ora sobre o mundo. Ambas as obras olham para o micro para entender o macro, sendo impossível entender um sem o outro — seja se estamos falando sobre relacionamento amoroso ou sobre o ofício criativo.

Ao observar o seu redor e transformá-lo em devaneios filosóficos através de um passeio com o mamute ou uma viagem no espaço-tempo com sua esposa, o autor revela suas intimidades e vulnerabilidades a ponto de sentirmos a necessidade de fazermos o mesmo com as nossas. É importante lembrar que o formato de histórias em quadrinhos demanda de nós, leitores apressados, o tempo de ler as palavras e os traços das ilustrações, que também carregam a história. Peeters se utiliza de muitas páginas silenciosas em suas palavras para falar conosco através de seus desenhos.

“Enquanto isso, Oleg acabou de completar oitenta desenhos inspirados na destruição do mundo. Com o tempo, seus livros se transformam em armadilhas, e é preciso saber sair delas. (…) Mas então, as ideias entram em ebulição, e ele se vê invadido por essa mistura de sentimento de urgência de excitação, tão peculiar… O livro seguinte que se desenha.”

Peeters tem o desejo de entender o mundo para se entender e de buscar o outro para se construir. Pílulas Azuis e Oleg mostram que a vida, o tempo e as mudanças estão em processo, podemos ignorá-las ou podemos mergulhar nelas — mesmo que de vez em quando precisemos voltar à superfície para tomar um ar.


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