Carol, a versão cinematográfica, foi indicado a cinco categorias do Oscar 2016: Melhor Atriz (Cate Blanchett), Melhor Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Figurino e, o que chamou especialmente a minha atenção, Melhor Roteiro Adaptado. Sendo esse o meu filme favorito entre os indicados daquela temporada, por óbvio fiquei logo louca para ler o livro e ter uma visão mais completa e profunda da história.
Atenção: este texto contém spoilers!
Em resumo, Carol se passa nos Estados Unidos entre as décadas de 40 e 50, e conta a história do romance entre Carol e Therese. As duas mulheres se conhecem quando Carol vai até uma loja de departamentos para comprar um presente de Natal para a filha, Rindy, e é atendida por Therese. Carol é uma mulher elegante, rica, de trinta e poucos anos, em processo de divórcio. Therese é uma menina de 19 anos pobre, sem família, que cresceu em um internato e sonha em ser cenógrafa. A história é narrada em terceira pessoa pelo ponto de vista de Therese, e nós acompanhamos diretamente o interesse imediato que ela sente por Carol quando a vê de longe, e toda a idealização que Therese mais tarde constrói sobre ela, culminando em um relacionamento, no mínimo, questionável.
No livro, também temos acesso a flashes da história de vida anterior de Therese, que ficou órfã de pai aos oito anos, e foi praticamente abandonada pela mãe aos cuidados das freiras do colégio. Nas poucas vezes em que se viram depois disso, as duas foram incapazes de se conectar emocionalmente, e a menina acabou escolhendo cortar completamente os laços depois que a mãe casou de novo e formou uma nova família.
É muito evidente a influência que o abandono materno tem sobre o romance que se desenvolve anos depois entre Carol e Therese. Therese claramente projeta a figura materna em Carol — mais velha, segura de si, e louca pela filha. Carol representa para ela, ao mesmo tempo, ainda que inconscientemente, o papel de amante e o de mãe. Therese busca nela a aprovação e o modelo que ela não teve durante o seu crescimento. Simultaneamente, Carol, com a sua personalidade naturalmente dominadora e com vantagens tanto econômicas quando etárias sobre Therese, acaba assumindo esse papel superior, o que nos leva até um relacionamento claramente disfuncional e abusivo.
Se no filme é um pouco mais fácil se enganar e escolher não ver a situação (como eu fiz, mea culpa), o ponto de vista e as possibilidades narrativas presentes em um livro escancaram o tanto que o relacionamento que se cria entre elas é distorcido e assustador. Carol é dona de uma vontade de ferro e está acostumada a ter o que quer. Therese tem complexo de abandono e desenvolve uma necessidade doentia de agradar e realizar todos os desejos (ou o que ela acredita que sejam os desejos) da outra. Com suas mudanças constantes de comportamento, Carol alimenta ainda mais a insegurança de Therese, e agrava continuamente a situação.
Esse elemento, entretanto, não apaga diversas outras questões importantes que podem e devem ser extraídas da história.
O romance retratado em Carol é, sim, questionável por sua dinâmica interna nociva, mas não dá para desprezar o fato que é um romance entre duas mulheres, escrito e passado quase 70 anos atrás. Considerando esse contexto, é muito significativo que as duas levem o relacionamento de forma relativamente tão aberta, enquanto viajam de carro pelo país, mesmo que isso prejudique a situação de Carol nas negociações pela guarda da filha.
Em comparação com o filme, além do desenvolvimento mais profundo da história possibilitado pelo livro, a trama também se torna muito mais coesa e o final ganha uma perspectiva relativamente nova. Enquanto na adaptação cinematográfica Carol abandona Therese sozinha no meio da noite do outro lado do país, no livro ela volta a Nova York de avião, deixando Therese com o carro e prometendo voltar para continuarem a viagem.
Na versão original, Carol é impedida de voltar pela situação da filha, o que faz com que o temor sentido por Therese durante todo o romance de ser abandonada por Carol finalmente se concretize. Ela se sente traída pelo fato de Carol amar Rindy mais do que a ela, o que deixa ainda mais claro o papel de mãe substituta que Carol assumiu em sua vida e faz com que reviva os sentimentos de abandono e de troca que viveu na adolescência, quando a mãe formou uma nova família da qual ela não se sentia parte.
Esse é um ponto de virada muito importante na trama de Therese no livro, porque é a partir daí que ela consegue quebrar a relação de dependência emocional que existia entre elas e se colocar no mundo como pessoa adulta e autossuficiente. Apesar das ordens de Carol, Therese não volta imediatamente a Nova York e, quando finalmente volta, ela está consideravelmente mais madura. Ela ainda ama Carol, mas a idolatria e a idealização se foram, deixando no lugar uma segurança que possibilita que ela se coloque frente à outra em pé de igualdade, e nos dá de presente um final revolucionário em relação às obras com personagens LGBTQI+ existentes na época.
No epílogo da edição brasileira atual, publicada pela editora L&PM, escrito pela autora, Patricia Highsmith, em 1989, durante muito tempo após a publicação inicial do livro, ela recebia semanalmente dezenas de cartas de gays e lésbicas agradecendo pelo final do livro. Antes disso, todas as obras do gênero terminavam em tragédia e sofrimento. Nos romances heterossexuais tradicionais, um final feliz é o epítome do clichê, e o direito de amar e viver um romance parece algo tão natural que é fácil esquecer que mesmo nos dias de hoje, muita gente ainda não tem esse direito garantido. Isso é tão marcante que a autora faz questão de apontar que até a época em que escreveu o epílogo, quase trinta anos depois do lançamento da obra, ela eventualmente ainda recebia cartas de agradecimento.
Carol é uma trama complexa e sinuosa, com personagens tridimensionais e humanas, que fogem aos estereótipos e padrões sociais. Uma história cheia de emoção, que nos inspira sentimentos diversos e conflitantes, e que merece, definitivamente, ser lida.
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