Shara Wheeler tem tudo: boas notas na escola, um namorado gato que é quarterback do time do colégio, o carro do ano, uma beleza estonteante e o amor de todos da ultraconservadora False Beach, uma pequena cidade do Alabama. Mas, faltando menos de um mês para a formatura, Shara Wheeler desaparece sem deixar rastros aparentes. O sumiço de Shara deixa os cidadãos de False Beach em polvorosa, mas é Chloe Green quem mais fica cismada com a situação visto que, no dia anterior ao seu desaparecimento, Shara, a filha perfeita do pastor, a beijou de maneira inesperada.
Chloe considera Shara sua rival direta em False Beach, uma vez que as duas competem na escola pelas melhores notas, décimo por décimo, pois ambas querem ser a oradora de sua turma quando o ensino médio terminar. Chloe, que antes de viver em False Beach tinha uma vida confortável no sul da Califórnia com suas duas mães, precisou aprender a navegar no ambiente conservador da escola onde o diamante mais brilhante é Shara Wheeler. Chloe nunca mediu esforços para atingir seus objetivos e está a ponto de ganhar de Shara e se tornar oradora quando esta a beija e desaparece. O que Shara deixa para trás é uma série de cartas endereçadas não apenas a Chloe, mas também para outras duas pessoas beijadas por ela: Rory, o garoto da casa ao lado, e Smith, o namorado de Shara. E é então que esse improvável trio formado por Chloe, Rory e Smith, precisa se unir para encontrar as pistas deixadas por Shara em lugares inesperados, tentando decifrar não apenas o paradeiro da adolescente, mas o mistério que é Shara Wheeler.
“Quem é ela quando, finalmente, não tem ninguém olhando?”
Chloe, sem dúvidas, é quem fica mais imersa na caça ao tesouro promovida por Shara, sempre ansiosa a respeito de onde encontrará o próximo envelope cor-de-rosa deixado por sua nêmesis. Durante a busca, o que Chloe acaba por descobrir é que existe muito mais a respeito de Shara do que ela deixa transparecer, quebrando um pouco da imagem da filha perfeita do pastor e mostrando a verdadeira Shara por baixo do cabelo loiro brilhante e coleção de protetor labial com sabor de frutas. Eu Beijei Shara Wheeler, o terceiro romance de Casey McQuiston — autora de Vermelho, Branco e Sangue Azul e Última Parada, lançados no Brasil pela Editora Seguinte — é um coming-of-age em um cenário muito específico, uma cidadezinha localizada no chamado Cinturão Bíblico (“Bible Belt”), nos Estados Unidos — mas que, mesmo assim, trará identificação com muitos jovens em situações semelhantes ao redor do mundo.
Crescer em um dos estados que fazem parte do Cinturão Bíblico significa, para muitos jovens queer, uma vida de restrições e sufocamento, visto que precisam esconder seus verdadeiros sentimentos a fim de não destoar e chamar atenção dentro de uma comunidade extremamente religiosa. Localizado na região sudeste dos Estados Unidos, formam esse cinturão os estados cuja origem e fundação provém da colonização protestante onde a Bíblia, e a religião de maneira geral, é intrínseca à cultura local. Dessa maneira, quando Chloe, uma menina bissexual assumida com duas mães, se muda para False Beach, o choque é grande e real. Uma das mães de Chloe, inclusive, deixou sua cidade natal, a já citada False Beach, justamente para que pudesse ser verdadeira à sua essência em outro lugar, mas a morte de um familiar faz com que ela precise retornar com a família para a cidade que, em anos passados, tanto a magoou.
Por isso, quando Shara beija Chloe e desaparece, a menina fica tão impactada. Quais segredos estaria Shara Wheeler escondendo debaixo de uma pele impecável e iluminada, quando se junta à família para orar na igreja usando seus vestidos bem ajustados? A narrativa desenvolvida por Casey McQuiston em Eu Beijei Shara Wheeler tem as características que os fãs da autora tanto amam, como seu humor sempre bem entrosado com a trama e, claro, personagens que parecem tão reais que é como se tivessem vida própria. A autora também permanece impecável ao costurar sua narrativa com as partes menos bonitas de ser um adolescente queer, especialmente no caso desse livro em particular em que seus personagens circulam em uma comunidade tão conservadora e restritiva. Ler Casey McQuiston é relembrar os sentimentos que fazem da adolescência uma fase tão repleta de sentimentos, e isso é mérito da escrita inspirada da autora que é capaz de nos transportar para outro lugar — mesmo que você não seja adolescente há muito tempo. O resultado é uma narrativa adorável, empolgante e divertida sobre descobertas, amizade e um certo enemies to lovers bastante comovente.
E essa narrativa se desenvolve tão bem por conta dos personagens criados por McQuiston, sempre tão complexos e repletos de nuances, desde a protagonista, a destemida e inteligente Chloe Green, até a misteriosa e evasiva Shara Wheeler. É interessante ver como Casey McQuiston os desenvolve pouco a pouco, mostrando camadas de imperfeição unidas a vontade de ser visto e compreendido, e até mesmo erros sendo cometidos no calor do momento, o que os fazem ser amados e ainda mais relacionáveis. Afinal, que adolescente não meteu os pés pelas mãos enquanto tinha certeza absoluta de que estava fazendo tudo certo?
“Qual é o problema de fazer o que for preciso para ter uma vida mais fácil? Por que é tão ruim querer se sentir especial, ou amada, ou aceita?”
As dinâmicas construídas por esses personagens no decorrer do livro são muito divertidas de acompanhar, principalmente a rixa acadêmica entre Chloe e Shara que, aos poucos, vai se desenvolvendo em algo a mais. Ainda que, no início, Eu Beijei Shara Wheeler deixe a sensação de que o relacionamento entre elas culminaria em algo pouco saudável, em Casey McQuiston nós devemos confiar pois a autora sabe muito bem como desenvolver e guiar a trama para o melhor resultado possível, nos fazendo vibrar e torcer com cada plot twist da narrativa. Os acontecimentos que levam Chloe e Shara na direção uma da outra são pavimentados com cuidado por McQuiston, mostrando a evolução das duas enquanto tentam (e conseguem) se entender. É muito reconfortante ver personagens adolescentes, meninas principalmente, desenvolvendo relacionamentos na base da conversa e da compreensão.
Ainda que Chloe e Shara sejam o foco maior do livro, há outros personagens e casais adoráveis que se formam e se desenvolvem quando as amarras do Cinturão Bíblico se afrouxam, e isso é delicioso de acompanhar, assim como a improvável amizade e companheirismo que surge entre Chloe, Rory e Smith. Quando iniciam a jornada para encontrar as cartas em papel cor-de-rosa, os três não parecem ter absolutamente nada em comum além de Shara, mas aos poucos vão percebendo que, ainda que sejam, de fato, pessoas completamente diferentes, eles formam uma ótima equipe. O carinho e o senso de proteção que nasce entre eles é adorável de acompanhar, com momentos memoráveis. As interações entre eles, assim como entre Chloe e sua melhor amiga, Georgia, uma menina lésbica apaixonada por livros que trabalha na livraria da família, são permeadas pelo humor característico de Casey McQuiston, sempre recheada de citações de cultura pop e cutucadas que faríamos aos nossos amigos. Esse humor, inclusive, é responsável por tornar leve uma leitura que trata de temas tão pesados como homofobia e a pressão de viver em uma comunidade ultraconservadora.
“(…) às vezes, um pedestal é um lugar muito confortável para estar, porque pelo menos lá em cima ninguém pode te fazer mal.”
Nos agradecimentos do livro, Casey McQuiston diz que Chloe Green não é ela, e ela não é Chloe Green, ainda que tenha crescido em um ambiente muito semelhante ao narrado por ela, o que fez com que a escrita do livro fosse “uma montanha-russa de emoções”. A autora diz que no Cinturão Bíblico dos Estados Unidos, a região mais fundamentalista do país, estão “alguns dos melhores, mais calorosos e estranhos jovens LGBTQIAP+ que se podem conhecer”. Todo o livro gira ao redor de como é crescer em uma cidade pequena no Cinturão Bíblico, frequentar uma escola cristã e os efeitos que esse tipo de vivência pode ter na construção das pessoas que estão ali inseridas. A maneira como a religião influencia até mesmo a maneira como esses jovens se enxergam está toda ali, mas desenvolvida com o cuidado e delicadeza que somente Casey McQuiston poderia ter.
Um ponto muito interessante abordado dentro desse tema é que, sendo Chloe uma menina de fora, e por quem toda a narrativa é vista, seria fácil colocá-la condenando toda False Beach, mas isso não acontece. Chloe não tem uma religião, é queer, e ainda que não concorde com a maneira como as coisas são levadas na comunidade e na escola que frequenta, ela não os demoniza. Muito pelo contrário, Chloe ouve e tenta se colocar no lugar do outro, mostrando que sua perspectiva não é a única, e que False Beach e a religião podem significar muito para outras pessoas, ainda que para ela não seja o mesmo. A despeito dos temas difíceis e das jornadas tumultuadas, Casey McQuiston sempre envolve suas tramas em cores cheias de esperança e alento aos seus personagens queer, e esse é um dos aspectos mais incríveis de seu trabalho. A autora não se furta de dizer o que precisa no que se refere a homofobia, mas sempre é capaz de imbuir um senso de fé de que as coisas serão melhores.
“Você tem o direito de existir. Mesmo que isso signifique existir em outro lugar.”
Em Eu Beijei Shara Wheeler há adolescentes em diferentes jornadas de descoberta, desde a respeito de sua sexualidade ou com relação ao que desejam para o futuro, e nada é mais coming-of-age do que isso. O livro se conclui com todas as peças do quebra-cabeças de Shara Wheeler se encaixando, deixando aquela sensação de que as histórias daqueles personagens estão apenas começando. Por fim, assim como Casey McQuiston frisa em seus agradecimentos, ela queria que um livro como esse estivesse disponível para ela quando crescia em seu ambiente conservador, visto que uma narrativa como essa seria capaz de mostrar a ela que não estava sozinha. Na falta do que sentiu, McQuiston decidiu ela mesma preencher esse vazio, e da maneira mais adorável, verdadeira e divertida possível.
“(…) você merece comédias românticas ridículas e exageradas de ensino médio sobre adolescentes como você, assim como os héteros têm! Não deixe ninguém convencer você do contrário!”
O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras no NetGalley.
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