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Durante um Terremoto, um estado de exceção: poemas de Helena Zelic

Cresci achando que, para escrever bem, era preciso ser impessoal. Meus professores me convenceram de que todo bom escritor inventava tudo da sua cabeça e, mais tarde, o feminismo indiretamente me fez tomar birra de análises literárias que consideravam a vida de quem escrevia. Mulheres escritoras sempre tiveram suas vidas inteiras desdobradas em público para que seus livros fossem analisados, homens nunca tiveram que passar por isso. Eu tinha raiva e cruzava os braços e sempre tomava o caminho da literatura como espelho da sociedade, como aprendi que devia ser. Foi fácil acreditar que o autor está e deve sempre permanecer morto. Ainda mais quando tinha as palavras bonitas de Antonio Candido ecoando nos meus olhos beletristas.

Por anos a fio, não consegui aceitar que escritores colocassem suas vidas nas páginas. Tudo precisava ser pura imaginação, sentimento abstrato, teoria afastada. Mesmo quando em poesia. Tudo na boa literatura sempre me pareceu abstração. Precisei quebrar a cara sozinha tentando eu mesma escrever alguma coisa razoável para finalmente entender que em toda e qualquer escrita nossa realidade vai sempre falar alto demais, não tem jeito. Nossa escrita é um pouco metonímia: a parte pelo todo. Sempre tem um pedacinho nosso lá. Tem que ter. Não podemos nos apagar quando escrevemos. Como autores, temos que estar vivos. Mas como leitores, ainda defendo: é preciso matar os autores. Figurativamente, por favor.

Foi portanto uma questão comigo mesma quando precisei e escolhi escrever sobre Durante um Terremoto, novo livro de poesia de Helena Zelic. É estranho ainda escrever “de Helena”, como se ela fosse uma mulher distante e morta em vez de uma amiga de anos que só chamo pelo apelido. É estranho escrever sobre poesia sem focar apenas na forma, nas palavras específicas e no tempo histórico. É estranho o tempo histórico ser agora, ser minha memória, ser durante um terremoto. É estranho nomes não serem abstratos. Mariana, sua musa. Ela não é a Teresa de Manuel Bandeira, que não tem cara ou pele ou osso. Mariana tem carne e voz e pelos. Mariana tocou violão na minha casa e debateu o comunismo e a Tropicália comigo e com seu irmão enquanto comíamos pizza. Mariana fala que nem seu irmão e às vezes isso me dá nervoso porque ele é que esteve ao meu lado durante tanto tempo. A musa desses poemas não é abstrata. O eu-lírico tampouco. É minha amiga. E ela é forte e presente e clara. Não posso matá-la em prol de uma análise literária. Helena escreve: “não consigo imaginar alguém/ que leia este poema/ e não veja nele/ o seu rosto e seus cabelos/ meu rosto/ meus cabelos” e eu também não consigo imaginar. E porque não consigo, traio em parte Antonio Candido. Aqui e hoje, não posso ser uma assassina.

Durante um Terremoto

Não sei como analisar a escrita de Helena Zelic porque a conheço pero no mucho. Ler “Dimensões”, o poema de abertura, é como sentir a Helena ao meu lado. É ouvir sua risada e sua voz arrastada contando sobre sua cachorra em um domingo ensolarado. É conversar com ela em seu mais íntimo, algo que nunca pude fazer em pessoa, porque não temos esse tipo de amizade. Tudo bem, não precisamos. “Dimensões” me lembra que nós duas temos algum nível de fascínio com o espaço, a história e se perguntar sobre a vida de desconhecidos vezes demais. Me lembra que aprendi isso quando li seu primeiro livro, Constelações. Tem um humor próprio dela. Me abraça com o corpo um pouco suado do verão paulista e me dá um gosto de pão-de-queijo na boca.

Sei que Helena conheceu Mariana. Vi suas primeiras interações no Twitter e torci pelo casal como se fossem personagens de um livro (agora são). Sei que Helena foi estudar no Chile. Vi suas fotos e acompanhei suas amizades pelo stories do Instagram. Sei que Helena fez iniciação científica na área de linguística. Estudamos na mesma faculdade. Tudo que sei de Helena Zelic consigo ver vibrantes em seus poemas.

Se eu a conhecesse mais, poderia dizer coisas mais bonitas sobre transformar amor em poesia, sobre a aventura que vem com a saudade, sobre como ela se expandiu com seus estudos. Se eu a conhecesse menos, poderia escrever coisas inspiradoras sobre representatividade de relações românticas entre mulheres, sobre a mistura essencial das línguas e a (des)união latinoamericana, sobre a escolha de termos linguísticos em poemas de amor e luta.

É fácil ver o impacto de sua vida em sua escrita. Helena abre sua intimidade, conta de como é amar Mariana, as coisas que ela lhe diz e a saudade que a fez não saber responder a professora no meio da aula em terras chilenas. Helena Zelic conta das mulheres que conheceu em sua viagem, em sua vida, e as coloca com uma sabedoria que nem todas sabem que têm, como podemos ver em “conversas em ancud” ou “cassandra”. Mas, neste último, ela nos lembra:

“como a dura revolta de nossos ossos,
como as multidões que se levantam,
tu tem direito à tua história.”

Durante um Terremoto é um livro sobre nossos tempos e a nossa história. Helena pergunta “como acordar no dia seguinte/ a um golpe de estado?” e eu sorrio e sinto um aperto no peito porque me fiz a mesma pergunta. Era o primeiro dia dos meus 22 anos e eu me perguntava a questão que leria três anos depois, tendo chegado às mesmas conclusões, aos mesmos sentimentos. Helena me lembra o que o cobrador de ônibus a lembrou no dia seguinte ao golpe e o que faço questão de me repetir todos os dias: estamos vivos.

Estamos vivos e em tremor. Estamos vivos e não temos chão. Não porque ele não exista, mas porque não confiamos mais nele. Se tornou instável. As placas tectônicas nos traíram e se moveram e tremeram tudo, tudo, tudo. Nós, que somos brasileiros, não sabemos o que é esse tremor. Olhamos assustados para quem o conhece. Helena Zelic escreve em “procedimento básico” que essa é a instrução. Devemos imitar os nativos, aqueles que sabem o que fazer quando a terra toda treme “morrendo, não, crescendo/ para onde eu não sei”.

Mas nosso terremoto é metafórico. É um governo desgovernado, notícias duvidosas e avassaladoras, desconhecidos nos atacando. É a incerteza e o absurdo que nos geram o medo profundo do que vai acontecer. Qual é, então, o procedimento básico?

Procurando se alguém já respondeu a pergunta, para não repetir ninguém, encontro no posfácio, Danielle Magalhães escrevendo que em Durante um Terremoto “não há distância que separe amor e política” e eu balanço minha cabeça concordando assiduamente como se estivesse também conversando com ela. Penso que o livro inteiro é construído por distâncias: das mais próximas, de corpos se tocando, às mais longínquas, de satélites que ultrapassam a atmosfera e horizontes que se escondem atrás da cordilheira dos Andes. Os poemas e seus conteúdos se afastam e se aproximam como as placas tectônicas que flutuam no magma. Quando se afastam, fraturas e novas crostas. Quando se encontram, montanhas e terremotos. Qualquer movimento pode ser destrutivo. Qualquer movimento pode criar algo novo. Mas Helena escolhe terremotos. Foi o que ela viveu, é o que ela vive. Mas não se deixem enganar, pois Helena sabe que “depois você abre os olhos/ como um recém-nascido você abre/ e olha as paredes das casas/ elas estão intactas”.

Até quando as paredes das casas são uma metáfora pra nós mesmos e nossa resistência não quero dizer. O que quero é escrever que se tem uma coisa que aprendi ao longo dos últimos anos é que a política é parte fundamental da nossa intimidade e nossa intimidade pode ser profundamente política. Uma afeta a outra, mesmo quando não tenham nada a ver. Helena também aprendeu isso e usa para construir seus poemas, seu livro. As distâncias são confusas porque a vida é confusa e os poemas de Helena Zelic são como a vida em si. Tudo é instabilidade e tremor e o que leio nas palavras de Helena é que devemos deixar essas coisas irem de encontro umas com as outras. O tremor vai acontecer de qualquer jeito, é um fenômeno natural. O procedimento é viver o acontecimento.

Depois de um golpe de Estado, você acorda com o despertador, coloca sua roupa e pega o ônibus cheio enquanto o sol amanhece brilhante como também amanheceu nos dias de aniversário e congelamento da tarifa da passagem. Eu não entendia como era possível viver em tempos de golpes de Estado, governos abertamente torturadores e pessoas fugindo de suas próprias terras. Eu não entendia porque achava que era preciso ser impessoal e abstrato. Mas a vida nos toma por inteiros. É impossível separar o que é real ou imaginário, o que é intimidade e política, o que é cá e lá. Aprendi na marra que só existe um lugar: aqui. E quando, em seu último poema, Helena volta deixando tudo que era emprestado mas levando consigo tudo que precisou escrever, tudo que não se deixou esquecer como o mantra no voo da volta, sei que é apenas mais um movimento. “que a eternidade dos homens e mulheres é a mudança”, ela escreve em “poema da dialética”, o mesmo que se pergunta sobre golpes de Estado.

Essa mudança causa tremores. Essa mudança é o voo da ida e da volta. E quando Durante um Terremoto termina com ela dizendo que esse é seu estado de exceção, meus olhos se encheram de lágrimas. Eu sabia que ela estava falando do Chile, eu sabia que ela estava falando da viagem. Mas seu livro nos mostra que tudo é viagem porque tudo é aqui. Mariana está cá e lá, as línguas se misturam, somos todas mujeres amables. E quando meus olhos se encheram de lágrimas, eu soube que não era sobre ela, Helena Zelic, ou sobre as passagens ou sua namorada. Era sobre a chave — misteriosa e inexplicável chave que aparece de repente em vários poemas ao decorrer do livro. Era sobre como tudo no mundo é estado de exceção.


**A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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