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Os finais quase felizes de Ted Lasso

Após três temporadas, altos índices de aprovação da crítica e do público, 40 indicações ao Emmy, sendo premiado 11 vezes, Ted Lasso chegou à sua última temporada entregando finais (quase) felizes para seus personagens. Mesmo tornando-se a comédia favorita de muitos, a série não se limita a piadas, trocadilhos e (maravilhosas) referências a cultura pop, mas entrega momentos complexos de melancolia em cada uma das trajetórias exploradas. Ao chegarmos ao fim da série, navegamos por essas complexidades e entendemos que seu objetivo nunca foi resolver todas as questões de forma feliz, mas abordar e refletir sobre os ciclos dos relacionamentos — os bons e os ruins.

Ao longo desses anos, o personagem-título ficou conhecido por seu constante — e muitas vezes, irritante — otimismo e punch-lines em todas as situações e pela jornada conturbada e complexa para entender seu lugar no mundo. Mudar de país e de emprego, se divorciar, ver a ex seguir em frente, acompanhar o crescimento do filho a um oceano de distância, treinar um time de um esporte que não se tem o mínimo de conhecimento e construir relacionamentos levou Lasso (Jason Sudeikis) para o ápice e para o fundo do poço, tudo isso quase ao mesmo tempo.

Ted Lasso

Não é preciso muitos episódios para entender que a série trata de relações humanas, sejam amorosas, fraternais, profissionais e até rivais. Ted é o ponto central das relações; é nele que elas se encontram, cruzam e se afastam. Com o decorrer dos episódios, a série ainda ganha segurança para desenvolver esses relacionamentos sem a presença do protagonista, mesmo que ele tenha sido o ponto de partida ou, até mesmo, aquele que dá suporte em momentos de fragilidades — o que se torna essencial para que o desfecho seja entregue. A própria abertura da série nos escancara isso: Ted chega e as cadeiras ao seu redor mudam de cor e, com isso, todas as outras vão mudando junto, até formar a “Ted Lasso”, voltando ao ponto inicial, ao som do refrão da música tema “All That You Get”: “Yeah, it might be all that you get/ Yeah, I guess this might well be it/ Well heaven knows I’ve tried [“Sim, é isso que você tem/ Sim, acho que pode muito bem ser isso/ Bom, Deus sabe que eu tentei”]. Se formos além na música assinada por Marcus Mumford, vemos que ela fala sobre se apoiar e estar lá por outra pessoa.

“Know my hands won’t be tied down
And I will not lay them down, ‘cause I can finally see the truth
So simple, but so clear
Accepting an ocean’s depths were out of reach for me and you
If you’re coming up for air, breathing in
You know I’ll be there when you first begin
And when everybody’s telling us we
Have no time, we’ll prove ‘em wrong again”

[“Saiba que minhas mãos não estão amarradas
E que não vou te largar, porque posso ver a verdade
É tão simples, mas tão clara
As profundezas do oceano estão longe de nós
Se você subir para respirar
Você sabe que estarei lá quando começar
E quando todos nos disserem
Que não temos mais tempo, mostrarei que estão errados”]

Ted Lasso

Muitos personagens são desenvolvidos em cada uma das temporadas, uns com mais destaque do que outros, a depender do ponto da narrativa, mas em cada um podemos ver como os relacionamentos são essenciais para o seu crescimento e que cada um está em busca pelo próprio final feliz. Essa busca é feita de forma ativa, cada um tem a consciência de que o estado em que está não é suficiente e que não é o melhor que pode ser, mas se sente perdido porque não sabe como chegar nesse “final feliz”. A série acompanha essas histórias porque, no fundo, todos acreditam (believe) que podem chegar lá.

Ted chega em Londres acompanhado do amigo e colega Beard (Brendan Hunt), acreditando que essa nova fase será incrível, mas ele precisa lidar com uma torcida que o rejeita, um time que não vê credibilidade nele e com Rebecca (Hannah Waddingham), que tenta conduzi-lo ao fracasso a fim de satisfazer seu desejo de vingança, além de estar em negação com o fim do seu casamento e a distância de seu filho. Qualquer pessoa nessas condições poderia colapsar facilmente, mas não Ted — não por enquanto. Os primeiros episódios mostram seu lado cômico, otimista e que, de certa forma, é essencial para a construção da sua relação com o time, fazendo com que cada jogador se sinta a vontade com ele e possa se abrir para esse novo momento. Ao mesmo tempo, Ted tem Beard ao seu lado, que é quem escuta, aconselha e encoraja o personagem em relação ao trabalho, à família, ao time e, eventualmente, à saúde do amigo. No momento em que Ted consegue reconhecer seus problemas de ansiedade e pânico, o amigo é o primeiro a demostrar que está ali para ele e também o defende quando a mídia expõe a situação. Ao mesmo tempo, Ted também acolhe o amigo quando necessário, mas existe espaço entre os dois para que construam relacionamentos além deles: cabe a Beard, na última temporada, a decisão de perdoar e trazer Nate (Nick Mohammed) de volta para o time.

Por falar em Nate, the Great, esse é um personagem complexo e que tomou rumos inesperados ao longo da segunda temporada. Como a maioria dos personagens, sua trajetória começa muito antes daquilo que vemos na tela: ao não ser reconhecido e valorizado como deseja por sua família e pelo time, Nate é inseguro e depende da aprovação do outro para sentir sua presença validada. Ted é o primeiro a vê-lo e o faz ser visto, passando a incluí-lo nas decisões do time e com que os outros jogadores o vejam, respeitem e desejem sua presença. Porém, quando Roy (Brett Goldstein) passa a integrar a equipe de técnicos e o time se interessa pelo o que ele tem a falar, Nate fica enciumado, se sente excluído e apagado outra vez.

Como Roy entra na equipe pelo desejo e esforço de Ted, Nate se sente traído e as feridas são reabertas, o que o leva a uma jornada de traição e rebeldia que termina com ele sendo técnico do time de Rupert (Anthony Head). A terceira temporada é essencial para Nate entender que, para ser visto, não é necessário humilhar o outro, que Ted o valorizava como pessoa, enquanto Rupert o via apenas como um peão em um jogo de poder contra Rebecca, e que afetos não são dados, mas sim construídos.

Rupert é um personagem que tem uma relação indireta com Ted, através de Rebecca, sua ex-esposa. Com a ideia de se vingar pós-divórcio, Rebecca quer destruir a única coisa que Rupert amou: o AFC Richmond e para isso contrata um técnico que nunca ouviu falar dos princípios básicos do futebol. O que ela não esperava era que ele treinasse os jogadores para serem pessoas melhores e, por consequência, um time capaz de aprimorar jogadas e ter relativo sucesso. Ted conquista a amizade e confiança de Rebecca logo na primeira temporada, com biscoitos, ouvindo-a, aproximando-a do time, criando nela o desejo de fazer parte daquele grupo. Assim, passamos o resto da série vendo os dois compreendendo as dores um do outro e encorajando-se mutuamente a enfrentar suas angústias: o divórcio, a dependência emocional, os problemas de saúde mental e o medo do fracasso.

Entre as muitas cenas dos dois, a que mostra esse apoio não só na dor, mas também as pessoas que são, é o funeral do pai de Rebecca. Ted se atrasa para a cerimônia por conta de um ataque de pânico causado pelas lembranças de quando o seu próprio pai morreu, porém, ao chegar na igreja e ver a amiga com dificuldade de fazer o discurso e murmurando a letra de “Never Gonna Give You Up”, até se ver envolta pelas lágrimas e pelo clima pesado do funeral, Ted continua a cantar e puxa o coro para que o time, os amigos e a família cantem junto com Rebecca. O refrão da música traduz, perfeitamente, a relação dos dois: “não vou desistir de você, não vou te deixar, não vou dizer adeus.” Ao romper com a sua amargura, Rebecca também se permite abrir para outras amizades essenciais para o desenvolvimento da personagens: Higgins (Jeremy Swift) e Keeley (Juno Temple).

Ted Lasso

Higgins é um personagem, inicialmente, inseguro e que se deixa passar por cima, precisando aprender a se impor e a ser respeitado. Quando Rebecca o demite, na primeira temporada, e logo depois pede para que ele retorne, os dois têm uma conversa sincera sobre como Higgins se sente desvalorizado e que só está tentando fazer o melhor que pode, mesmo que discorde do plano de Rebecca de afundar o clube com Ted; enquanto Rebecca conta que se ressente dele por ter acobertado os casos de Rupert na época em que era casada, mostrando que seu desejo por vingança vem do lugar de ter se sentido humilhada. A partir desse momento, ambos concordam em construir uma relação que fosse deles, sem aquilo que foi machucado por Rupert antes. Esse momento é importante para ambos. Higgins também passa a ser valorizado pelo restante do time, o que nos leva, na segunda temporada, a um dos episódios que mais aquecem o coração: a família de Higgins acolhendo os jogadores durante o Natal, abrindo sua casa para as tradições de cada um.

Já a relação com Keeley é muito importante em uma história em que a maior parte dos personagens ainda são homens. Keeley e Rebecca são diferentes em vários aspectos: faixa etária, estilo, desejos, a forma como se comportam, o que esperam de si mesmas, o que buscam no outro. Essas diferenças estão em constante contraste e são valorizadas pelas duas, que encorajam  uma à outra a crescer e acolher momentos de fragilidade. Keeley vê em Rebecca aquilo que ela quer ser, enquanto Rebecca tenta proteger a amiga das dores que ela já viveu, porém, a jornada de ambas mostra que, por mais que queira o melhor uma para a outra, é necessário deixar que vivam cada experiência em seu próprio tempo: só assim Keeley aprende que é capaz de fazer mais do que espera de si e Rebecca entende que o seu passado não define o que ela pode alcançar no futuro.

Como dito, Ted Lasso é uma série que traz muitos personagens masculinos, que também vão ter suas jornadas individuais, que vão entender suas identidades e como se construir em coletivo — Roy, Jamie (Phil Dunster), Sam (Toheeb Jimoh), Colin (Billy Harris) e Isaac (Kola Bokinni) são os principais destaques. O time é composto por homens entre 20 e 30 anos, a maioria saída de seu país de origem para jogar na Inglaterra. Eles são rostos de campanhas publicitárias de grandes marcas, seus corpos estão em constante observação e julgamento pela mídia e pela torcida, expectativas são criadas por todos os lados. Poderíamos ter um show de horrores de personagens que precisam provar sua masculinidade pela braveza, seriedade e força, mas a série nos surpreende com personagens vulneráveis, trazendo diversas formas de masculinidade, retratadas de forma acolhedora: desde a constante referências a comédias românticas e musicais (gêneros cinematográficos frequentemente desprezados e associados a mulheres) até a conversas sobre o que sentem, seus medos e o constante companheirismo. Jamie e Roy são personagens opostos, que se bicam desde o primeiro episódio e que, ao longo de três temporadas, aprendem o que fez o outro ser do jeito que é, e é compreendendo suas dores que eles descobrem uma amizade inspiradora de se ver. Os dois passam do lugar de brigar pela atenção de Keeley e pelo destaque dentro do time, para o momento em que Jamie é humilhado pelo pai na frente do time e é Roy quem o acolhe ou quando Jamie ensina Roy a andar de bicicleta — nessa cena, não sabíamos se ríamos ou se chorávamos com o belo desenvolvimento.

Depois de tanto crescimento, era esperado que a série colocasse um ponto final em cada uma das narrativas, mas não é exatamente isso que acontece. Sim, a série conduz as narrativas para um lugar de “antes se tinha essa crise, agora ela não existe mais”, porém, Ted Lasso começa no meio da jornada de cada um e encerra-a deixando claro que esses caminhos continuam, agora, a partir de pontos mais maduros em cada um. A série encaminha todos para a resolução de seus principais conflitos, mas ainda deixa um gosto amargo com a saída de Ted, ainda mais depois de sabermos que, mesmo com a vitória no último jogo que vemos, ela ainda não foi o suficiente para ganhar o campeonato — o que não importa muito, porque podemos ver um time unido, confiando um no outro e celebrando um ao outro.

Não é difícil torcer para o Richmond, querer ver sua vitória e se frustrar com as derrotas, mas, assim como a relação de Ted com o time foi além de treiná-los enquanto jogadores, a nossa relação com os personagens é para vê-los crescer, indo além das táticas, dos nomes complicados das jogadas e da esperança de que, pelo menos na última temporada, teremos a tão sonhada vitória — tudo isso, ao modo Richmond. O time até ganha a partida final, mas os pontos da temporada não são suficientes para fazê-los campeões e Ted precisa voltar para seu filho.

“Não se importe tanto com as vitórias ou derrotas. Apenas ajude esses caras a serem a melhor versão de si, dentro e fora do campo. Essa é a coisa mais importante que temos para fazer.”

A volta para os Estados Unidos representa para Ted que sua missão em Richmond terminou e é preciso estar com seu filho, mesmo que isso signifique deixar outras pessoas que ama para trás. Rebecca é a que fica mais sentida, contudo esse é o momento em que entende que é capaz de seguir em frente e sonhar com novos caminhos para o clube e desejar uma nova relação. Keeley se vê abandonada pela ex-namorada e investidora, confusa com sua relação com Roy e Jamie, sendo o momento em que precisa focar naquilo que quer construir enquanto legado e balancear as amizades. Roy enfrentou seu medo de fracassar com o time e encara o desafio de substituir Ted, não apenas nas táticas de jogo, mas também em continuar encorajando o crescimento dos jogadores. Jamie aprendeu a se valorizar e a construir relações, ao mesmo tempo que viu que tudo que era tão fácil para ele antes — por exemplo, ter Keeley com ele — não está mais a seu dispor e é hora de amadurecer. Nate caiu nas hierarquias, reconquistou o respeito pelo time e pela família, tendo que se reconstruir e entender seu lugar. E Beard… bom, descobrimos que o nome dele é Willis.

Ted Lasso equilibrou comédia e melancolia com maestria e, honestamente, é bom ver uma série chegar ao seu fim quando ela é bem escrita, bem dirigida e com um elenco que tem gosto por essas narrativas. A última temporada nos deixa com uma sensação boa no coração, um gosto amargo na boca e com o desejo de, dessa vez, não ser um peixinho dourado e esquecê-la.