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Você é o que você ama: Lover, definido pelo calor

Ao invés de separar meus álbuns favoritos da Taylor Swift de maneira mais simples, com um sistema que vai do 0 ao 10, por exemplo, separo seus trabalhos pela forma que eles me fazem sentir. Do seu coração partido de “All Too Well”, passando pelo amor calmo na mensagem de “Peace”, a cantora tem um jeito de escrever sobre sentimentos que é honesto, cru e tocante. Para entender a complexidade dos sentimentos humanos, e todas as suas nuances, é preciso sentir. E ela não tem absolutamente nenhum problema em fazer isso, transformando suas composições em algo que é ao mesmo tempo pessoal, mas que também fala com milhares de pessoas.

Ouvir o début (Taylor Swift), Speak Now, e até mesmo Fearless me leva diretamente para tempos mais simples, onde conhecer alguém significava ficar “maravilhado” e “corar o tempo inteiro na volta para casa”. Existe uma ingenuidade particularmente passageira presente em quase todas as músicas, um jeito quase sempre charmoso e até mesmo jovial na forma como as músicas se desenvolvem pelos trabalhos do começo da sua carreira. Red, no entanto, me lembra de como é estar no começo dos seus 20 e poucos anos, apaixonada de verdade pela primeira vez e se desiludindo com algo que você achou que tomaria uma parcela mais significativa da sua vida. Sendo assim, 1989 é um antídoto para esses sentimentos.

Ao mesmo tempo que sofri desilusões amorosas quando mais jovem, também tive uma das épocas mais intensas da minha vida. Ouvindo esse trabalho em particular, sinto como se estivesse escutando música alta em um carro em alta velocidade, no meio da madrugada. Eu quase consigo sentir o vento das vezes que saí de uma balada qualquer às cinco da manhã, animada porque o mundo era tão cheio de possibilidades. 1989 é vibrante, alerta e jovem, brilha com uma força que logo se transforma em outros sentimentos no futuro, perpetuando aquela sensação agridoce de uma época que não volta mais.

Reputation, um ponto de ruptura na sua carreira, é um momento mais subversivo. Ela explana sentimentos mesquinhos e até de certa forma corruptos (“they say I did something bad, then why it feels so good?”), mas também fala sobre encontrar conforto e amor nesses momentos, ainda que esteja tomada pela solidão, medo e vulnerabilidade. Para entender isso é preciso olhar atentamente para o que ela diz nas entrelinhas das músicas como “Delicate”, “Dress” e “Dancing With Our Hands Tied”.

“And darling, you had turned my bed into a sacred oasis
People started talking, putting us through our paces
I knew there was no one in the world who could take it
I had a bad feeling”

“E, querido, você transformou minha cama em um oásis sagrado
As pessoas começaram a falar, nos avaliando
Eu sabia que não havia ninguém no mundo que pudesse aguentar isso
Eu tive um mau pressentimento”

Tanto Folklore quanto Evermore despertam o meu lado como uma pessoa que sempre amou (e provavelmente sempre vai amar) ouvir uma boa história. É como se eu estivesse sentada em um lugar confortável, com um café quente, ouvindo alguém que amo contar várias histórias diferentes, enquanto chove lá fora. É familiar, confortável e comovente. Sem dúvida alguma esses são os trabalhos mais liricamente maduros da cantora, e tanto a sonoridade, sua voz e até mesmo suas parcerias de longa data (como as com o produtor Jack Antonoff) parecem perpetuar esse aspecto.

Lover - Taylor Swift

E então existe Lover. Lançado em agosto de 2019, o álbum marcou de vez o fim da sua era Reputation. Se este, por sua vez, termina com “New Year’s Day”, como uma promessa de um novo dia, Lover tem um começo catártico e que não deixa dúvidas: mais uma vez, com sentimentos. O disco abre com “I Forgot That You Existed”, uma música que se você escuta apenas superficialmente, nos faz pensar que ela é nada mais nada menos do que um shade quando, na verdade, é sobre se libertar do passado de uma vez por todas.

“I forgot that you existed and I thought it would kill me but it didn’t
And it was so nice, so peaceful and quiet” 

“Eu esqueci que você existia
E eu pensei que isso iria me matar, mas não matou”

Como a música libertadora que é nas entrelinhas, “I Forgot That You Existed” abre precedentes para o resto do disco, que é  inteligente, divertido e, principalmente, regado pelo amor. Não o amor dolorido e que “queima vermelho”, mas o amor que é dourado e caloroso, como a “luz do dia”. Com o passar das músicas, é possível perceber um amadurecimento constante das letras de Taylor, que explora absolutamente todas as facetas de um amor que é completo e complexo, sendo que isso fica claro pela forma como as letras vão se desenrolando. Existem, sim, canções que falam do sentimento de uma forma mais simples, pela atração física, como “London Boy” e “I Think He Knows”, enquanto outras são um convite para entender sua vulnerabilidade, uma janela para momentos onde temos que dar o braço a torcer e deixar que a pessoa ao nosso lado entenda o que sentimos (e porque nos sentimos assim).

As próximas músicas do álbum descrevem dois momentos diferentes do amor, mas acabam se complementando de uma forma interessante. “Cruel Summer” é sobre o início, e descreve essa fase do amor como um “sonho febril”. Criativa e uma das melhores músicas da obra em si, a letra descreve aquela turbulência emocional bem específica que pontua relacionamentos recentes: eu amo essa pessoa? Ela me ama de volta? Ela vai me aceitar pelo o que sou? Não é atoa que um dos momentos mais marcantes é quando Taylor canta: “I love you ain’t that the worst thing you ever heard?” Enquanto ela canta que escapou pelos portões do jardim o verão inteiro para selar sem destino, a turbulência da incerteza se torna, aos poucos, algo como amor — e isso é complementado pela forma como a próxima música se posiciona no disco.

“And it’s new, the shape of your body
It’s blue, the feeling I’ve got” 

“E é nova, a forma do seu corpo
É triste, a sensação que eu tenho”

Em “Lover”, a terceira faixa do disco, os sentimentos turbulentos que estão presentes em “Cruel Summer”, tanto na letra como na melodia, são substituídos por algo que explana muito bem a intimidade tão específica que um amor tranquilo, duradouro e maduro pode proporcionar. Enquanto Taylor descreve as formas como eles se conectam (“this is our place, we make the rules”), sua voz se torna mais suave, acompanhada por violão e uma característica musical que nos remete ao folk. Não por acaso essa é a faixa título. Ao descrever seu amante como um “magnetic force of a man” (uma forma magnífica de homem, em tradução literal), ela estende isso à música, que se torna uma carta de amor ao próprio amor.

O mais interessante é que “Lover”, apesar de ser uma música sobre o companheirismo natural que nasce de uma relação saudável, não deixa de ter o olhar intenso da cantora. Quando ela diz que jura ser “overdramatic and true to my lover” [“super dramática e verdadeira com o seu amor”], é impossível não acreditar. Algumas outras músicas do álbum, inclusive, reforçam esse aspecto. “I Think He Knows” é uma música deliciosamente horny (“I think he knows his footprints on the sidewalk lead to where I can’t stop go there every night”), “Death By a Thousand Cuts” é intensa e fala sobre um amor que mudou mas que, ao mesmo tempo, nunca tem fim (“You said it was a great love, one for the ages but if the story’s over why am I still writing pages?”), “London Boy” tem um olhar divertido sobre sua atração e admiração pelo seu homem britânico, com direito a alguns trocadilhos com a forma que eles falam e se expressam (“darling I fancy you”).

Minha favorita dessa leva, “Paper Rings” tem um ritmo fácil, seguro e frenético, com direito a “uh-huh” e “that’s right, darling” que remetem imediatamente alguns clássicos de musicais.

I like shiny things but I’d marry you with paper rings”

“Eu gosto de coisas brilhantes, mas eu me casaria com você com anéis de papel”

Talvez a escolha mais óbvia fosse chamar “I Forgot That You Existed” a música que remete a Reputation, mas a verdade é que “The Archer” é, com certeza, a que mais lembra o ofício da cantora na época. Se Reputation parece à primeira vista um trabalho rancoroso (onde ela incorpora a cobra para responder a altura sobre sua reputação danificada), um olhar mais profundo mostra que ele é, na verdade, sobre encontrar amor e conforto em momentos complicados. Para cada música que fala sobre sua ruptura com a forma que as pessoas a viam na época (“the old Taylor can come to the phone right now./ Why? Oh ‘cause she’s dead”), existe uma “Delicate”, com um olhar extremamente vulnerável não apenas sobre a forma que os outros a viam, mas também como ela vê a si mesma.

“My reputation’s never been worse so,
You must like me for me” 

“Minha reputação nunca esteve pior, então
Você deve gostar de mim pelo que eu sou”

Com o passar do tempo, comecei a acreditar que “The Archer” tem uma ligação direta com “Delicate”. Taylor começa a música falando que está pronta para o combate, explica que todos os seus inimigos começaram como amigos e fala sobre a contradição dos seus sentimentos, da forma como ela se vê (“I hate my reflection for years and years”). Com um tipo de vulnerabilidade bem específica, assim como em “Delicate”, ela entende que já foi retratada e direcionada por várias faces diferentes perante a sociedade: “I’ve been the archer, I’ve been the prey”.

Lover - Taylor Swift

Quando ela apela para que gostem dela pelo o que ela é, afinal sua reputação nunca foi pior, isso fala diretamente com o trecho “Who could ever leave me, darling?/ But who could stay?” [“Quem poderia me deixar, quero?/ Mas quem poderia ficar?”]. Se a pessoa que eu amo ver todos os meus lados, ela ainda vai querer ficar? Se ela me conhecer para além das linhas gerais, para além do que mostro para as outras pessoas, ela vai me amar de volta? Apesar de nem sempre perguntarmos essas questões em voz alta, elas permeiam nossa mente e motivam cada uma das nossas decisões — mesmo que forma inconsciente. Em Before Sunrise, a protagonista Céline pergunta: “tudo que fazemos não é apenas uma forma de sermos amados um pouco mais?”. Para os mais cínicos, com certeza não. Mas Lover não é um álbum cínico. Em meio às tentativas de falar sobre o amor, das mais banais até as mais sérias e complexas, as composições abrem uma porta e mostram que, por trás daquelas músicas, existe uma pessoa real e vulnerável. É uma porta para os sentimentos da própria Taylor e, consequentemente, de todo mundo que ama e acompanha o seu trabalho.

Em “Soon You’ll Get Better”, a cantora fala sobre a doença de sua mãe e como ela reza todas as noites para que ela melhore logo. Em “Cornelia Street” explora o medo irracional de perder aquele que ama, deixar o mesmo escapar.

“I hope I never lose you, hope it never ends
I’d never walk Cornelia Street again 
That’s the kind of heartbreak time could never mend”

“E eu espero nunca te perder, espero que isso nunca acabe
Eu nunca mais andaria na Cornelia Street
Esse é o tipo de decepção amorosa que o tempo nunca poderia consertar”

“Afterglow” é um pedido de desculpas para uma situação onde suas inseguranças levaram o melhor de si e acabaram prejudicando a forma como vê e compreende as coisas. É uma música honesta, consciente e, principalmente, vulnerável. Ela pede: estou aqui, eu errei e essa nunca foi minha intenção, mas diga que me ama mesmo assim. É sobre como às vezes, mesmo de forma inconsciente, colocamos nossas armaduras e ficamos na defensiva, para proteger algo que não necessariamente precisa ser protegido.

Essas músicas têm poucas coisas em comum, mas todas são ligadas por uma corrente de honestidade que explora os lados menos cristalinos do amor, aqueles que são movidos pelo medo, pela perda e pela insegurança. Mas Lover não é definido por essas coisas e é por isso que as músicas mais leves estão intercaladas com as mais complexas, dando uma sensação que, depois de deliberar muito, cheguei a conclusão de que é, acima de tudo, calorosa. Lover não necessariamente diz que o amor é fácil, mas diz, com todas as letras, que ele vale a pena.

Outra grande impressão que tenho de Lover é que Taylor tenta, e consegue, falar um pouco com suas versões antigas. A letra “Miss Americana and the Heartbreak Prince” é, ao mesmo tempo, uma ligação para uma versão antiga sua, assim como uma crítica a um sistema norte-americano do qual não entendo ou me identifico, mas que é tão glorificado por mídias diferentes (como, por exemplo, o cinema).

“American glory
Faded before me
Now I’m feeling hopeless
Ripped up my prom dress”

“A glória americana
Desapareceu diante de mim
Agora estou me sentindo sem esperança,
Rasguei meu vestido de baile”

No momento em que esse texto é escrito, uma entrevista com Damon Albarn (vocalista de bandas como Blur e Gorillaz) falando sobre as canções de Taylor Swift viralizou na internet. Após dizer que ela não “escreve suas próprias músicas” (algo que não é verdade), a própria cantora foi nas redes sociais chamar a atenção do britânico, criticando sua postura e corrigindo a informação. Esse tipo de discurso é algo que ronda sua carreira desde os primórdios e tentando se provar, Taylor escreveu Speak Now inteiro sozinha, aos 19 anos. Lover contém a música “The Man”, que fala justamente sobre a pressão de ser mulher na indústria da música e sobre a desigualdade presente na mesma. Apesar de não ser minha canção favorita do álbum, essa é, talvez, a primeira vez que a cantora fala sobre isso nas suas composições, mesmo já tendo falado sobre a forma como esse assunto é abordado na mídia. Apesar de Lover ter pinceladas políticas, que aparecem em algumas músicas, incluindo as citadas acima, elas ainda são pontuadas por bom humor, ironia e uma composição esperta e interessante.

Para cada álbum que lança, Taylor Swift cria um contexto especial e diferente, com músicas que falam diretamente com seu eu do passado, e até mesmo contém algumas referências que só fãs mais assíduos conseguem pegar. Sendo assim, “The Man”, por exemplo, funciona em vários níveis: funciona como um hino bem humorado sobre a forma como ela vê a indústria musical, ao mesmo tempo que fala com sua versão antiga, aquela que escreveu Speak Now sozinha para provar um ponto (“And I’m so sick of them coming at me again, because if I was a man, then I’d be the man”). A música soaria como um discurso vazio se não fosse justamente por esses dois aspectos.

2020 e 2021 foram anos onde ressignifiquei muito o que a arte significa para mim — e o que eu procuro no cinema, na TV e na música. Talvez seja porque abandonei meu cargo como repórter cultural depois de cinco anos, ou talvez porque o mundo estava passando por um período turbulento com a pandemia e eu simplesmente tinha mais tempo para pensar nas coisas que amo. De qualquer forma, consigo traçar uma mudança drástica no jeito que via esse assunto antes e agora, sendo o mais surpreendente disso tudo o quanto Lover foi um dos catalisadores de toda essa mudança.

Como um álbum longe de ser perfeito (perfeitamente imperfeito, devo dizer?), Lover é um trabalho incrivelmente pessoal que explora o amor pela sua forma imperfeita, intensa e, principalmente, essencial. É um disco definido pelo calor e ouvi-lo é como se tivesse recebendo um abraço de alguém que amo. Quanto mais eu escutava as músicas e mais entendia o significado das letras, mais passava a ouvir procurando por conforto, esperança ou até mesmo pura e simples diversão.

“Daylight”, que encerra o álbum e é de longe a música mais linda da obra toda, diz: “I once believed love would be burning red, but it’s golden”. Uma referência que nos leva de volta a própria Taylor, que um dia descreveu o amor como vermelho ardente, mas também um lembrete de que o amor vale a pena, e de que as coisas que amamos nos definem muito mais do que aquilo que nos dá medo.

Assim como a Taylor, quero ser definida pelas coisas que amo. É por isso que Lover, com todas as suas inconsistências, fala comigo mais do que qualquer outro álbum da Taylor e é um antídoto perfeito para os tempos sombrios que vivemos hoje.

“I wanna be defined by the things that I love
Not the things I hate
Not the things that I’m afraid of 
Not the things that haunt me in the middle of the night… 
I just think that
You are what you love”

“Eu quero ser definida pelas coisas que eu amo
Não as coisas que odeio
Não as coisas da qual tenho medo, tenho medo
Não as coisas que me assombram no meio da noite, 
Eu só acho que
Você é o que você ama”