Categorias: LITERATURA

Chuva de Papel: “a vida como ela é” de Martha Batalha

Não precisei de muito incentivo além do nome de Martha Batalha na capa de Chuva de Papel para me interessar pelo livro. Autora de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão e Nunca Houve um Castelo, todos publicados pela Companhia das Letras, Martha Batalha iniciou sua carreira como jornalista, atuando também no mercado editorial, mostrando que lidar com palavras e histórias já era seu ofício muito antes dos seus próprios livros tomarem forma. Com Eurídice Gusmão, a escritora teve o livro finalista do prêmio São Paulo de Literatura, semifinalista do prêmio Oceanos e o direito de publicação vendido para mais de onze países, além de uma produção cinematográfica inspirada em seu original que se tornou  premiada no Festival de Cannes, Festival de Cinema de Munique e Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

Para além de todas as vitórias e reconhecimento recebido na esteira de seus livros, Martha Batalha sabe buscar no cotidiano o diferencial que nos faz sentar na ponta da poltrona enquanto lê seus escritos, querendo saber, página após página, o que acontece com seus personagens. Feitos de papel, tinta e inspiração, é impossível deixar de se sentir cativada por eles, mesmo quando estão metendo os pés pelas mãos o tempo todo — o que é, sem tirar nem pôr, o caso de Joel, primeiro personagem que encontramos em Chuva de Papel.

“As esquinas e os prédios revelavam um conteúdo exclusivo e íntimo, como as notas de uma canção melancólica só ouvida por ele.”

Joel, um repórter policial em decadência, não quer ter mais nada com a vida — a sua e a do Rio de Janeiro, cidade em que cresceu, viveu e definhou para o vazio do esquecimento e ostracismo em que se encontra. Depois de passar meio século nas redações de jornais de pouco prestígio, daqueles que mostram o lado da Cidade Maravilhosa que é envolto em assassinatos e injustiças, e de acumular uma longa lista de ex-esposas, Joel perdeu qualquer carinho por sua existência e decide colocar um ponto final na sua história, assim como fez por tanto tempo nas matérias dos jornais. Enfrentando dificuldades financeiras, problemas familiares e alcoolismo, Joel decide se suicidar, mas, como tudo em sua vida acontece de maneira peculiar, não seria diferente com o ato de encerrar sua própria existência.

Depois da desastrosa tentativa de suicídio, Joel se vê obrigado a morar de favor com Glória, a tia de um amigo do jornal, até se recuperar por completo. Sem opções além de aceitar o arranjo proposto, Joel chega para sua estadia em um apartamento na Tijuca carregando uma caixa de papelão e um abajur de cúpula cor-de-rosa. Glória, esperando receber um premiado jornalista, se depara com o taciturno Joel, cara de poucos amigos, e com quem ela perde a paciência sem demora. Enérgica e falante, Glória é o retrato da mulher que sustentou sozinha a casa e a filha, e não se dói com as reclamações de Joel que, com a perna quebrada em dois pontos depois da malfadada tentativa de suicídio, precisa aceitar a situação em que se encontra, mas sente dificuldade em aceitar que o arranjo também tem por objetivo deixá-lo sob os olhos atentos de alguém que não o deixará tentar a morte novamente.

É dessa maneira que vamos caminhando, junto de Joel e Glória, por um Rio de Janeiro de passado e presente, por cenas de assassinato e abuso, mas também em meio à pandemia e ao caos da covid, enquanto eles encontram um no outro uma cumplicidade e companheirismo inesperados. Com origens e vidas tão diferentes quanto se poderia esperar de um repórter policial e uma dona de casa que sustentou a si mesma e a filha vendendo empadão, Chuva de Papel é um retrato tanto desses dois personagens, que têm tanta dor e solidão dentro de si, quanto do próprio Rio de Janeiro. A cidade, sempre lembrada pelos cenários deslumbrantes e pelas mazelas que se multiplicam com o passar dos anos, se torna um personagem que paira ao redor de Joel e Glória, transformando-se por meio das memórias, idas e vindas, que transbordam pelas páginas. O Rio de Janeiro é a cidade das praias belíssimas, do sol que brilha nas águas do mar, mas também é a cidade que mata e impede de crescer, que mascara a dor e os abusos no vai e vem de suas pessoas, sempre tentando sobreviver por mais um dia.

E é nessa situação improvisada que Joel e Gloria vão driblando a convivência difícil: o repórter que fez crescer uma casca dura e impenetrável para conseguir lidar com as dores de seu trabalho, e a mãe solo que fez tudo o que estava ao seu alcance para assegurar uma vida digna a ela e a filha, que tem muito mais para contar do que demonstra à superfície. Chuva de Papel tem a qualidade ímpar dos livros que contam histórias muito maiores do que parecem à primeira vista, nos invadindo com tramas repletas de memórias, situações imaginadas que são o puro suco da realidade — a realidade que vira poesia pelas habilidosas mãos de sua autora.

“O extraordinário não era o fim, mas o cotidiano.”

Chuva de Papel vai crescendo de mansinho, página por página, capítulo por capítulo. Aos poucos, o leitor se torna íntimo de Joel, que conta do seu começo do jornal, um menino de olhos arregalados e impressionado com a dureza da vida, até se transformar no homem que se acha sedutor, mas não tem o menor jeito com as mulheres, chegando no repórter desiludido e cansado. A narrativa mistura as lembranças de Joel com seu futuro, os sonhos que teve e já não mais vê espaço, todos reunidos em uma caixa com recortes de jornal. E o mesmo pode ser dito de Gloria, que parece uma matrona cheia de energia e opiniões à primeira vista, mas que guarda em seu coração uma história de tudo o que poderia ter sido e não foi por força das circunstâncias e de uma vida inteira de sonhos guardados em uma prateleira. A escrita de Martha Batalha é tão poderosa quanto suave, reunindo momentos de pura comédia, principalmente quando Aracy, vizinha de Gloria, entra em cena com seus dois chihuahuas, mas também de muita dor e tristeza, sentimentos que fogem das páginas e acertam em cheio o leitor.

E é aí que reside todo o talento da autora como contadora de histórias: ela tece e borda narrativas que podem parecer separadas à princípio, mas que fazem todo o sentido no final. A conclusão do livro, inclusive, é uma das melhores que li em muito tempo, unindo a dose certa de emoção e esperança, apontando que as coisas podem, sim, melhorar, e o recomeço é possível para qualquer um com propósito forte o suficiente. Em mais um livro incrível, Martha Batalha entrega um romance tragicômico repleto de sensibilidade e duras verdades, entrelaçando as vidas de Joel e Gloria, e de todo o Rio de Janeiro, em uma narrativa habilidosa, carregada com as cores fortes das crônicas da vida como ela é.

“Um homem e uma mulher, vivendo em quartos separados num apartamento nos fundos do primeiro andar de um prédio de pastilhas amarelas e pilotis na Tijuca. (…) Ele nunca passou tanto tempo no mesmo lugar. o mesmo lugar do qual ela nunca saiu.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


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