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Liability: Lorde e as mulheres difíceis de amar

Depois de uma longa espera, Lorde está de volta. Nas últimas semanas, a cantora anunciou o nome e a data de lançamento de seu próximo álbum, Melodrama, e no último sábado apresentou o Saturday Night Live. A cantora também lançou dois singles de seu próximo trabalho: “Green Light”, segundo Lorde, é sobre sua primeira grande desilusão amorosa; já “Liability” conta sobre o momento de epifania em que a cantora percebeu que seu estilo de vida e a exposição gerada por sua carreira sempre seriam empecilhos em seus relacionamentos. Na canção, ela explica o quanto isso a faz parecer descartável em relacionamentos dentro dos quais ela é considerada excessiva.

Lorde não é a primeira mulher a cantar sobre relacionamentos amorosos mal-sucedidos, tampouco a primeira mulher a expressar através de seu trabalho artístico a experiência de ser considerada uma mulher difícil demais para ser amada. A poeta de origem somali Warsan Shire — que estourou após contribuir com o roteiro poético do álbum Lemonade, de Beyoncé — é autora de “For Women Who Are Difficult To Love” [Para mulheres difíceis de amar]. No poema, ela enumera razões apresentadas para justificar um fim de relacionamento. As razões todas começam em elogios e terminam culpando a própria mulher pelo fim. Ela é maravilhosamente intensa até o ponto que se torna intensa demais. Ele a ama e a deseja intensamente até o momento em que o amor e o desejo delas são intensos demais. Mulheres excessivas, mulheres tão incríveis que assustam ou tornam a permanência do parceiro impossível.

“Eles dizem: ‘Você é um pouco demais para mim
Você é um fardo
Você é um pouco demais para mim’
Então eles dão um passo pra trás, fazem outros planos
Eu entendo, eu sou um fardo
Te deixo louco, te faço ir embora
Sou um pouco demais pra todo mundo”

Tanto o poema de Warsan quanto “Liability” denunciam uma expectativa dúbia depositada em cima de mulheres quando se trata de relacionamentos amorosos heteronormativos. Antes de tudo, somos ensinadas a querer um relacionamento. São desenhos durante a infância, brincadeiras de casinha em que cada menina deve escolher quem é seu marido, os filmes e livros para adolescentes que giram em torno de meninos que as meninas querem conquistar. As comédias românticas e as análises de mercado que continuam insistindo que existe um único público feminino e que o que ele deseja é a foto de um casal branco se beijando na chuva. E no fim, quando toda a doutrinação funciona, ouvimos que somos fúteis, vimos camisetas em que o casamento é o fim do jogo e que quem deseja um relacionamento monogâmico é a mulher, o homem apenas cede. E para ceder, a mulher deve ser muito agradável aos olhos e às expectativas.

“A verdade é que eu sou um brinquedo
Que as pessoas aproveitam
Até que nenhum dos truques funcione mais
Sei que é excitante correr pela noite
Mas cada verão perfeito está me comendo viva
Até que você vai embora
Estou melhor sozinha”

Deus me livre uma mulher que cobra responsabilidade afetiva. Deus me livre uma mulher que entenda seus desejos e queira vê-los concretizados. Deus me livre uma mulher bem-sucedida com uma carreira sob o seu controle desde os 16 anos. Deus me livre uma mulher que não pede desculpas por sentir e expressar seus sentimentos. Para isso servem estigmas como o da mulher louca e o da mulher difícil: ela vai te perseguir se você terminar com ela, ela vai escrever sobre você, ela vai lançar um álbum inteiro sobre como você terminou com ela por telefone. Porque ela é uma mulher difícil.

“Então vou pra casa
Para os braços da garota que amo
O único amor que não consegui estragar
Ela é tão difícil de agradar
Mas ela é uma fogueira na floresta
Faço meu melhor para agradá-la, romantizo
Dançamos devagar pela sala, mas o estranho disso
É que o que parece
É uma garota balançando sozinha
Acariciando a própria bochecha”

Mas Lorde já entendeu isso tudo e, depois de chorar — porque saber disso tudo não significa que não doa, e admitir a dor também é um ato político —, ela chega em casa e encontra o único amor que ela não destruiu com todo o suposto peso de sua inconveniência: ela mesma. “Liability” é uma canção sobre não negar sua subjetividade por mais que ela seja massacrada; não esconder sua fragilidade e sua força, que coexistem porque é assim que somos. Lorde entendeu as maneiras pelas quais é manipulada emocionalmente e denuncia a forma como a culpa recai sobre ela mesma. Mas no fim, ela sabe que só pode dançar pela sala com ela mesma e cultivar o relacionamento mais duradouro e mais potente de sua vida. Aquele entre ela e ela mesma.

Milena Martins escreve e edita o tempo todo. É editora da Revista Pólen, assina uma newsletter e vive gritando no Twitter.

3 comentários

  1. Gostei muito do texto!! Mas acho importante frisar que, embora pareçam (e sejam mesmo) temáticas muito próximas, são visões muito diferentes das exigências amorosas de um relacionamento. Os poemas da Warsan Shire falam da dor da mulher negra e isso muda o foco brutalmente.

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