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Why Her: qual é o limite do sofrimento das protagonistas?

Será que o destino das protagonistas fortes é sofrer todos os absurdos possíveis até encontrarem o final feliz? Aliás, elas são realmente merecedoras de finais felizes? Por que continuamos consumindo narrativas que testam o contrário? Para responder a essas questões, precisamos entender mais sobre a série Why Her?. A produção sul-coreana foi lançada no dia 3 de junho deste ano por meio da SBS, com o formato padrão de uma temporada composta por 16 episódios. Transmitido às sextas-feiras e aos sábados, o programa contou com um elenco de peso, apresentando Seo Hyun-Jin (Beleza Interior) como protagonista e o carismático Hwang In-Yeop (Beleza Verdadeira).

Atenção: este texto contém spoilers!

A pauta sobre a constante escolha de In-Yeop por protagonistas dramáticos e sofríveis que provavelmente não irão conquistar a garota no final é tema para outro texto, mas é importante entender essa característica particular dos seus personagens para compreender aonde quero chegar. Em resumo, Why Her? conta a história de Oh Soo-Jae (Seo Hyun-Jin) como uma advogada talentosa que se torna a sócia mais nova da TK Law Firm (Firma TK, em tradução literal).

Porém, assim como a empresa que atende, Oh Soo-jae é uma mulher ambiciosa, considerada uma das melhores advogadas da Coreia do Sul, em uma das melhores firmas do continente. Para alcançar esse título, foi necessário se tornar uma mulher impulsionada pelo desejo de ganhar e por princípios particulares que nem sempre seguem as leis ou os valores da tradicional sociedade sul-coreana. No entanto, quando um caso complicado acaba saindo do seu controle, ela é removida do seu cargo e enviada para trabalhar como professora adjunta na Universidade até que as coisas se acalmem. Apesar da relutância, pois estava próxima de alcançar o seu objetivo dentro da empresa, ela assume o papel e acaba se encontrando com Gong Chan (Hwang In-Yeop).

Why Her

A princípio, o estudante não apresenta nenhum perigo, mas a aproximação repentina com Soo-jae cria sentimentos inesperados, ainda que os dois sejam conectados por um passado obscuro. Enquanto equilibra a sua nova vida como professora e tenta retomar o controle da firma, Oh Soo-jae é confrontada por lealdades inesperadas, traições absurdas e dolorosas revelações sobre as pessoas ao seu redor. O problema em questão é quão dolorosas elas são para a protagonista.

Por que amamos mulheres que sofrem?

É comum nas narrativas audiovisuais, principalmente asiáticas, que o arco dos personagens e o enredo se desenvolvam com parte em adversidades. A morte de um coadjuvante, o vazamento de um documento, um acidente trágico ou até mesmo uma descoberta inesperada podem virar a história de cabeça para baixo.

Esse tipo de ferramenta é utilizada para sustentar a narrativa ao longo dos episódios, o que realmente não é fácil quando se deve produzir dezesseis deles com mais de uma hora de duração. Entretanto, existem alguns escritores, roteiristas e diretores que exageram nesse ponto e parecem procurar pelo máximo de exploração dos sofrimentos dos personagens, principalmente as protagonistas femininas.

Desde a primeira aparição, Oh Soo-jae se mostra como uma mulher forte e destemida, que muitas vezes age com base na sua própria bússola moral. Sendo assim, não é uma protagonista que você ama de primeira ou se identifica fortemente, e parte da construção da personagem como morally grey é essa característica. Ao longo da narrativa, compreendemos que essa personalidade surge de uma série de decepções, abandonos, tragédias e traições que a obrigaram a se tornar a sua própria pessoa, ainda que tenha que ser antiética no trabalho ou afastar as pessoas de maneira grosseira. Para sobreviver no mundo dos ricos e poderosos da Coreia do Sul, e conquistar sua fama, ela teve que passar por cima de muita coisa, e também de muitas pessoas.

A fim de obter o que ela deseja, continuar crescendo e se tornar poderosa até que deixe de ser vista como um peão pelo presidente da TK, o Choi Tae-Guk (Heo Jun-ho), Oh Soo-jae engoliu muitos sapos. Logo nos primeiros episódios, vemos que o início da sua carreira foi marcado por misoginia e machismo por parte dos próprios associados, com os seus superiores fingindo que nada estava acontecendo e permitindo esse tipo de comportamento. Aos poucos, como a única mulher na sala dos poderosos, Oh Soo-jae tornou-se mais forte, sabendo quais peças movimentar para continuar no topo e ganhando ainda mais poder no processo. Para que pudesse ser respeitada, ela precisou encontrar segredos entre todos os grupos, grandes o suficiente para mantê-la segura das ameaças.

Como consequência, sua vida profissional tornou-se prioridade, de modo que os relacionamentos afetivos, como amizade, romance e até a própria família, ficassem em último plano. Além disso, essa atitude a fez ficar mais isolada, agindo de forma fria e distante de todos que tentassem se aproximar dela. Provavelmente por isso, quando Gong Chan declara seus sentimentos por ela de forma tão aberta e sincera, o mundo de Oh Soo-jae parece se abalar um pouco, e daí para frente uma série de lições importantes fazem-na perceber como tem vivido nos últimos anos. Por um lado, é interessante quando o papel do romance tem essa função nas séries, mas por outro, nem tudo são flores.

Why Her

Um mar de espinhos

A partir dos primeiros desdobramentos da série, começamos a caminhar junto com Soo-jae por todos os relacionamentos e as adversidades que ela encontra no caminho. Desde esse ponto, os desafios parecem demais, como o fato dela ser culpada por um suicídio que presencia de um jeito horrendo enquanto sai do trabalho. Ou então, como os seus chefes a fazem se responsabilizar por um caso de fraude bilionária, assumindo uma série de contas fantasmas em outros continentes em seu nome, e sem a sua permissão. Também cabe citar como Soo-jae foi obrigada a perder o primeiro caso da sua vida para conseguir uma posição na TK Law Firm.

Coincidentemente, a história nos mostra que o caso que ela perdeu de propósito foi o de Gong Chan, quando ele ainda atendia pelo nome Kim Min Gu. Na época, ele foi acusado injustamente pelo assassinato e estupro de sua meia-irmã, sendo preso no lugar do verdadeiro culpado e se tornando vítima das violências de outros detentos. Dessa vez o In-yeop ergueu o nível do sofrimento dos seus personagem para uma escala jurídica.

Não sendo o bastante, depois descobre-se que os verdadeiros culpados do crime contra a irmã de Gong Chan estão relacionados a um acidente que arruinou a vida de outra mulher e Soo-jae foi forçada a protegê-los sem nem saber dessa informação. Como se não fosse suficiente, ao longo da história descobrimos que o relacionamento dela com o presidente Choi é bem mais complexo.  Basicamente, Soo-jae engravidou do filho do presidente quando era mais jovem e foi convencida pelo presidente da firma a ir para os Estados Unidos onde poderia ter o bebê. Assim que possível, o filho dele iria encontrá-la, e o casamento seria arranjado tanto nos Estados Unidos quanto na Coreia.

Acreditando que teria um final feliz, e apaixonada pelo filho do presidente, Soo-jae se muda para os Estados Unidos. No entanto, acaba tendo um filho natimorto e descobre que seu amado nunca iria encontrá-la. Por conta dessa reviravolta, ela entra num profundo estado depressivo e inclusive tenta se matar. Ao jogar a culpa no presidente Choi, o homem somente a tenta convencer de retornar e trabalhar para ele, prometendo-a fazer poderosa, mas sem nem ao menos justificar o que aconteceu. Nessa mesma época, ela descobre que seu amado se casou com outra mulher e também terá uma filha com ela.

Engolindo o seu orgulho, o que por si só é absurdo, Oh Soo-jae decide “dar a volta por cima” e retorna à Coreia do Sul, aceitando trabalhar na firma TK com a proposta de ser poderosa. Com o seu retorno, toda a história se desenrola até chegar ao momento presente, em que ela se vê obrigada a dar aulas na Universidade para atender às ordens do presidente enquanto trama o seu retorno ao topo.

Why Her

Qual é o limite do sofrimento das protagonistas?

Com todo esse enredo, sem contar as histórias adjacentes dos estudantes, do próprio Gong Chan e demais coadjuvantes, seria possível produzir duas temporadas, e não somente dezesseis episódios. A história por si só oferece diversos arcos e pontos de conflito que podem gerar desenvolvimento, com mistérios suficientes para concluir a história bem.

No entanto, como se todo o histórico de Soo-jae não fosse o suficiente, os escritores decidiram ir além e ultrapassar o limite do aceitável. Durante o desenvolvimento da história, Soo-jae é obrigada a realizar o divórcio de seu ex-amado com a atual esposa, por ordem do presidente em uma negociação tensa, quando o relacionamento de ambos está abalado. Neste ponto, a única solicitação do presidente é que ela mantenha a guarda da filha do casal, Choi Jae-yi, não importa o preço que for cobrado. Com a suspeita de que existe algo além por trás desse pedido, Oh Soo-jae investiga e acaba descobrindo que a menina não é filha biológica da esposa de seu ex-amado.

Tal é a surpresa quando descobrimos, com ela, que Choi Jae-yi é sua filha, que supostamente foi um bebê natimorto. Sim, enquanto Soo-jae estava tentando se matar no hospital, sentindo culpa e desolação, seu querido sogro e presidente da firma sequestrou sua filha e a retornou à Coreia do Sul em segredo, para ser criada pelo seu filho e a nova esposa. Ao mesmo tempo em que essa revelação é feita, com lágrimas e testes de DNA enquanto outros personagens punem Oh Soo-jae por não reconhecer a própria filha, a menina decide desaparecer porque descobre que os pais vão se divorciar e ela ficará sem sua mãe. Enquanto nós, no papel de telespectadores, estamos processando a informação (e o absurdo) relacionado a essa revelação, o que há de mais absurdo acontece.

Nos primeiros dias com a informação de que sua filha não está morta e que ela poderá desempenhar o papel de mãe, Oh Soo-jae encontra Jae-yi fugindo dos pais, mas acaba vendo-a morrer em um acidente de trânsito absurdamente desnecessário e diante de seus olhos. Ao ver seus pais do outro lado da rua, Choi Jae-yi solta a mão de sua mãe biológica e corre pela avenida, quando é atingida por um caminhão. Depois desse acontecimento, uma série de cenas de apertar o coração se sucedem, com uma Soo-jae atônita invadindo a sala do necrotério para abraçar a filha morta e chorar copiosamente, chegando a desmaiar de desespero. E isso tudo acontece no episódio 14, o penúltimo da série.

Será que nesse ponto da narrativa esse acontecimento era necessário? Quão mais a protagonista precisava perder para conseguir um final feliz? Por que precisamos ver personagens femininas sendo quebradas em todos os pedaços antes de serem felizes? Será que o contrapeso da força feminina nas narrativas é o sofrimento absurdo? Ainda que pareça um pequeno acontecimento no mar de tragédias que é a vida da protagonista na história, essa escolha dos escritores se mostra um exagero, principalmente considerando os acontecimentos anteriores na construção da protagonista. Como se roubá-la de sua vida e inocência não fosse suficiente, assim que ela obtém algo bom, é retirado das suas mãos da forma mais trágica e repentina possível.

Obviamente, esse fato conecta todos os outros personagens relacionados a Choi Jae-Yi, como seus pais e o presidente da firma, sensibilizando-os e mostrando um lado humano que não faz o menor sentido nesse ponto da história. Pelo lado positivo, se é que existe nessa escolha péssima para o desenvolvimento da história, esse é o breaking point que faz a protagonista perceber como viveu sua vida todos esses anos. Mas será que era preciso chegar tão ao fundo do poço para perceber? Conviver com Gong Chan constantemente e descobrir um segredo tão cruel não foi suficiente? Ser roubada de sua própria identidade para benefício da firma não era o bastante?

Why Her

É comum que os breaking points dos k-dramas sejam absurdos, mas em vários casos acabam extrapolando o aceitável na ficção e na realidade também. Como exemplo, poderia citar a morte de Jeon Pil-do (Ahn Bo-hyun) em My Name quando a protagonista Yoon Ji-woo (Seo He-soo) acaba de encontrar um ponto de equilíbrio no inferno que é sua vida, ou então a insuperável (e insuportável) morte e Jang Han-seo (Kwak Dong-yeon) em Vincenzo para que ele descubra como o vilão é, de fato, um vilão.

Em todos os casos, é comum que algum personagem que não precise morrer para que a história completa morra, e muitas vezes é aquele coadjuvante que merecia um arco de redenção, um final feliz ou somente ser deixado em paz pelos escritores e roteiristas. O problema é que na maioria das vezes as personagens atingidas por esse arco são as protagonistas femininas. Em Vincenzo, citado anteriormente, a morte de Jang Han-seo acompanha a décima vez que a protagonista Hong Cha-young (Jeon Yeon-been) quase morre, sem começar a contar o número de sofrimentos desnecessários que ela passa ao longo da narrativa. Enfim, são vários os exemplos e casos que poderiam reforçar meu argumento.

Essa questão é mais um dos diversos problemas das produções cinematográficas e audiovisuais, o que não é uma questão somente na Coreia do Sul, mas também na velha e questionável Hollywood como um todo. Assim como outras questões, que já apontei em outros textos para o Valkirias, me parece um problema cultural que não vai ser resolvido do dia pra noite, mas acredito que fazer as perguntas certas seja uma boa forma de começar.

Qual o limite do sofrimento das protagonistas? Essa questão da ficção esbarra com a realidade, não somente em quão verossímeis são os acontecimentos, mas também quanto um ser humano consegue suportar.  Será que o limite do sofrimento não é também o nosso limite? A forma de resolver esse problema é bem maior do que simplesmente a presença feminina nas salas de roteiro e nas cadeiras de direção, com personagens femininas escritas por mulheres. Esse problema é um costume engendrado nas narrativas culturais e linguagens cinematográficas, e ainda que essa mudança esteja em curso, sabemos que vai levar um tempo.

Por que romantizamos o sofrimento feminino parece a questão do século, talvez para outro texto, talvez para um doutorado. O principal problema não é muito bem o motivo, mas até quando vamos tolerar que protagonistas fortes, personagens femininas que tendem a refletir a realidade ou o ideal das mulheres que queremos ser no futuro, sejam retratadas de maneira tão pobre e insuficiente.

Até quando?