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Godzilla Minus One: os traumas pela perspectiva japonesa

Bons filmes de monstros raramente são só sobre os monstros. Em muitos casos, a monstruosidade é uma alegoria para angústias e medos mais profundos ou um modo de explorar a natureza humana.  Esse é o caso de Godzilla Minus One, longa lançado em dezembro de 2023, dirigido por Takashi Yamazaki. Apesar do título sugerir apenas mais um blockbuster de Kaiju, a obra se aprofunda no trauma da população japonesa, sobretudo no período pós-Segunda Guerra Mundial.

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De animações japonesas ao MonsterVerse — leva de produções hollywoodianas que têm o Godzilla e o King Kong como protagonistas — a figura do Godzilla sempre foi revisitada ao longo dos seus quase 70 anos de história, se tornando um ícone, não apenas dos aficionados por monstros, mas de toda a cultura pop. Se nos últimos anos as produções de Hollywood se distanciaram da etiologia do Kaiju, Godzilla Minus One volta às origens da criatura e explora a destruição do Japão e da sua população de sobreviventes.

Godzilla Minus One

Ambientado em 1946, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, Godzilla Minus One tem como protagonista Kōichi Shikishima (Ryūnosuke Kamiki), um piloto kamikaze que não completa a sua missão suicida. Os bombardeios do exército inimigo destroem a cidade de Shikishima, levando sua família e, já em sua primeira aparição, o Godzilla mata quase todos os soldados que estavam com ele em uma ilha. Esses acontecimentos fazem com que Shikishima viva assombrado pela culpa de não ter completado a sua missão, nem de ter conseguido atirar no monstro, o que poderia ter salvado diversas vidas. Essa angústia e o questionamento do porquê ter sobrevivido, acompanham o personagem ao longo da trama.

A culpa por ter sobrevivido enquanto seus companheiros e familiares morreram porque você não cumpriu a sua missão é um dilema já conhecido. Mas é especialmente interessante ver essa questão ser apresentada em um filme japonês. Um dos pilares da tradição japonesa é o Bushido (ou Buxido, “Caminho do Guerreiro”), um código de conduta seguido pelos samurais do período feudal japonês, mas que continuou a ter influência até períodos recentes, principalmente entre as classes militares. Inspirado pelas principais religiões asiáticas — xintoísmo, budismo e confucionismo — o Bushido define o caminho para uma vida e morte com honra.

A ideia da “morte honrosa” seguida pelos samurais e respeitada pelos japoneses é difundida pelo Bushido. Para os samurais, morrer em batalha era glorioso. O código ainda prevê o seppuku — também chamado de haraquiri — ritual suicida por esventramento (abrir o próprio ventre).  Assim, culturalmente, o autossacrifício e ato de morrer por alguém ou por uma causa coletiva  é considerado digno e honroso pelos seguidores do Bushido, enquanto fugir de uma missão suicida é motivo de covardia e vergonha. Nesse sentido, é interessante ver Godzilla Minus One indo na contramão dessa lógica quando mostra que escolher viver e se reconstruir em um uma realidade completamente devastada também requer coragem. Há uma crítica bastante explícita à tradição japonesa do autossacrifício e principalmente ao governo japonês, que mandou inúmeros pilotos kamikazes para a morte, como se isso fosse motivo de honra e orgulho.

Para além de angústias pessoais, Godzilla Minus One volta à origem do monstro ao fazer do Gojira um combinado dos traumas japoneses no período pós-guerra. Lançado menos de 10 anos após a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, o primeiro filme do Godzilla (1954) representa a angústia e o cenário devastado do Japão da época: o luto pelos mortos durante a guerra, as incertezas em relação à reconstrução do país e, principalmente, as consequências da bomba atômica. Afinal, o próprio Godzilla nasce de testes nucleares feitos no Pacífico e fica mais forte com o poder nuclear. O Kaiju é a materialização das armas nucleares e de toda sua potencial destruição.

Essa discussão sobre as consequências da bomba atômica nos convida a fazer um paralelo com Oppenheimer (2023), filme de Christopher Nolan que mostra o desenvolvimento da bomba atômica pela perspectiva do físico Robert Oppenheimer. Críticos de cinema, espectadores e até outros cineastas, como Spike Lee, trouxeram questionamentos sobre a falta da perspectiva japonesa no longa. Apesar de todas as críticas que tenho à obra de Nolan — como a incapacidade de retratar personagens femininas minimamente complexas —, nesse caso, acredito que deixar o lado do Japão de fora da narrativa é uma escolha bastante consciente e até intencional do diretor. Desde o título do filme, sabemos que a obra se concentra especificamente na subjetividade de Oppenheimer. Mesmo que o físico viva atormentado com a sua própria criação, as vítimas da explosão atômica sequer têm rostos no filme de Nolan.

Nesse sentido, Godzilla Minus One traz às telas o que Oppenheimer opta por omitir. No longa japonês, vemos que as bombas atômicas fizeram vítimas, em sua maioria civis, que tinham rostos, familiares, personalidades e histórias. São sobreviventes de uma guerra que deixa o Japão — até então uma potência imperialista violenta — destruído de todas as formas, isolado, e, de certo modo, subordinado aos norte-americanos. E, talvez porque os Estados Unidos nunca se reconheçam puramente como vilões, Oppenheimer e as produções hollywoodianas do Monsterverse tentem dar nuances à criação e explosão da bomba atômica e retratar o monstro como uma espécie de “anti-herói”. Enquanto isso, da perspectiva japonesa, o Godzilla é a destruição pura. Não há nuances nem aprendizados ao jogar bombas atômicas em alvos civis.

Godzilla Minus One

Aliás, a destruição causada pelo Godzilla é um dos pontos altos da parte técnica de Minus One. Com um orçamento de menos de 15 milhões de dólares (para comparações, Godzilla vs. Kong (2021) custou U$155 milhões), os efeitos especiais impressionam e conseguem mostrar um monstro aterrorizante e uma devastação em dimensões catastróficas. Uma das cenas mais impactantes é quando uma chuva negra radioativa — igual a que cobriu Hiroshima e Nagasaki depois das explosões atômicas — caiu sobre o personagem principal, após o Kaiju ter destruído toda uma cidade.

Além dos traumas da bomba atômica, Godzilla Minus One também toca em outros medos coletivos presentes na história contemporânea do Japão, como a “síndrome do sobrevivente”, o estresse pós-traumático, o receio dos desastres nucleares e até mesmo a imprevisibilidade das catástrofes naturais, como terremotos e tsunamis (o acidente nuclear de Fukushima, em 2011, reabriu várias feridas e temores entre a população japonesa). “Por que mereci viver?” “Por que sobrevivi?” “Vale a pena continuar?” e “Como se reconstruir quando tudo está sendo devastado?” estão entre os dilemas enfrentados pelo protagonista Shikishima, que vão de encontro com as angústias dos japoneses.

Em Godzilla Minus One, os traumas dos sobreviventes se somam à negligência por parte do governo. O filme faz críticas nada sutis às autoridades do Japão, sobretudo à decisão de enviar pilotos kamikaze para a morte e também ao abandono da população no período pós-guerra. Um dos personagens coadjuvantes chega a dizer que “o governo japonês sabe bem o que é a omissão”. Sobra aos civis e a alguns militares a tarefa de destruir o Godzilla e se reconstruírem.

Godzilla Minus One

O longa ainda tem tempo de tocar no contexto internacional da Guerra Fria, mostrando que, naquele momento, qualquer lado que tentasse ajudar o Japão poderia se comprometer, um risco que nem os Estados Unidos, nem a União Soviética estavam dispostos a correr. É como se todas as autoridades dissessem: “não há nada que possamos fazer”, deixando os cidadãos japoneses à própria sorte.

O final de Godzilla Minus One é um final feliz. Tudo dá certo, dado as proporções, é claro, e a vitória sobre o Kaiju não custa o sacrifício do protagonista, nem a morte da sua nova família ou dos seus companheiros. Esse final feliz demais teria me incomodado se estivéssemos diante de mais um filme de Hollywood, onde está estabelecido que o herói vive no final. A história seria muito óbvia e idealizada. Mas, como se trata de um filme japonês, onde o autossacrifício é a regra, é uma surpresa que o filme termine com o protagonista escolhendo viver. E isso é tratado como heroico.

A cena final dá abertura para a continuação da franquia, quando vemos uma ferida se manifestando na pele de uma personagem. Interpretei também como uma forma do filme nos dizer que os machucados e os traumas japoneses continuam abertos. A guerra acaba, mas permanece viva dentro de você. Além disso, o perigo de uma nova ameaça atômica, de um tsunami, um terremoto, um desastre nuclear, de um novo Godzilla, está sempre vivo.

Godzilla Minus One é um retrato do que a bomba atômica e a guerra deixaram aos civis japoneses, mas também é um filme que coloca as próprias tradições culturais em perspectiva e é abertamente crítico à omissão do governo. E, se você não liga para nenhum desses discursos meio moralizantes, ainda vale a pena se entreter com um ótimo filme de monstro, que entrega a ação bem trabalhada combinada com questões humanas complexas.

Godzilla Minus One recebeu 1 indicação ao Oscar na categoria de: Melhor Efeitos Visuais.