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Gloria e Gloria Bell: ser uma protagonista com mais de 50 anos

Nem de longe parece boa a ideia de gravar a nova versão para um filme poucos anos após o original. No final de 2018, o cineasta chileno Sebastián Lelio lançou Gloria Bell, um remake americano do filme Gloria (2013), também de sua autoria, que retrata a vida de uma mulher divorciada de 58 anos em Santiago, no Chile. Sem muitas reviravoltas, o roteiro mostra a rotina de uma personagem que vive a própria liberdade, sem ser retratada apenas como a mãe de filhos já crescidos ou apenas como uma avó, papéis normalmente atribuídos a mulheres beirando os 60 anos. Sucesso no Festival de Berlim no ano em que foi lançado, Gloria marca uma mudança na carreira do diretor, que depois lançou Desobediência e Uma Mulher Fantástica, vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira de 2018, todos com protagonistas femininas bem construídas, o que deveria ser regra mas ainda é louvado como um diferencial.

Desde que foi anunciado, Gloria Bell não conseguiu se desvincular das comparações com o filme gravado no Chile. Mesmo que o mundo esteja vivendo a era dos remakes, uma fase em que pouco conteúdo realmente novo é produzido na televisão e no cinema, qual o ponto de se regravar praticamente quadro a quatro um roteiro tão recente?

No lugar da chilena Paulina Garcia, premiada pela atuação como Gloria, é Julianne Moore que interpreta a versão americana da protagonista. No lugar de cenários conhecidos de Santiago, Gloria Bell traz paisagens monótonas de Los Angeles. A existência da versão estadunidense só faz algum sentido com a informação de que o projeto surgiu por iniciativa da própria Julianne Moore. Depois de ver o longa chileno, ela decidiu que deveria trabalhar em algum filme de Sebastián Lelio. Só depois de uma conversa entre os dois veio a proposta do remake. Afinal, aos 58 anos e em Hollywood, como é o caso da atriz, quem não ia querer viver um papel como o de Gloria?

A personagem é uma mulher divorciada relativamente bem-resolvida com o ex-marido, mais que apenas uma mãe que quer se manter presente na vida dos dois filhos adultos, mais que apenas uma avó que gostaria de ter mais momentos com o neto, mais que apenas uma mulher mais velha sobrevivendo ao mercado de trabalho, mais que uma mulher explorando a vida de solteira (ou a vida de divorciada). Gloria é retratada de forma tão completa que o filme parece a biografia de alguém que realmente existiu, de uma mulher que poderia até ser encontrada numa boate frequentada por um público 50+ em qualquer cidade grande.

“Descobri que tirar uma mulher das margens da sociedade ou de uma narrativa convencional e colocá-la no centro é um gesto emocionanteesses filmes são sobre mulheres que ‘não merecem’ um filme”, disse Sebastián Lelio sobre seus longas mais recentes em entrevista sobre o lançamento de Desobediência, adaptação do livro de Naomi Alderman, que fala sobre um relacionamento entre duas mulheres numa comunidade de judeus ortodoxos. E, especificamente sobre Gloria: “Ficava muito emocionado ao fazer um filme sobre essa mulher de 58 anos que está no limiar da vida e que, apesar dos golpes, se reinventa, segue adiante e não perde o otimismo”, comentou ao Cine Chile.

Pensando no contexto de 2013, ano de estreia de Gloria no Chile, nem o sucesso de Grace e Frankie havia acontecido ainda. Por mais que no filme a personagem seja mais nova que as protagonistas da série, que têm mais de 70 anos já no piloto, talvez naquele ano fosse ainda mais transgressor colocar em evidência na tela uma mulher mais velha e independente, que sai para se divertir, que tem uma vida sexual ativa. No ano seguinte, em 2014, Julianne Moore interpretaria a protagonista de Para Sempre Alice, papel que rendeu a ela o Oscar de Melhor Atriz, mas que retrata a decadência de uma professora de linguística a partir de um diagnóstico de Alzheimer.

O problema desse tipo de filme é que às vezes parece que o fim da vida é o único tema que existe para ser abordado sobre a velhice de uma mulher. Até hoje, personagens mais velhas continuam jogadas para o canto da tela, para as margens das histórias. Ou, como em Mamma Mia!, o protagonismo é dividido com uma atriz mais jovem para que o público não se assuste com uma mulher da faixa dos 40 anos lidando com três ex-namorados. Mesmo que essa mulher seja interpretada pela Meryl Streep.

Se em 2018 as mulheres ocuparam apenas 36% dos papéis principais nos filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos, a grande parte dessas protagonistas eram jovens entre 20 e 30 anos, de acordo com uma pesquisa da San Diego State University divulgada pelo New York Times numa matéria que saiu após o lançamento de Gloria Bell. Dessas personagens, 16% tinham por volta de 40 anos, 8% estavam na casa dos 50 e 7% tinham mais de 60.

Ainda é necessário abrir espaço no cinema para as mulheres com mais de 50 anos porque consumir histórias sobre jovens é visto como algo natural, por isso tantos filmes e séries sobre adolescentes norte-americanos fazem sucesso, como se não fosse possível se identificar com as situações vividas por pessoas mais velhas. No caso de Gloria (e, por consequência, também de Gloria Bell), alguns dos temas do filme são, na verdade, universais, como a rotina numa metrópole, o romance, a solidão de uma mulher independente, solidão que não necessariamente chega apenas após os 50.

Uma das partes mais fascinantes do filme de Sebastián Lelio é o submundo da paquera entre pessoas mais velhas num momento anterior à popularização dos aplicativos de relacionamento. O flerte acontece nas festas que os solteiros, divorciados e viúvos frequentam para dançar, trocar cartões, pagar bebidas uns para os outros. É numa dessas baladas que a protagonista conhece Rodolfo (Sergio Hernández; em Gloria Bell, ele é Arnold, interpretado por John Turturro), um recém-divorciado com quem depois ela engata um namoro. O relacionamento serve como um recurso do roteiro para que o espectador conheça Gloria em movimento, deixando claro que a vida dela não está estagnada. Ela não é uma mulher que está simplesmente esperando a velhice chegar.

Como o filme não é uma comédia romântica da “terceira idade”, essa é apenas uma parte da história, que fala mais sobre viver um romance com alguém que não estava disponível para se relacionar e menos sobre namoros entre cinquentões. Ainda que o relacionamento em questão tenha elementos típicos dessa fase da vida, como uma ex-mulher que ainda mantém bastante contato, um ex-marido que abandonou a família há bastante tempo, filhos crescidos, netos, nada disso faz do namoro um retrato sobre relacionamentos exclusivamente entre pessoas mais velhas. É possível pensar sobre qualquer relação a partir do que se vê na tela.

Outro ponto importante é a naturalização dos corpos nus em cena. A mensagem que o filme passa é que o corpo de Gloria não deve ser escondido do público só porque, aos 58 anos, ela estaria fora do padrão de beleza aceito socialmente mesmo que ela seja uma mulher magra. As cenas de sexo estão no filme para retratar o desejo, como qualquer cena erótica, e esse efeito permanece no remake.

Por mais que Gloria Bell siga fielmente o roteiro original, as mudanças da adaptação resultam em um filme genérico. A trilha sonora perde a cumbia chilena para a música de discoteca dos anos 80. A personagem da empregada doméstica, que marca a posição social de Gloria, é trocada pela mãe americana elegante, uma relação com um potencial não aproveitado na regravação. No Chile, Gloria depila as pernas em casa. Em Los Angeles, ela vai ao salão para fazer uma depilação íntima. A conversa polêmica na mesa de amigos não é mais sobre protestos estudantis, algo que sempre está acontecendo no Chile, mas sobre o porte de armas, tiroteios, essas questões dos Estados Unidos.

Mas, no fim, Gloria Bell também não é um filme com identidade americana. Ainda que muitas das locações sejam ao ar livre, além das clássicas cenas da personagem cantando no carro enquanto dirige pela cidade, o longa deixa a impressão de ter sido gravado em estúdios de Hollywood, numa cidade que só existe na ficção. Logo que lançou Gloria, em 2013, Sebastián Lelio disse que esse também era seu filme sobre Santiago, já que suas obras anteriores haviam sido gravadas em outros lugares. Foi essa relação com a cidade que ficou faltando na adaptação.

A regravação teria funcionado melhor se a troca de cenário tivesse algum impacto relevante na vida da protagonista. Ou se ao menos a nova versão tivesse mostrado algum efeito da passagem de tempo na vida de uma mulher da idade de Gloria, mesmo que cinco anos seja pouco para alguma mudança efetiva. Talvez justamente por isso o projeto Gloria Bell deveria ter ficado mais tempo na gaveta. Em entrevista ao NYTimes, o diretor justifica o remake com a desculpa de que queria revisitar o próprio filme nesse momento específico em que o olhar sobre as mulheres está mudando por causa de movimentos como o #MeToo, contra o assédio sexual em Hollywood. Mas o novo filme apenas reacende as discussões que já tinham sido feitas lá em 2013. Na prática, a fala serve apenas para vender o lançamento.

Enquanto remake, Gloria Bell não segue o sucesso da versão americana de Laura Branigan para a música “Gloria” (1982), a trilha do final catártico do filme, que no caso também é uma regravação. A música, de 1979, é originalmente do cantor italiano Umberto Tozzi, que regravou uma versão em espanhol, que aparece no filme chileno. É claro que a música de Gloria é a que leva o seu nome. A versão em inglês parece falar mais sobre a personagem do que a letra original, que é praticamente uma declaração de amor a uma mulher. Na versão cantada por Laura Branigan, Gloria está sempre fugindo e correndo atrás de alguém que ela quer conseguir de qualquer maneira. E, por isso, ela precisa desacelerar antes que estrague tudo, antes de entrar em colapso.

“Gloria, you’re always on the run now
Running after somebody, you gotta get him somehow
I think you’ve got to slow down before you start to blow it
I think you’re headed for a breakdown, so be careful not to show it”

“Glória, você está sempre com pressa
Correndo atrás de alguém, você precisa chegar até ele de algum jeito
Acho que você precisa desacelerar antes de entregar tudo
Acho que você está indo rumo a um colapso, então cuidado para que ninguém note”

O trecho funciona para as Glorias de Sebastián Lelio porque, mesmo que a intenção da protagonista do filme não seja a de encontrar um amor, ela definitivamente está correndo atrás de alguma coisa. Para fazer uma referência involuntária a outra música da mesma época, Gloria só quer se divertir.


* A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.