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A representação LGBTQIA+ e os personagens queer coded do período do Código Hays

A Era do Jazz foi um período marcado por excessos em Hollywood. Ela aconteceu durante os anos do cinema mudo e tinha como características centrais o hedonismo, o luxo e a selvageria. Assim, esse período mostrava que glamour e decadência eram duas faces da mesma moeda, uma ideia que refletia diretamente na produção cinematográfica e resultava em títulos considerados “à frente do seu tempo”.

Essas questões foram capturadas com brilhantismo por Damien Chazelle em Babilônia (Babylon, 2022), um filme que tanto presta uma homenagem ao contexto quanto caracteriza Hollywood como uma “máquina de moer gente” e uma cidade dada a todo o tipo de “pecado”. Colhendo inspiração em figuras que realmente existiram, Chazelle consegue mostrar a efervescência de um momento no qual a indústria ainda dava os seus primeiros passos. Mas, acima de tudo, retrata como ela sempre esteve pronta para proteger os próprios interesses acima de qualquer coisa, inclusive das estrelas que criava somente para destruir com um estalar de dedos.

Conforme a década de 1920 se aproximava, essa visão mercadológica se fazia notar com ainda mais clareza. Como a Europa estava enfraquecida devido à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a produção cinematográfica estadunidense encontrou espaço para crescer e se transformar em um produto de exportação. A demanda por entretenimento era constante, o que culminou no surgimento do studio system, no qual oito companhias — Paramount, Universal, Fox, Columbia, United Artists, Warner, MGM e RKO — possuíam os seus próprios quadros de funcionários, dos produtores aos atores; e também os seus próprios cinemas, que se destinavam a exibição das obras realizadas por elas.

Código Hays

Com tanto em jogo, os estúdios precisaram encontrar uma maneira de recuperar a sua imagem diante do público, visto que ela tinha sofrido uma série de desgastes. Um dos maiores baques aconteceu em 1921, quando Roscoe “Fatty” Arbuckle, um dos comediantes mais populares do período, foi acusado de estupro e assassinato. Então, a medida adotada para essa reabilitação foi o Código Hays, um “conjunto de leis” que tinha como objetivo regular as temáticas que poderiam ou não ser retratadas nos filmes. O Código recebeu este nome por causa de Will H. Hays, o presidente da Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes da América (MPPDA, na sigla original).

Embora a “legislação” tenha dado os seus primeiros passos em 1924, foi somente durante a década de 1930 que ela se tornou oficial. Vale pontuar, porém, que o período de maior repressão começou em 1934, quando o departamento responsável pelo controle moral das produções cinematográficas caiu nas mãos de Joseph Breen, um ativista religioso que foi apelidado de “Hitler de Hollywood”. A partir desse ponto, o Código Hays proibia, entre outras coisas, retratos da “perversão sexual”, um termo usado para fazer referência a homossexualidade, vista pelos conservadores da época como algo que precisava ser “parado” dado o crescimento da cultura queer durante os anos 1920, especialmente através da vida noturna de cidades como Nova York.

Contudo, a proibição não significou que personagens LGBTQIA+ desapareceram do cinema durante os anos de vigência do Código, que permaneceu ativo até 1968. Na verdade, os realizadores precisaram usar a criatividade para driblar a censura, o que rendeu uma série de personagens queer coded — termo usado para falar a respeito de uma representação que é feita nas entrelinhas e não recebe nenhum tipo de confirmação do roteiro. Se atualmente o uso desse recurso é visto como problemático e bastante debatido enquanto algo nocivo para a comunidade pelo reforço de estereótipos, durante o período de censura em Hollywood ele representou aquilo que manteve pessoas queer presentes nas telas de cinema.

queer coded - Código Hays

De uma forma geral, as produções de 1930 usavam o humor herdado do cinema mudo para fazer este tipo de representação, especialmente em filmes considerados “para a família”, como os musicais. Um exemplo disso é A Alegre Divorciada (The Gay Divorce, 1934). Nele, Rodolfo Tonetti (Erik Rhodes) possui uma série de trejeitos que poderiam ser descritos como afeminados e em uma determinada cena diz para outro personagem que a sua esposa está segura na companhia dele, visto que Tonetti prefere espaguete a mulheres (“Your wife is safe with Tonetti. He prefers spaghetti”, no idioma original). Esse tipo de piscadela para o público assegurava que as produções passariam pelos censores sem que os realizadores abrissem mão da sua visão para os personagens.

Outro artifício bastante usado nessa época era a bissexualidade. O cinema se aproveitava da ideia de confusão até hoje associada a essa orientação para conseguir representar personagens LGBTQIA+ e dois longas importantes do contexto, Marrocos (Morocco, 1930) e Rainha Cristina (Queen Christina, 1933), ilustram bem essa questão.

Em Marrocos, ainda nos primeiros momentos do filme, Marlene Dietrich canta de forma provocativa e está vestindo um smoking que se tornou simbólico para a comunidade queer ao longo dos anos. Então, ela se encaminha para o centro da tela e beija uma mulher que está assistindo a sua apresentação. A cena não dura mais do que alguns segundos e ainda assim permanece muito mais no imaginário de quem assiste do que o romance entre Amy Jolly (Dietrich) e um soldado. Não somente pelo fato de que se trata do primeiro beijo entre mulheres do cinema estadunidense, mas pela transgressão e pela provocação, características que se tornariam marca registrada da atriz ao longo de sua carreira. Tanto faz que Marrocos trate esse beijo como uma mera brincadeira da protagonista e escolha colocá-la em um relacionamento com um homem porque isso não apaga a potência da cena em um contexto no qual pessoas LGBTQIA+ só tinham permissão para existir na clandestinidade.

Rainha Cristina segue um caminho similar mesmo retratando uma figura histórica, a Rainha Cristina da Suécia, cuja identidade de gênero se desviou da norma desde o momento do seu nascimento. Isso porque primeiramente ela foi declarada como um menino e, posteriormente, os porta-vozes do rei afirmaram que tudo foi uma confusão do seu pai e, na verdade, o bebê que acabara de nascer era uma menina. Devido a isso existem especulações de que Cristina era interssexo, mas é importante lembrar que as informações não são conclusivas devido à época em que a rainha viveu, o século XVII. Para além dessa possibilidade, uma vez que Cristina se tornou adulta, passou a recusar todos os casamentos arranjados pelos seus conselheiros e chegou a viver um romance com uma das suas aias, Ebba Sparre, a quem chamava de “minha companheira de cama”.

Portanto, embora o filme de Rouben Mamoulian nos mostre dois beijos sáficos e conserve o gosto de Cristina (Greta Garbo) por roupas masculinas, ele envereda para um romance entre a rainha e Antonio (John Gilbert). Inclusive, o longa dá a entender que o motivo da protagonista para abandonar o seu reino foi o amor que sentia por ele, o que é bastante distante da verdade, visto que ela escolheu deixar a Suécia para se dedicar à cultura e às artes, dois dos seus maiores interesses em vida. Além disso, a rainha morreu solteira.

A década de 1930 também foi palco do surgimento dos filmes de monstro feitos pela Universal Studios, muitos deles queer coded, especialmente os assinados por James Whale, um diretor abertamente gay. Entretanto, se mostra mais proveitoso abordar A Filha de Drácula (Dracula’s Daughter, 1936) porque esse filme marca o nascimento de um tipo de personagem que se tornou bastante comum no cinema de horror durante a década de 1970: a vampira lésbica.

Em linhas gerais, A Filha de Drácula conta a história da condessa Marya Zaleska (Gloria Holden), que acreditava que se livraria da sua sede de sangue depois da morte de Dracula, o seu pai. Entretanto, uma vez que os seus desejos permanecem e ela vê todas as suas tentativas de extinguir a “doença” fracassando, Marya acaba recorrendo à ajuda de Dr. Garth (Otto Krueger). Embora o simples ato de se consultar com um psiquiatra torne o subtexto queer escancarado, especialmente em um período no qual a homossexualidade ainda era considerada doença, vale comentar que existem associações mais diretas entre o comportamento da condessa e uma sexualidade que se desvia da norma. A título de ilustração, é possível citar o fato de que ela se mantém alheia à atenção que recebe dos homens, mas em um determinado momento leva uma moça para a sua câmara na intenção de “devorá-la”. Durante essa sequência, são feitas várias insinuações avançadas para a época.

Essa associação entre mulheres, monstruosidade e homossexualidade aparece em várias produções do final dos anos 1930 e se torna ainda mais marcante durante a década de 1940, o que fortaleceu a conexão entre a comunidade LGBTQIA+ e a vilania. Desse modo, as formas de representação se tornaram mais sombrias, algo que também foi reforçado pela chegada da Segunda Guerra Mundial, fato impulsionador do crescimento do noir, um estilo de cinema marcado por personagens moralmente ambíguos. Então, conforme os gêneros vinculados ao horror se tornavam os principais veículos para personagens queer, eles assumiam o posto de assassinos frios e/ou capazes de torturar psicologicamente pessoas inocentes.

Um dos maiores exemplos disso é Mrs. Danvers (Judith Anderson) de Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca, 1940). Ela é a governanta da casa de Maxim de Winter (Laurence Olivier), um homem rico que foi casado com a personagem que empresta título ao longa. Depois que Rebecca desapareceu misteriosamente, Maxim acabou se casando novamente. Embora Danvers tenha permanecido na mansão para servir à nova Mrs. de Winter (Joan Fontaiane), a sua fidelidade a antiga patroa a impedia de desempenhar essa tarefa e quem assiste consegue perceber que a governanta está apenas camuflando a sua paixão com servidão. Sempre com um olhar fixo e disposta a aterrorizar a sua nova patroa, Mrs. Danvers está constantemente falando sobre como Rebecca é alguém incomparável. Até que, em determinada cena do longa, o roteiro torna as suas motivações um pouco mais claras fazendo com que ela cruze os limites da relação entre patrão/empregado ao mexer na gaveta de lingerie de Rebecca e tocar algumas peças de forma desejosa.

queer coded - Código Hays

Esse tipo de retrato de mulheres que reprimem o seu desejo sexual por outras mulheres também se faz presente em Sangue da Pantera (Cat People, 1942), de Jacques Tourneur. Nele, Irena (Simone Simon) é uma jovem imigrante sérvia atormentada por uma crença da sua vila de origem: ela acredita ser descendente das mulheres-pantera. Desse modo, vive a sua vida reclusa nos Estados Unidos até se casar com Oliver Reed (Keith Smith). Porém, o casamento passa por algumas dificuldades desde o início porque Irena se recusa a consumá-lo afirmando que, caso se sinta sexualmente excitada, se transformará em um animal com sede de sangue. Então, sem compreender o “problema” da esposa, Oliver a envia para o consultório do Dr. Louis (Tom Conway) e o psiquiatra passa a investigar o que está acontecendo com Irena.

Logo, uma possível leitura de Sangue da Pantera é que Irena usa a maldição dos seus descendentes para não precisar explicar o fato de que não sente desejo sexual por homens. Primeiramente, é importante citar que as motivações da protagonista para se casar foram impulsivas. Além disso, elas têm conexão com o seu medo de ser vista como pária. Em um primeiro momento, o espectador é levado a pensar que isso se deve à transformação que ela alega sofrer, mas posteriormente a hipótese da homossexualidade começa a tomar forma, especialmente por meio da cena em que Irena e Oliver estão comemorando o casamento em um restaurante. Nessa ocasião, uma mulher encara insistentemente a protagonista. Depois, ela se aproxima e, então, se refere a Irena como “minha irmã”. Ou seja, estabelece um laço através de um reconhecimento mútuo. Depois desse contato, Irena adota uma expressão de medo devido à possibilidade de que o seu marido também note a existência de uma ligação entre ela e a mulher. Esse tipo de medo de ser reconhecida enquanto lésbica por associação com uma lésbica é algo que dispensa maiores explicações e consolida Sangue da Pantera como um exemplar de horror queer da década de 1940.

Existem vários outros exemplos capazes de ilustrar a relação existente entre pessoas LGBTQIA+ e algum tipo de monstruosidade neste período, como Brandon (John Dall) e Phillip (Farley Granger) de Festim Diabólico (Rope, 1948) e Joel Cairo (Peter Lorre) de Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, 1941). Porém, conforme a década se encaminhava para o final e os Estados Unidos passavam algumas mudanças sociais, a forma de retratar a comunidade também se tornou diferente. Assim, nos anos 1950 o melodrama passou a ser o principal veículo para essa representação, talvez apresentando os primeiros indícios de um tipo de narrativa que persistiu até um passado muito recente: a história do gay que morre de maneira trágica por tentar viver a sua sexualidade. Por outro lado, essas histórias foram responsáveis por tornar as representações da comunidade LGBTQIA+ mais tridimensionais.

queer coded - Código Hays

De encontro a isso, cabe lembrar Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955). Nas palavras do próprio roteirista, o filme aborda a história de uma geração que se viu forçada a crescer do dia para noite. Esse processo para Plato (Sal Mineo) e Jim (James Dean) significou lidar com questões relacionadas à sexualidade. Embora elas sejam muito mais claras da parte de Plato, que chega a sofrer bullying pelo seu jeito “diferente”, o roteiro é aberto o suficiente para permitir a interpretação de que havia correspondência da parte de Jim. Inclusive, os dois não têm medo de demonstrar o seu afeto um pelo outro, algo que abre margem para que a heterossexualidade do personagem de James Dean seja questionada mesmo que ele se envolva romanticamente com Judy (Natalie Wood). Vale comentar que a Warner, estúdio responsável por Juventude Transviada, chegou a ser lembrada pelos censores do Código Hays a respeito dos perigos de representar a homossexualidade em tela porque era um fato conhecido de todos os envolvidos nos bastidores da produção que Plato era um personagem gay.

Também na década de 1950, outro longa notável é Chá e Simpatia (Tea and Sympathy, 1956), dirigido por Vincent Minelli. Embora este não seja um filme sobre um personagem LGBTQIA+, ele mostra de forma bastante eficiente os efeitos da homofobia e da masculinidade tóxica na formação identitária da comunidade. Em Chá e Simpatia, Tom (John Kerr) é um rapaz que estuda em um colégio interno masculino e é alvo do desrespeito dos colegas por gostar de “coisas de mulher”. Entretanto, ele é apaixonado por Laura (Deborah Kerr), a esposa do diretor, Bill (Leif Erickson), um homem machista que endossa as práticas violentas contra Tom. Nesse ambiente tóxico, sensibilidade e homossexualidade são constantemente confundidas, de modo que a resposta para quem não “age como homem” é a homofobia, um discurso que infelizmente permanece atual. Assim, o personagem de Chá e Simpatia não é necessariamente queer coded para o público, que sabe do seu relacionamento com Laura, mas recebe o mesmo tratamento que uma pessoa LGBTQIA+, o que acaba tornando-o uma representação eficiente da comunidade nos anos 1950.

Nesse ponto, é interessante ressaltar que, conforme a década de 1960 se aproximava, o Código Hays começava a perder a força. Na verdade, isso foi parte de um processo iniciado ainda nos anos 1940, um período no qual os diretores, produtores e estúdios começaram a se cansar das imposições. A título de ilustração é possível citar a batalha de Howard Hughes contra Joseph Breen pelo filme O Proscrito (The Outlaw, 1941), que levou cinco anos para ser lançado e não conseguiu o selo de aprovação do Código pela recusa do diretor de cortar os closes nos seios de Jane Russell. Outro realizador que entrou em embate direto com os censores foi Alfred Hitchcock, que filmou uma sequência de três minutos composta por beijos de três segundos de duração em Interlúdio (Notorious, 1946), visto que beijos longos eram proibidos.

Para além das tensões dentro da indústria, o cinema começava a sentir a aproximação de algumas ameaças externas, como a popularização da TV — cuja Era de Ouro nos Estados Unidos data de 1948, ano que marca a migração de artistas de teatro para essa mídia e a invenção do teleteatro, um tipo de dramaturgia que anos mais tarde evoluiria para o formato de sitcom devido à presença da plateia nas gravações. Portanto, Hollywood precisava encontrar formas de oferecer ao público algo que ele não pudesse assistir no conforto da sua casa, de modo que as imposições do Código Hays começavam a pesar cada vez mais. Além disso, o cinema europeu já havia recuperado a sua força e lidava com o sexo de forma muito mais natural do que o estadunidense no contexto de 1950. Logo, o desejo por mais liberdade supostamente serviria para modificar vários tipos de representação em Hollywood, tornando os anos 1960 um período no qual, supostamente, o queer coding não seria mais tão necessário.

Porém, dizer que alguma mudança substancial aconteceu seria uma mentira. Na verdade, tem-se uma continuidade de tropos já conhecidos, como o da monstruosidade, cujo exemplo de maior destaque é Norman Bates (Anthony Perkins) em Psicose (Psycho, 1960), um personagem de trejeitos afeminados e sexualidade ambígua. O principal elo de ligação entre Bates e a comunidade LGBTQIA+ é o fato de que ele se veste como a sua mãe. Nesse contexto, a homossexualidade e a transgeneridade eram percebidas como sinônimas pela sociedade, o que permitia essa leitura do personagem. Vale ressaltar também que a relação próxima que Norman mantinha com a mãe era outro fator que contribuía para essa percepção porque um dos termos usados neste período para fazer referência a homens gays era “mamma’s boy” (garotinho da mamãe, em tradução livre).

Atualmente, é fácil perceber este tipo de construção como danosa e ofensiva. E, apesar de não existir justificativa aceitável para a associação entre pessoas queer e personagens monstruosos, é importante lembrar que Psicose foi lançado nove anos antes de Stonewall, o marco zero da luta por direitos LGBTQIA+. A existência do movimento contribuiu para que algum progresso fosse feito em termos de representação na década de 1970, mas, nos anos 1960, outras batalhas ideológicas eram travadas nos Estados Unidos e isso não é desimportante quando se pensa o universo do cinema — nada, afinal, existe descolado de um contexto sócio-histórico. Beira o utópico esperar um tratamento diferente para questões que sequer eram pautadas e em uma época na qual foi necessário desenvolver um guia orientando pessoas LGBTQIA+ a respeito de quais espaços elas podiam ocupar.

Apesar dos equívocos, os anos 1960 também foram uma época na qual os retratos de personagens queer no cinema ganharam mais nuances, expandindo o que havia sido feito no melodrama de 1950. O Pecado de Todos Nós (Reflections in a Golden Eye, 1967), de John Huston, é um filme que vai de encontro a isso. Ambientado em uma base militar em um período livre de guerras, o longa acompanha os passos de Weldon Penderton (Marlon Brando), um major que passa os seus dias ensinando os cadetes. Penderton é casado com Leonora (Elizabeth Taylor) e o relacionamento dos dois possui uma dinâmica inquietante.

A tensão entre eles é o primeiro indício dado pelo filme de que existe algo fora do lugar. Até termos contato com a sua vida privada, a sexualidade de Waldon sequer é um assunto sobre o qual pensamos. Entretanto, uma vez que o casal é inserido no ambiente doméstico, nota-se que o major se esforça ao máximo para esconder que é gay, mas isso não escapa do olhar de Leonora, possivelmente pela forma como ela aprendeu a olhar para si mesma. A personagem de Elizabeth Taylor passou toda a sua vida na posição de “bela do Sul”. Dessa forma, está acostumada a ser desejada pelos homens e parece acreditar que eles lhe devem esse tipo de sentimento. Então, quando o desejo lhe é negado por Waldon, Leonora passa a fundamentar toda a raiva que sente por ele em cima desse fato e consegue perceber o que existe por trás da indiferença com que ele lhe trata. De certa forma, é a sua feminilidade que segura o centro de todo o conflito que se desenrola naquela base e mesmo olhando rapidamente para a personagem é possível perceber porque um homem como Penderton se sentiria assustado e acuado na sua presença.

Para além da construção da dinâmica do casal, a própria forma como a identidade de Waldon se estrutura é bastante rica. Em diversas cenas, sempre anteriores a situações sociais, ele ensaia diante do espelho, praticando comentários espirituosos e sorrisos tímidos que acredita precisar dominar para convencer os demais de que não existe nada de errado com ele. Embora o major esteja interpretando este papel muito mais para si mesmo do que para terceiros, esse é um tipo de farsa que ele não tem como sustentar. A sua sexualidade está no seu interior e um casamento de fachada ou um posto alto em uma base militar não são suficientes para que ele consiga negá-la para si mesmo, especialmente quando a figura do cadete Williams (Robert Forster) surge despida entre as árvores ou espreita a sua casa no escuro.

Todos esses elementos servem para que quem assiste perceba o trabalho duro que a repressão sexual é para aquele homem, o quanto a sua vigilância é constante. As lentes de John Huston captam com precisão o desconforto que Waldon Penderton sente em ocupar o próprio corpo, do qual ele tenta se alienar de todas as formas para não precisar reconhecer os seus desejos por outro homem. Quando tudo isso se combina, fica claro que o desfecho de O Pecado de Todos Nós só poderia ser a tragédia anunciada por meio da citação de Carson McCullers, autora da obra que deu origem ao roteiro. E, surpreendentemente, o condenado nesse desfecho não é o personagem homossexual — daí a ideia de que o filme representa um avanço em relação à década anterior.

No ano seguinte ao lançamento de O Pecado de Todos Nós, o Código Hays chegou ao fim. Este caminho já vinha sendo trilhado desde 1964, quando O Homem do Prego (The Pawnbroker) conseguiu o seu selo de aprovação mesmo com cenas que mostravam os seios das atrizes Linda Geiser e Thelma Oliver. Dois anos depois disso, em 1966, um selo de “recomendado para o público adulto” seria atribuído a Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (Who’s Afraid of Virginia Woolf?). A partir disso, a MPCAA deu os seus primeiros passos rumo ao sistema que se tornaria conhecido como Classificação Indicativa, utilizado até hoje no território estadunidense como forma de determinar o conteúdo das produções e por que tipo de público elas podem ser consumidas.

Assim, durante as décadas seguintes não existiam mais restrições quanto ao que poderia ou não ser representado nos filmes. Devido a isso, alguns avanços foram sentidos, mas não se pode dizer que o uso do queer coding diminuiu drasticamente. Talvez a prática apenas tenha sido transportada para outros veículos, como as animações da Disney dos anos 1980 e 1990, que contavam com personagens como Scar e Ursula (O Rei Leão e A Pequena Sereia, respectivamente), cuja sexualidade ambígua sempre foi alvo de debates. Coincidentemente, ambos são os vilões das suas respectivas histórias e Ursula foi inspirada em uma figura real, a drag queen Divine.

Deixando o passado de lado e olhando para as últimas duas décadas, personagens como Ryan (Lucas Grabeel), de High School Musical (High School Musical, 2006), continuam marcando presença na cultura pop vez ou outra. E reconhecer isso não é ser pessimista e diminuir os avanços inegáveis da representação LGBTQIA+ no audiovisual. É, na verdade, deixar claro que ainda existe um caminho a ser trilhado e ele é tão longo quanto o que foi percorrido até aqui. Talvez, a grande diferença dos tempos do Código Hays para o período atual é que quando um caso de queer coding acontece o olhar de quem assiste já está treinado para identificar o uso e apontar os motivos pelos quais a prática deve ser coibida. Mas isso só acontece porque as ferramentas para tal existem em 2023 e elas nem sempre estiveram à disposição da comunidade LGBTQIA+. Portanto, ao pensar sobre o passado das coisas é preciso ter menos pressa em fazer análises condenatórias. É importante compreender que o que está disponível para nós atualmente foi fruto de construção. E isso inclui reconhecer o papel das representações equivocadas de outros tempos porque sem elas seria impossível traçar modelos positivos.