Categorias: COLABORAÇÃO, FOTOGRAFIA, MÚSICA

O capítulo pandêmico: os três últimos anos na vida de Tomorrow X Together

Diferença, Quem sou eu, Adeus, Crescimento, Encontro”: esses são os nomes dados a cada um dos capítulos de H:Our in Suncheon, o terceiro Photobook da banda Tomorrow X Together. O livro foi lançado em outubro de 2021 e deve ser o último sob o nome de H:our, fechando dessa maneira o primeiro ciclo da carreira do grupo pop que lançou seu disco de estreia em 4 de março de 2019. Esses também serão os nomes de cada segmento desse texto, um esqueleto que irá nos guiar pelos (quase) três primeiros anos na vida de Soobin, Yeonjun, Beomgyu, Taehyun e Huening Kai como Tomorrow X Together, e pelo complexo universo que permeia os álbuns, EPs e clipes da banda.

Diferença

“Somos Sul e Norte como um ímã
Estou completo quando eu existo ao seu lado” — “Blue Orangeade“, The Dream Chapter: Star

O Tomorrow X Together, ou TXT, como normalmente é abreviado na mídia, foi a primeira banda formada por trainees da Big Hit (hoje Hybe) após a estreia do BTS — fato que colocou todos os holofotes sobre a banda desde o momento de anúncio. No momento da estreia, alguns dos membros já eram trainees da gravadora há 4 anos. Esperar é algo que faz parte da indústria musical coreana, e jovens passam muito tempo, incluindo os anos mais significativos da sua adolescência, treinando de maneira intensiva para se tornarem excelentes performers. A convivência do TXT era por vez explosiva, e o período anterior ao début foi conflituoso, fruto da combinação de personalidades extremamente fortes com interesses bem diferentes.

E foi com esse contexto que demos o play em The Dream Chapter: Star, e fomos recepcionados pelas batidas sincopadas de “Blue Orangeade“, uma ode ao contraste entre opostos como forma de produzir um todo. Mas mesmo abrindo o EP e funcionando tão bem como uma introdução ao ethos da banda, não é essa a música escolhida como single de estreia do TXT — essa honra ficou com “Um dia nasceram chifres na minha cabeça”, o título em coreano da música conhecida em inglês como “CROWN“, que inaugurou todo o universo TXT sob uma premissa no mínimo peculiar.

Antes de mais nada, é importante explicar: os universos ou storylines no Pop na Coreia do Sul não começaram com o TXT. Como as bandas apresentam, desde a segunda geração do gênero, conceitos próprios que mudam de disco em disco, muitas gravadoras aproveitaram dessa liberdade criativa (que engloba letras, clipes, figurinos, encartes de álbuns e em alguns casos até os nomes artísticos dos integrantes) para desenvolverem histórias complexas que costuram cada era de uma banda, em uma espécie de versão ficcionalizada da vida real dos integrantes. Um dos primeiros grupos a debutar com um conceito desse tipo foi o EXO, que apresentou seus integrantes como alienígenas superpoderosos, e histórias dignas de livros e filmes surgem nas obras de bandas como BTS, GFriend, Loona, Vixx e mais.

tomorrow x together

Existe, porém, no universo do TXT, uma poesia e uma complexidade únicas. Como podemos já delimitar a partir de clipes, vídeos especiais e cartões colecionáveis nos álbuns, esse universo conta de maneira multimeios a história de cinco jovens que, desde cedo, descobrem uma realidade paralela (possivelmente digital) na qual eles podem fugir de suas responsabilidades, a Magic Island. Nessa realidade, inspirada na linguagem do jogo de RPG clássico Dungeons & Dragons, cada personagem traz o seu corpo uma “dor”, uma representação física de sua maior dificuldade como indivíduo.

Para Yeonjun, o cavaleiro do jogo e o mais ativo, além dos seus chifres de cervo (cantados em “CROWN“) é também uma garganta cortada, representação do sentimento de culpa que carrega por ter dito algo no passado. Para Soobin, são orelhas pontudas, marcando uma posição passiva que o personagem tem, que é reforçada pelo seu alinhamento no jogo como Arqueiro e Ranger, aqueles que atacam apenas de longe. Para Beomgyu, o peso de querer resolver tudo sozinho gera uma má-formação em suas costas. Para Taehyun é a curiosidade excessiva que aloca uma estrela em seu olho, e seu personagem é constantemente comparado ao de um detetive desesperado para encontrar a verdade. E para Huening Kai é o excesso de inocência que vira asas de anjo nesse universo paralelo.

Aquilo que os torna estranhos também é o que os torna especiais. E acima de tudo, é o que os une — o TXT Universe começa como uma história de família escolhida, que ressoa profundamente com diversos jovens considerados “estranhos” pela sociedade mas que encontram abrigo entre amigos.

O primeiro álbum do TXT já aponta para o futuro da banda, misturando gêneros tão diferentes como o hip-hop noventista ousado e o tongue-in-cheek de “Cat & Dog” e o indie emo com um belíssimo timbre de guitarra representado por “Nap of a Star“. Mas apenas os próximos capítulos (literalmente) dessa história provariam a amplitude dessa capacidade de se reinventar.

Quem sou eu

“Me diga, o que eu devo escolher
Ou anjo ou demônio
Essa luta em minha cabeça
Por que você não fica sendo o juiz?” — “Angel or Devil”, The Dream Chapter: Magic

A estreia do Tomorrow X Together foi marcada pelas constantes comparações com a banda que os antecedeu, os colossos de vendas e reconhecimento BTS, e se separar criativamente dessa sombra foi (e em certa medida, continua sendo) um desafio. A estratégia da gravadora, desde o início, parecia espelhar a estratégia da SM ao estrear o Shinee, seu grupo mais “indie” e sonoramente ousado, após o sucesso estrondoso do Super Junior nos anos 2000/10. Dando continuidade ao “Capítulo do Sonho”, a energia esperançosa de jovens em busca do seu primeiro gosto de reconhecimento como artistas, o primeiro álbum completo do TXT, The Dream Chapter: Magic, foi lançado.

Magic já começa com o grito de “Eu quero ser um punk” e “Eu sou um encrenqueiro, me deixe ir” em “New Rules“, faixa co-escrita por Daniel Caesar. O encarte, assim como o clipe da faixa título, “Run Away” (em coreano, “Esperando por você na plataforma 9 ¾”), reforça a imagem de rebeldia juvenil, com invasões a um colégio fechado e um incêndio — o fogo e sua destruição é uma imagem que percorre as obras do TXT, uma força destrutiva sem controle sempre iniciada, por acidente, por eles mesmos. Nesse disco surge mais uma vez a imagem da Magic Island, dessa vez, exposta como um escapismo perigoso para os heróis da narrativa fictícia do Universo TXT. Esse espaço seguro da infância é destruído pelo fogo, e para evitar essa destruição, eles voltam no tempo diversas vezes. O medo de crescer e a vontade de evitar as responsabilidades da vida adulta, transformados em música, vídeo e fábula.

As ansiedades desses cinco jovens se tornam ainda mais expostas no capítulo seguinte (e final) do The Dream Chapter, o EP Eternity. Eternity é, quintessencialmente, o disco da virada do Tomorrow X Together. Suas breves 6 músicas incluem “PUMA“, faixa que critica a cultura de celebridades do país centralizando seu eu lírico em um puma que fugiu do zoológico e é caçado por toda a cidade de Seoul, um cover de uma banda clássica do pop alternativo/citypop na Coreia em 1990, com “Fairy of Shampoo“, e “Maze in the Mirror“, composta por Beomgyu sobre a depressão que viveu durante o período como trainee. No entanto, é a música que fecha esse disco, “Eternally“, que, ao apresentar uma forma ousada capaz de afastar as comparações com o BTS, fecha o capítulo do sonho de vez — assim como nuvens pesadas se juntando e indicando uma tempestade futura.

Adeus

tomorrow x together

“A porta do café que eu frequentava está fortemente trancada (e como)
Escondendo um suspiro atrás de uma máscara apertada (permaneço aqui)
Eu odeio minha cara sem expressões (você sabe)
Você era meu pôr-do-sol, eu quero fazer isso funcionar
Muitos primeiros dias depois do primeiro dia em meu calendário
Estou abandonado na tarde sem fim de 1º de março
Essas férias eternas
Manhãs que se repetem
Nosso tempo perdeu o tempo
Estragado em um inverno” —We Lost the Summer“, Minisode 1:Blue Hour

Contudo, o Dream Chapter foi encerrado, e não apenas na série de discos, mas também na vida real dos cinco rapazes. A banda, que ainda não havia feito uma turnê e apenas se apresentou em pequenos showcases, se viu de repente impedida pela pandemia de estrear ao vivo. Com a Covid-19, o sonho de ter uma vida de popstar à moda antiga, regendo plateias, caiu por terra. Assim como o sonho de ter uma juventude normal (todos os membros nasceram entre 1999 e 2002). Todo o trabalho duro dos primeiros anos tinha como objetivo uma vivência que, por circunstâncias fora do controle de qualquer um dos membros, teria que esperar. E foi assim que nasceu o Minisode 1: Blue Hour, funcionando como parênteses nessa carreira. Um disco feito na pandemia, sobre a pandemia, e que até hoje não foi performado na frente de audiências reais. Se você abre o encarte de “Blue Hour”, o tema é o espaço virtual aumentado, o VR. A banda que antes escapava para a Magic Island agora não tinha outra opção senão viver nessa ilha; viver como seus avatares. A presença digital intensa dos integrantes, que são extremamente ativos em canais de diálogo com os fãs como Weverse e VLive, se tornou ainda mais marcante.

O principal single do Minisode 1 não diz tanto sobre o conteúdo do resto do EP — enquanto “Blue Hour” é uma explosão de nostalgia, uma música disco pop que implora para o tempo ser congelado no momento logo antes do anoitecer, o restante do disco é indie pop puro, e trata de temas como a paisagem urbana pós-pandemia, as conversas puramente digitais, as redes sociais, e essa nova realidade de máscaras e medo, tudo isso com batidas difusas, guitarras abertas e colaborações com Charli XCX e Lennon Stella. O Minisode ainda traz uma esperança de poder voltar no tempo — o capítulo seguinte reconhece a imaturidade desse desejo e, o pior, admite que se você pede tanto por se congelar num mesmo momento, o pior que pode acontecer é a sua vontade ser enfim realizada.

Crescimento

“Minha vida presa entre limites como se estivesse destruída
Mesmo quando os limites são liberados, eu me sinto louco
Eu costumava querer ser um punk, mas (por que?)” — “No Rules”, The Chaos Chapter: Freeze

O que veio depois do capítulo do sonho, ou idealização, foi o capítulo do caos, ou a realidade, e a realidade estava congelada. Tomando como inspiração as três modalidades de resposta ao trauma, Congelamento, Fuga ou Embate, o TXT lançou seu segundo disco completo, The Chaos Chapter: Freeze, que ganhou depois uma versão estendida chamada The Chaos Chapter: Fight or Escape. No encarte de uma das versões do lançamento vemos o mundo paralelo do TXT absolutamente congelado, enquanto os membros trajam roupas de realeza (incluindo um vanguardista vestido longo, utilizado por Yeonjun). Reis de seu próprio universo frio, que antes temiam mais o fogo de sua rebeldia juvenil, os cinco integrantes abrem o disco com a viral “Anti-Romantic“, um hino sobre não sentir mais nada.

tomorrow x together

Músicas como “No Rules“, que questiona a afirmação de “Eu quero ser um punk” de “New Rules“, e “What If I Had Been That Puma?“, em diálogo direto com “Puma“, trombam de frente com canções do passado, desafiando e às vezes até zombando das suas próprias expectativas de início de carreira. As músicas de trabalho do disco, “0x1 = Lovesong (I know I love you)” (co-escrita por RM, do BTS, e Modsun, artista emo norte-americano) e “Loser = Lover” praticamente abandonam a sonoridade tradicional do pop coreano de vez, abraçando o indie rock e o emocore, enquanto os clipes tecem referências ao cineasta Wong Kar Wai e Thelma e Louise. Mais uma vez a maior declaração de identidade fica para a faixa final, a conflituosa “Frost“, cujas batidas criadas por Ashnikko, artista não-binárie de hyperpop, são a tradução perfeita do título deste capítulo na carreira da banda — o caos, em forma de som.

Encontro

“Mesmo em um dia tão comum
Mesmo em um dia com o tempo perdido
Escreva no nosso diário essa noite
Para te confortar na sua noite de verão
Me envie, caminhe comigo
Sem preocupações, só conte a sua história
Sentimento ruim? Se sente bobo?
Por favor se lembre do nosso código” — “”Moa Diary“, The Chaos Chapter: Fight or Escape

Tudo isso é obra de uma banda que ainda não teve seu primeiro show presencial oficial. Acompanhar os primeiros anos da carreira do grupo Tomorrow X Together foi como acompanhar um microcosmos das nossas vidas em tempo de Covid-19: todos os nossos momentos de frustração, de vontade de ter vivido com mais intensidade os momentos pré-pandêmicos, as ansiedades de uma vida cada vez mais digital.

Todo o material de divulgação de Freeze e Fight or Escape retoma o nome da banda e a fábula dos cinco garotos com traduções visuais de suas dores no corpo, cinco “aberrações” que encontram um lar juntos. A ideia sempre repetida é a de que apenas a proximidade pode acabar com esse congelamento e quebrar esse ciclo — a proximidade dos membros, a proximidade artista e fã. Um encontro que está se tornando cada vez mais concreto no horizonte e que deixa no ar apenas uma indagação: qual será o próximo capítulo?

Ana Clara Matta é a fantasma Dickensiana da blogosfera passada. Editora do finado portal de música independente Rock’n’Beats e criadora do blog de cinema Ovo de Fantasma, hoje sai ocasionalmente de sua caverna para comentar cultura pop (e menos pop) e acredita que o objetivo da vida está na frase “Eat, drink, and be merry”.


** A arte em destaque é de autoria da colaboradora Duds Saldanha.