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A Vida Invisível: do melodrama emerge a opressão

Minha avó paterna é uma pessoa da família que não vejo há mais de dez anos, mas guardo algumas lembranças dela. Quando era criança, ela já vivia separada do meu avô, que morava há poucos metros da casa dela. Minha avó chamava-se Dorilda e, pensando bem, foi somente o que soube durante todo o tempo em que convivemos. Nunca soube do que ela gostava; para mim, ela parecia adorar ser avó de muitos netos o tempo inteiro. Uma mãe bastante orgulhosa dos três filhos. Quando A Vida Invisível terminou, só conseguia me lembrar dela. Como Eurídice (Carol Duarte/Fernanda Montenegro), a protagonista do filme, minha avó foi uma mulher invisível. Primeiro, invisibilizada por um marido opressor e, depois, pelos filhos. Como foi difícil ver aquilo escancarado na tela.

A Vida Invisível é um filme sobre o que poderia ter sido se não existisse o patriarcado. Os homens são apenas agentes daquele que é o maior vilão da história: o machismo estrutural. Karim Aïnouz, diretor do filme, abraça o melodrama doméstico para enfiar o dedo na ferida das relações patriarcais entre maridos e esposas, e pais e filhas.

A opção pelo melodrama

Uma das coisas que mais me chamaram a atenção em A Vida Invisível é a opção pelo melodrama para contar a história das irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice Gusmão. Martha Batalha, autora do livro que deu origem ao filme, conta neste vídeo que optou por contar a história de opressão das irmãs Gusmão de forma irônica. Já Aïnouz enveredou para o melodrama. Por quê?

A Vida Invisível

O melodrama é o gênero perfeito para dar vazão ao que não pode ser dito. Valendo-se de jogos de luz e sombra, figurinos e enquadramentos de câmera, o melodrama consegue trazer à tona questões de classe e gênero sem precisar colocá-las na boca de seus personagens. Luiz Carlos de Oliveira Jr., em seu texto, A Defesa do Melodrama, classifica esse gênero como uma dança de signos e símbolos, na qual o espectador se depara com uma série de significados densos e reflexões que emergem a partir de uma situação cotidiana. O diário é usado para veicular uma espécie de metáfora.

Originalmente, melodrama é uma junção das palavras “drama” e “música”. No começo, tratavam-se de óperas teatrais acompanhadas com música. Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista, foi o primeiro a usar a palavra com esse conceito. O nascimento do melodrama está ligado a dois fatos importantes: à morte da tragédia e à ascensão da burguesia ao poder. As tragédias prezavam pela palavra, isto é, pelo texto. Os figurinos eram muitas vezes reaproveitados, não se pensava em cenário. Quando a burguesia ascende ao poder, ela começa a frequentar os teatros. Logo, o conteúdo teve que ser adaptado a essa nova camada que dominava a sociedade. Dessa forma, o melodrama introduziu mais ação, mais realismo, mais conteúdo emocional. Por serem iletrados, os burgueses precisavam entender a ação de alguma forma. A predileção pela palavra dificultava isso. Foi aí que o melodrama passou a investir nos aspectos que citei anteriormente. Até porque a identificação das plateias era essencial para o ensinamento da virtude, ou seja, a lição moral que o melodrama carrega.

Quando falamos em cinema, temos que nos lembrar de que o melodrama não começou nos anos 50, com os filmes de Douglas Sirk. Na era muda, esse gênero já estava lá, no exagero dos atores da era silenciosa, nos cenários opulentos e nas cores de filme pintadas à mão. Porém, foi nos anos 50 que o melodrama viveu seu ápice em Hollywood, por meio dos filmes do diretor alemão. Aïnouz bebeu muito da fonte desse cineasta, e muito de A Vida Invisível foi inspirado em filmes icônicos de Sirk, como Imitação da Vida e Tudo o Que o Céu Permite.

A Vida Invisível

Sirk usou e abusou de recursos cinematográficos para discutir a hipocrisia das relações sociais. Em Tudo o Que Céu Permite, o uso da paleta de cores frias simboliza a tristeza na qual Cary Scott (Jane Wyman), uma viúva, vive até se apaixonar pelo jardineiro mais jovem, Ron Kirby (Rock Hudson). Além da paleta, Ron simboliza o bucólico, o ideal, enquanto Cary está atrelada aos valores burgueses e opressores. Como os filmes de Sirk e de outros cineastas que se aventuraram no melodrama, A Vida Invisível comunica-se através do que não está dito. Ao contrário de séries como Coisa Mais Linda, ambientada na mesma época que A Vida Invisível, não é preciso gritar “machismo!” para que saibamos o que está acontecendo.

O grande acerto de A Vida Invisível é mostrar o machismo até nos rebocos da parede, por meio de um fabuloso trabalho de fotografia, trilha sonora e atuações. É um filme que nos grita “opressão!”, sem que possamos ouvir o som dessa palavra. Só vemos os lábios se mexerem. Ouvimos o murmurar das irmãs Gusmão.

Do melodrama emerge a opressão

A opção pelo melodrama torna A Vida Invisível uma experiência inesquecível, digna de ser vivenciada nos cinemas. Em duas horas e meia de filme, é impossível não se sentir oprimida. Os signos utilizados pelo diretor contribuem muito para que você comece a se encolher na cadeira e querer chorar.

Para começar, faz calor. Muito calor. Em quase todas as cenas, as irmãs Gusmão transpiram muito. É como se elas estivessem permanentemente desconfortáveis. Por trás do calor, podemos ler que estão pouco à vontade com o destino escolhido pelo pai, um padeiro português. Enquanto Guida foge para se casar, Eurídice vê seu sonho de ser pianista esvair-se entre seus dedos. Ela precisa se casar, logo, e terá que abdicar daquilo que mais ama. O figurino também nos dá uma ideia de opressão. Eurídice está sempre desconfortável em suas roupas, elas são largas e feias demais. É como se refletissem o que a personagem sente. Não existe personalidade nelas. Já o figurino de Guida vai na direção oposta, ou seja, é tudo colorido e apertado.

O aspecto semiótico mais brutal do filme é a violência que perpassa a trama. As mulheres são violentadas, física e psicologicamente, durante toda a história. Ao ser indagado sobre esse aspecto, Karim Aïnouz disse o seguinte:

“A violência maior é quando você está sendo violento, mas você não sabe que você está sendo violento.”

Em cenas aparentemente banais, presenciamos toda a violência a qual mulheres estão sujeitas todos os dias. Quando vai ao médico e descobre que está grávida, Eurídice é agredida verbalmente, porém de forma sutil. O médico, como todos os homens do filme, a controla, tratando-a como uma criança que precisa de rédea curta. Os homens de A Vida Invisível são agentes à serviço do patriarcado. Dessa forma, não podemos ver as ações deles como algo isolado. Como um bom melodrama, o filme potencializa as figuras masculinas e suas ações para fazer uma crítica social contundente dos efeitos do machismo na vida das mulheres. Talvez por isso seja difícil notar características marcantes nas personagens masculinas. Todas parecem iguais, repetem as mesmas ações, mas com pessoas diferentes. O pai de Eurídice é opressor com a filha e a esposa, ao passo que Antenor (Gregório Duvivier) faz o mesmo com Eurídice.

A Vida Invisível

Fernanda Montenegro, durante a coletiva da Mostra São Paulo, classificou o filme como contra o “machão”. Concordo. A Vida Invisível discute a masculinidade tóxica e como ela recai sobre as mulheres. Afinal de contas, os homens também são prejudicados por ideias predatórias, como a necessidade de ser o provedor e demonstrar força. Peter Brooks considera a repressão e a irrupção do reprimido como expressões do melodrama. Uma das cenas mais marcantes do filme é justamente quando a liberdade literalmente queima diante de nossos olhos: Eurídice ateia fogo ao piano.

Anteriormente, ouvimos Eurídice dizer que, ao tocar piano, ela desaparece. Ao atear fogo nesse instrumento, a personagem está desaparecendo para si. Ela abre mão de tudo para abraçar uma vida burguesa ao lado do marido e dos filhos. Dessa forma, o incêndio do piano é a cena que define a mensagem do filme. Mais uma vez, Karim não está fazendo com que sua personagem diga que pretende seguir o destino que lhe foi imposto. Como um bom melodrama, ele se vale de um signo para veicular essa mensagem.

A corrida pelo Oscar

A Vida Invisível é o representante do Brasil na corrida pela indicação à categoria de Melhor Filme Estrangeiro. De acordo com esta reportagem, o filme já cativou atrizes como Isabelle Huppert e Cate Blanchett. A ideia é que ele cative ainda mais atores, já que são maioria entre os votantes da Academia. Eles representam 15% entre os quase 9.000 votantes. Não à toa que A Vida Invisível tenha feito tanto sucesso lá fora. O trabalho de preparação de elenco de Karim foi muito bem pensado. Por exemplo, os atores não podiam ter acesso ao celular. Para estimular a concentração máxima deles, o diretor permitiu apenas que eles bordassem ou lessem revistas dos anos 1950, período em que o filme é ambientado. O resultado é uma interação incrível entre todos eles.

Temos que destacar ainda uma figura muito importante do filme, mas que permaneceu nos bastidores: Rodrigo Teixeira, produtor. A produtora de Teixeira, a RT Features, é responsável por filmes como A Bruxa e Me Chame Pelo Seu Nome. Atualmente, Karim e Rodrigo excursionaram pela Europa e pelos EUA tentando fazer com que o filme se tornasse conhecido. A turnê já está surtindo efeito, pois alguns críticos de peso já classificam A Vida Invisível como um dos favoritos a concorrer à categoria de Melhor Filme Estrangeiro. O cinema brasileiro vive um grande momento nos últimos anos. Apesar de todos os entraves pelos quais a Ancine está passando, nossa arte nunca esteve tão forte e criativa. Somos uma potência em termos de cinema, e acho que está na hora de pararmos de achar que o cinema brasileiro parou de ser inovador na época de Glauber Rocha.

A Vida Invisível é um dos melhores filmes de 2019 e ele se vale de uma fórmula muito conhecida para criar uma história sensível e poderosa. Não precisamos ser necessariamente experimentais para criarmos um filme inesquecível. No fim das contas, o importante é a linguagem com a qual uma história é contada — e a linguagem de A Vida Invisível deixa qualquer novela do horário nobre no chinelo. Viva o cinema brasileiro!