Em tradução livre, mainstream é o fluxo artístico predominante na cultura popular e que se caracteriza como inofensivo para as massas, similar a outros aspectos já difundidos como gosto geral e que não irá representar choque ou estranheza para quem o consome. Na música contemporânea, esse fluxo melhor se exemplifica pela homogeneidade das canções que compõe o top 40 da Billboard ou do Spotify, fazendo uso das mesmas sequências de notas, do mesmo sample ou de construções similares com sintetizadores, cujo único intuito é vender a maior quantidade de singles possível. Em oposição a essa uniformidade, uma onda de arte underground começou a se difundir de forma mais intensa, chegando ao público com uma facilidade maior e com a promessa de preencher os espaços afetivos vazios deixados pela impessoalidade presente na popularidade. Foi nesse cenário, em busca de um conforto musical que fosse além da repetição do EDM e do balbuciar do rap, que me deparei, em março de 2019, com a música “Bixinho”, carro-chefe do álbum de introdução da pernambucana Duda Beat.
Natural de Recife, a libriana Eduarda Bittencourt foi uma das novidades mais interessantes do ano de 2018. Já familiarizada com a cena alternativa da MPB carioca, tendo antes feito parte dos discos Serviço (2013), do Castello Branco, e Letrux em Noite de Climão (2017), da excêntrica Letícia Novaes, e amiga de nomes como Alice Caymmi, Mahmundi e Cícero, a pernambucana alcançou certo buzz na internet com sua versão aportuguesada de “High By the Beach”, da Lana Del Rey — a excelente, jamais lançada nas plataformas digitais e puxada pro forró “Chapadinha na Praia”. O cover abriu espaço para divulgação de suas outras faixas pela internet, em destaque o single “Bixinho”, que encontra Duda no período tênue de transição entre o amar e o desapegar enquanto entoa que “só mais uma vez não vai fazer diferença”.
Aliás, o trânsito entre o amor e o desapego é o enfoque que norteia o universo artístico de Sinto Muito (2018), seu melancólico e aclamado álbum de estreia. Carregado de canções de amor aptamente caracterizadas como “sofrência indie”, mas sem perder a raiz brasileira no resgate aos ritmos nordestinos, Sinto Muito navega sabiamente entre os tais mainstream e underground, abraçando desde o trap até o forró, do brega ao R&B americanizado. Essa mistura ajuda a criar um ambiente musical que é, ao mesmo tempo, intimista e coletivo, e não é irônico que a música que me fez conhecê-la foi o remix de “Bixinho”, que une elementos do tecno brega pernambucano e paraense à letra mais sentimental do álbum. Acima de tudo, Sinto Muito não é somente um álbum sobre paixões e relacionamentos, mas também é a exploração da galáxia de cada um quando em contato consigo mesma e com o universo dos outros, em uma experiência que transcende o simples entendimento que nós temos acerca do que é visceral e do que é a música atual.
As nobres verdades
A obra é introduzida pelo instrumental “Anicca”, que reúne sons da natureza com o tilintar de sintetizadores que logo escoam até a segunda faixa, “Bédi Beat”. A palavra é derivada do Páli, uma língua litúrgica indiana, e significa “impermanência”. O anicca é um dos conceitos fundamentais do budismo, e diz respeito ao estado de constante mudança em que se encontram todas as coisas do universo. A associação do budismo à construção musical de Duda Beat aconteceu após sua passagem de 10 dias em um retiro espiritual onde era proibida de falar, o que a motivou a pensar e transformar tais reflexões em música. Para a filosofia asiática, a mutação dos fenômenos está ligada ao fato de que algo sempre depende de causas e condições para acontecer, ou seja, uma coisa depende de outra coisa, que, por sua vez, depende de outras coisas para se concretizar, e a mudança ou inexistência de pelo menos um desses fatores é capaz de modificar totalmente a cadeia de acontecimentos. O entendimento do anicca (que, junto com a dukkha e a anatta, compõe as Três Marcas do Universo — características inerentes a todos os fenômenos do universo) é essencial para suspender o apego desmedido que sentimos por tudo, seja pessoas, objetos ou sensações.
Se afastar daquilo que não é concreto, satisfatório ou real faz parte da mitologia da primeira metade de Sinto Muito. Ao longo de “Pro Mundo Ouvir”, “Back to Bad” e “Parece Pouco”, Duda parte numa árdua jornada de descobrimento de quem é, do que é o amor e do que ela pode oferecer para si mesma e para quem ama quando está em um relacionamento. Quando relata que “estava a espera de um mar de amor”, Duda compreende, que nem Heráclito, filósofo grego que também pregou a mudança como essência de tudo quando disse que “um homem não entra duas vezes no mesmo rio”, a linha tênue entre o que queremos, o que temos agora e o que podemos ter no futuro, baseada em do que somos feitos e onde estamos psicologicamente. Ainda pro budismo, é essencial saber tudo sobre seu sofrimento: o que é, de onde vem, como cessá-lo e o caminho (ou, magga) necessário para chegar em um estado de abnegação — elementos conhecidos como As Quatro Nobres Verdades. No universo do álbum, essas verdades vêm para o eu-lírico por meio do entendimento de que, talvez, esse tal mar de amor é fundo o suficiente para afogar, e que esse sentimento não deságua nem em rio nem em coração.
“De que tipo é o seu amor?”
Mas é só no fim do álbum, na faixa “Bolo de Rolo”, que Duda parece finalmente se soltar das amarras imaginárias que a prendem em relacionamentos doloridos (“eu não vou buscar a felicidade em mais ninguém”), finalizando o ciclo que começou lá em “Bixinho” (“eu nunca senti desapego por ninguém/ com você experimentei/ não resisti”). Ainda que os destinatários das faixas sejam diferentes, há uma sensação de repetição da temática do álbum, uma reafirmação das decepções que parece ir contra o anicca: sim, tudo muda, mas o desengano é constante, só se alteram os remetentes. Essa percepção vem logo depois da música mais raivosa e crua do disco, “Egoísta”, em que o eu-lírico expõe os joguinhos doentios de seu antigo amor, agradecendo ironicamente por tudo que sofreu e que a fez crescer, retomando a ideia de “Back to Bad”: “eu nunca fui tão humilhada nessa vida por você, meu amor”. A vibe raivosa da canção, adquirida corretamente por Duda Beat depois de tudo a que foi submetida pelo amante, transparece num momento de desdém logo após a confissão silenciosa de que havia morrido muitas vezes para salvá-lo: “mas ainda bem que eu aprendi a ser egoísta com você; tá reclamando do quê?”
Like ou love?
Em uma entrevista no meio do ano passado, Duda brincou que valoriza um tipo mais “antigo” de amor, e que “desde que inventaram essa história de ‘ficar’, ninguém quer mais nada com ninguém”. Esse sentimento de desencaixe na dinâmica dos relacionamentos atuais é o que marca a espécie de “Lado B” de Sinto Muito, uma sequência de canções em que Duda Beat reflete sobre a efemeridade (e, por que não, a impermanência) de seus relacionamentos amorosos.
O amor que rodeia Sinto Muito é, ao mesmo tempo, arcaico e pós-moderno. Por um lado, percebe-se uma forte influência do ideal literário romântico do século XIX nas canções: o viver e o amar estão entrelaçados de forma tão apertada que um não existe sem o outro. Em busca por um nirvana sentimental que jamais poderia existir quando se tornam interdependentes duas coisas distintas, o romântico compreende que amar também é sofrer e que a plenitude da vida não pode ser alcançada, somente, pelo amor. Com isso, só resta o sofrimento. Por outro lado, Zygmunt Bauman foi mestre quando discorreu sobre a superficialidade dos relacionamentos modernos, cada vez mais focados no ganho individual do que no crescimento coletivo. Duda Beat, que, assim como a maior parte dos millenials, também moldou seu pensamento afetivo por meio de filmes da Disney, se apropria da efemeridade do amor quando, em “Back to Bad”, canta “você gostou/ depois pegou, olhou e viu que não serviu/ então me jogou fora assim”, um ode (ou ódio) à cultura do ficar.
“Se não quer, não me dá like.”
Em tempos de Facebook, Tinder, Grindr e afins, em que o interesse pode ser resumido a uma simples deslizada para direita ou para esquerda, o amor foi se tornando cada vez mais volátil, escorregando entre os dedos como areia fina. Bauman, ilustre sociólogo polonês, chamou isso de liquidez, um estado social em que tudo se tem, mas nada se retém. No amor, esse conceito se cristalizou exatamente por meio das redes sociais, em que julgamos, primeiramente, o exterior de quem estamos interessados ao invés de conhecê-los psicologicamente, num mundo que valoriza mais a atração carnal do que o laço afetivo. Sem julgamentos de valor acerca dessa prática, não coube a Bauman decidir se isso era melhor ou pior; contudo, quando Duda resume, em “Pro Mundo Ouvir”, o interesse à curtida nas redes sociais e, mais tarde, em “Todo Carinho”, que ela é de outro tempo (“amor que é para sempre”), fica clara a contemporaneidade da ideia de liquidez, presente não só no eros, mas também nas relações entre familiares e amigos. Nesse mundo pós-moderno, se o início de um relacionamento está ligado a um mero like na foto do Instagram, o término se mostra igualmente simples: basta arrastar o sentimento para a lixeira, ou apertar a tecla direita do mouse e clicar em “deletar”.
Mesmo assim, o eu-lírico persiste na busca do amor (“sempre vou lá naquele lugar/ na esperança de te encontrar”), independente do zeitgeist coletivo de que nada foi feito para durar. No decorrer do álbum, poucas músicas realmente tratam o amor como um sentimento feliz, mas, ao longo da obra, os momentos mais impactantes e memoráveis são quando Duda Beat aparenta ter relances de lucidez empoderada e soberana entre cada ciclo de sofrimento. “Bixinho”, por exemplo, valoriza os momentos simplistas que constroem, de verdade, um relacionamento: Duda enaltece o sotaque de seu amado, encontrando, ainda, grande valor nos momentos de contato carnal entre os dois (“eu gosto mesmo é quando você me puxa/ cheira meu cabelo, aperta minha coxa/ que com esse jeito você me deixa louca/ e o que é que tem?”). Já “Todo Carinho”, a intimista última faixa, encontra o eu-lírico num momento de honestidade confessional consigo mesmo e com seu amado (“tanto sentimento guardado para nós dois/ que se eu só tivesse hoje para te amar de novo/ de novo, de novo”), traduzindo o espírito que Duda transparece ter quando ama alguém de verdade em um único verso: é que eu amo você, e nem sei por quê.
“Eu te conheço de outra vida.”
Na jornada entre amar e sofrer, Duda Beat parece aprender que não deve tentar mudar a forma que ama só porque outros tiram proveito disso, um entendimento que se traduz em descaso na faixa “Bolo de Rolo” (“eu só quero dizer que, para mim, você, tanto faz”). Dessa sessão ímpar de terapia que é Sinto Muito, Duda sai em paz consigo mesma, tendo colocado, finalmente, para fora todas as suas desilusões e os entrances do que faz do seu amor, amor, deixando em aberto que, quem quiser uma chance com ela, tem que não somente compreender todo seu labirinto sentimental, mas estar de braços abertos para caminhar cegamente com ela; o eu-lírico percebe, então, que é capaz, sim, apesar de tudo, de encontrar o amor, seja em si mesmo ou na complexidade do tempo. Ao final, o sentimento que fica em “Todo Carinho” é que Duda Beat finalmente é leve e livre nos seus amores, e, para quem, no começo do disco, cantava que “nem percebia que das vezes que ria era vontade de chorar”, é emblemática a repetição espontânea que serve como fade-out para o álbum: todo carinho do mundo para mim é pouco.
Sofrência pop no seu ápice
É preciso coragem para ser abertamente sentimental. Há força e poder em falar sem rodeios sobre amor e dor num mundo que parece querer forçar cada vez mais uma faceta durona e estoica nos relacionamentos, clamando que é preferível o indivíduo engolir seus sentimentos, ou guardá-los à sete chaves no porão, a tentar entendê-los. Não é a toa que a Lorde chamou os millenials de “geração sem amor”, ainda que amor não seja exatamente o que falta na contemporaneidade, mas sim a permissão para sentir. É ainda mais audacioso ser uma mulher que fala sobre o que sente. Ainda que, historicamente, o estereótipo do romântico, onírico e apaixonado caia sobre o colo das mulheres, é exatamente essa sentimentalidade que nos faz sermos vistas como pessoas inferiores, incapazes de separar a mente do coração. Alheia — ou talvez completamente atenta — a esses rótulos, Duda derrama seu coração em todas as faixas do disco, estabelecendo diálogos com aqueles que já amaram assim como ela e contando de forma realista as vivências femininas em relacionamentos amorosos. Sua voz ecoa, melódica e estridente, em cada faixa que acusa seus antigos amores, e o gosto que fica, no fim do álbum, não é necessariamente amargo, mas muito mais agridoce.
Sinto Muito já embarca na ambiguidade desde a escolha de seu título. Ainda que a primeira ideia para designar o disco tivesse sido Dub Night Apaixonados Volume 1, o nome final acabou fazendo muito mais jus à temática do álbum, evocando uma espécie de passeio eterno entre o coração e a mente. Afinal, ninguém pode decifrar com certeza o significado do título: overdose de sentimentalismo ou pedido de desculpas irônico pós-superação? É mais provável que Duda Beat, eternamente autoconsciente da construção de sua obra, tenha se apegado a elementos dos dois conceitos, criando uma nomenclatura quase cômica, em que uma simples interpretação diferente torna o significado paradoxal. Essa ânsia por se equilibrar na linha tênue entre a seriedade e o deboche transparece em diversos momentos do álbum, desde o atrevimento tipicamente nortista em não só chamar seu amado por tal apelido, mas nomear uma faixa “Bixinho”, até a mistura polifônica de ritmos que compõe a atmosfera semântica do álbum: retirar o hip-hop de Sinto Muito é tão dissonante quanto retirar sua bossa nova.
Talvez seja essa hibridização sonora que torna o álbum tão reconfortante. A identificação de elementos que transcendem um só gênero musical aproxima Sinto Muito de um local agradável ao ouvinte, capaz de perceber padrões em seus próprios gostos musicais. Há rap, hip-hop, reggae, R&B americanizado e ska. Ao mesmo tempo, é claro que tem MPB, bossa nova, forró e axé. O lado globalizado do disco não anula as influências tipicamente brasileiras presentes nas canções, assim como o molde do disco não foi, necessariamente, baseado nas experiências de Duda como uma criança e adolescente recifense, de modo que as duas influências criam uma atmosfera musical coesa e harmônica. Porém, ainda que tais trocas sejam complementares, os momentos de ápice do disco são aqueles em que Duda Beat não hesita em parecer diferente, deixando o sintetizador navegar por um território mais brasileiro raiz do que qualquer outra coisa. É quando Duda abraça, musicalmente, seu lado regional, deixando a língua que fala “visse” escorrer com a mesma intensidade do que aquela que enrola o R, que ela se concretiza, afinal, como uma das promessas mais interessantes da música nacional.
Brasil nordescópia
Dos artistas brasileiros na sua playlist, quantos são do Norte ou do Nordeste? E não valem os figurões da música brasileira: Caetano Veloso, Ivete Sangalo, Djavan, Gilberto Gil, Novos Baianos, Belchior, Lenine e Gal Costa estão automaticamente excluídos dessa contagem. Provavelmente foi difícil nomear um artista que se encaixasse na descrição.
A verdade é que o Brasil vem promovendo uma onda de resgate à tradição nacional que, muitas vezes, não inclui o Norte. O movimento da Nova Música Brasileira tende a se concentrar e exaltar, principalmente, os estados e os artistas do Sul e do Sudeste, ainda que, historicamente, sejam tais regiões aquelas que menos produzem um som tipicamente brasileiro e que mais sofrem influência do estilo musical europeu e norte-americano. Salvo raríssimas exceções, como a cantora de tecnobrega Gaby Amarantos, do Pará, a banda de ijexá Baianasystem, da Bahia, e o duo MPB Anavitória, do Tocantins, não se encontram artistas fora do eixo Rio-São Paulo-Brasília tocando nas rádios nem tendo local de destaque no novo cenário mainstream brasileiro. Dos amigos de Duda Beat anteriormente citados, todos são do Rio de Janeiro, e, das 50 músicas mais ouvidas no Brasil segundo o Spotify, há apenas três intérpretes nortistas: Wesley Safadão (Ceará), Mano Walter (Alagoas) e Márcia Fellipe (Amazonas).
Não foi ironia, nos anos 80, e continua não sendo agora, em 2019, quando o Bloco Olodum cantou, em “Protesto do Olodum”, que “pro Nordeste o Brasil virou as costas”. Não só de uma perspectiva socioeconômica, mas também artística, o Norte está longe do ápice representativo das décadas de 60 e 70, quando seus artistas ocuparam local de destaque, período que também representou o apogeu qualitativo da arte brasileira. Se, antes, cantores como Geraldo Vandré, Maria Bethânia, Chico Science e Tom Zé eram aclamados por romper com os padrões americanizados de música, ao passo que Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Ferreira Gullar e Clarice Lispector faziam o mesmo pela arte escrita, hoje, a falta de artistas do norte na arte popular significa, também, uma reafirmação dos moldes globalizados de produção artística. Acerca dos ritmos mais populares no Brasil, e com exceção do funk carioca, que já se morfou em um estilo tipicamente nacional, o que é o sertanejo universitário e o pop paulista senão re-interpretações de ritmos já globalizados? Os artistas do Norte e Nordeste, por estarem, muitas vezes, desligados do universo consumerista que caracteriza a globalização (num processo econômica, educacional e socialmente excludente), oferecem perspectivas inovadoras acerca da arte, voltando-se para inspirações regionais ao invés de mundiais, criando uma arte baseada no próprio universo afetivo em que cresceram ao contrário daquele difundido pela rádio e pela TV. Sem julgar o que é melhor ou pior, falta, atualmente, algo verdadeiramente brasileiro, ainda que fundido com influências externas, que se aproxime daquilo oferecido pelos nordestinos de outrora.
Ainda, é curioso notar uma certa uniformização do que se imagina ser nordestino. Wesley Safadão, Márcia Fellipe e Mano Walter compartilham de uma característica musical voltada para o forró e para o sertanejo universitário, ritmos que já se espera serem reproduzidos por cantores nortistas. Da mesma forma, tanto Ivete quanto Baianasystem carregam em si o elemento do axé music, e Gaby Amarantos e Joelma são duas das figuras mais importantes do tecnomelody. É difícil apontar uma banda de rock nordestina (ainda que existam as excelentes Plutão Já Foi Planeta, Vivendo do Ócio e Far From Alaska, entre outras) ou um grupo de jazz nortista exatamente porque esses tipos musicais não fazem parte do ideário criado pelos sulistas acerca do que é a música do Norte. Se espera muito carnaval, muito forró e muito bumba-meu-boi, mas pouco refinamento ou requinte, ideia intimamente ligada ao estereótipo de inferioridade nordestina, noção subjetiva que, só porque algo é do sertão, do mangue ou da várzea, é pior ou tem menos qualidade cultural. É nesse contexto que, em 2016, os rappers Diomedes Chinaski e Baco Exu do Blues, respectivamente pernambucano e baiano, lançaram a polêmica “Sulícidio”, diz ao comportamento dos rappers do Sul e do Sudeste, que haviam perdido o apelo social do hip-hop em prol de fazer lovesong para “comer fã”. Ainda que a faixa tenha momentos controversos e problemáticos, em especial o verso do Baco, foi divisora de águas por propor o fim da concentração do rap no eixo Rio-SP e estimular a presença de artistas nordestinos na cena do rap (“como é que você nunca ouviu falar/ dos bruxos lendários do Norte”, “Nordeste, desgraça, engrossa o caldo”), eternamente esquecidos e, talvez, com clamores revolucionários de igual ou maior intensidade que os sulistas. Ainda que agressiva (“sem amor pelos rappers do Rio/ e nem por vocês de São Paulo/ vou matar todos a sangue frio/ e eu tenho caixão pra caralho”), característica típica dos raps de ataque, a track foi essencial para abrir espaço para cantores de outros locais que já mandavam rimas pesadas se inserirem no rap, como o cearense Don L, e, hoje, a cena já conta com muito mais nortistas e nordestinos (além de mulheres e LGBT+s, negligenciados no processo artístico do rap). Na época desconhecido, Baco Exu do Blues se configura, atualmente, como uma das figuras mais aclamadas do hip-hop nacional, e isso é, e em grande parte, graças aos desdobramentos ocorridos pós-“Sulicídio”. Chinaski, que, em 2016, dividia a “cota nordestina” no rap com Rapadura, conseguiu se firmar ainda mais na cena, sendo sua mixtape Comunista Rico uma das mais aclamadas de 2018.
Esse clamor de ter o Nordeste em cenas que vão além do forró, da MPB e do axé se inclui no desejo de ver artistas nortistas marcando presença em meios de produção alternativos e independentes, e é nesse cenário que Duda Beat se encaixa. Só a própria existência da cantora, com seu sotaque facilmente identificável, já representa um marco na representação do Norte no contexto mainstream, mas Duda Beat ainda faz questão de levar o Nordeste consigo, seja no nome (Beat, como em manguebeat), seja na presença, ao longo de Sinto Muito, de toda a bagagem cultural-musical que ela carrega como mulher nascida e criada em Recife. Misturando o som do mangue com o axé e o com o brega, Duda demonstra ter um verdadeiro coquetel molotov de referências prestes a explodir, provando que o Nordeste não tem somente uma única faceta, mas é, desde sempre, sincrético.
Sem intenção de criar uma espécie de Confederação do Equador contemporânea, os artistas do Norte estão ficando cada vez mais intimistas, absorvendo suas próprias características, retroalimentando mais intensamente seus próprios conhecimentos e sua própria cultura. O que está acontecendo é um processo de modernização da música nordestina, que já cansou de ficar à margem do processo artístico e deseja, também, alcançar espaço nos cenários de destaque. Na Bahia, o Baianasystem e o Psirico encabeçam um movimento de eletrização das guitarras e uma transformação dos conceitos do axé propostos, outrora, por Dodô e Osmar, trazendo o som para a periferia e para um lirismo mais cru, que aborde, de fato, a vivência do homem negro soteropolitano. No Pará, a mistura desde os anos 2000 da música romântica com gêneros tipicamente nortistas, como o carimbó e o calypso, moldou e difundiu o tecnobrega por todo o país, influenciando grupos sulistas como a Banda Uó e a Banda Djavú, e até a maranhense Pabllo Vittar. Em Pernambuco, o saudosismo ao manguebeat ainda persiste graças à reverência ao grupo Nação Zumbi, mas são novos rostos como Johnny Hooker, Duda Beat, Zé Manoel e Isadora Melo que carregam a diversidade musical do Leão do Norte, unindo cultura popular e arte erudita num emaranhado que faria jus ao Movimento Armorial. Já na Paraíba e no Piauí, a estilização do forró, contemporânea do tecnobrega paraense e também influenciada pelas características da música eletrônica e da lambada, impulsionou, nos anos 90, a ascensão de bandas como Calcinha Preta, Limão com Mel, Magníficos e Mastruz com Leite, tidas como algumas das maiores referências de música nordestina na virada do milênio, e, na atualidade, fundiu-se no arrocha, mais precisamente a “sofrência”, subgênero musical cujas canções retratam os percalços dos amores não correspondidos.
Contudo, o Norte não deixa de preservar o que é próprio de suas raízes. Nesse contexto cada vez mais globalizado, querer ser dono do próprio enredo cultural é quase uma nova Tropicália. Essa tendência de tentar resgatar o que é regional frente a uma dinâmica mundial cada vez mais complexa não é só um fenômeno brasileiro: mesmo num mundo pós-“Despacito”, que cada vez mais se apropria de ritmos latino-americanos na composição do pop estadunidense, a colombiana Kali Uchis faz sucesso por unir o vallenato e o merengue ao jazz e o neo-soul de Miami; na Espanha, Rosalía honrou o passado histórico do flamenco com o álbum El Mal Querer, o mais aclamado disco em língua espanhola de 2018, cujo objetivo parece ser não somente dar um sopro de ar fresco aos estilos tradicionais espanhóis, mas usá-los para mudar para sempre a maneira de se fazer pop music; na Coreia do Sul, os álbuns mais recentes da cantora I.U (Pallete, 2017) e dos rappers MINO (XX, 2018) e G-Dragon (Kwon Ji Yong, 2017) relacionam mitologia cultural sul-coreana à explosão mainstream do Kpop, fusionando batidas e samples de músicas tradicionais da Coreia a elementos do hip-hop e do soul, com letras relatando o árduo processo de ascensão à fama num dos países mais competitivos do mundo.
Muito tem sido discutido sobre a “caricaturização” da imagem nortista e o reforço de estereótipos maléficos aos habitantes do Norte-Nordeste, reduzidos, como sempre, a uma figura cômica ou sofrida. Nos comentários do clipe de “Bixinho (Remix)“, é possível identificar pessoas genuinamente incomodadas com o sotaque proeminente de Duda Beat, acusando-a de estar forçando uma forma de falar nordestina só para chamar atenção e ganhar espaço (o que a internet denominou de “mangue money”). Porém, essa reafirmação de uma estética “grotesca”, que, em primeiros olhos, pode até parecer estar enaltecendo rótulos preconceituosos, nada mais é do que a representação do ambiente cultural em que você cresceu, e tem muito mais a ver com sentimentalidade do que estereotipação. O Nordeste, por exemplo, sempre carregou a alcunha sentimental muito perto de sua arte. O Norte do país apresenta uma vulnerabilidade inerente a sua condição social, e não só numa relação econômica. É esse apego ao que é próximo e querido, a crença naquilo que cresce de sua terra, que torna o norte suscetível a acreditar na mudança pelas mãos de Lampião ou Antônio Conselheiro, ou crer na capacidade de florescer alimento em meio a chuvas torrenciais ou secas absurdas. Esse apego ao coração é o que fez, em 2015, “Eu Vou Fazer Uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito!”, do recifense Johnny Hooker, trazer o Nordeste de volta ao jogo epistêmico da música. O álbum de Hooker agiu como um divisor de águas por tornar possível voltar a se orgulhar dos ritmos tradicionais do Norte, e, unindo MPB ao brega e ao frevo, demonstrou que dava, sim, para fazer música “raiz” e ainda assim alcançar espaços mainstream. Duda Beat bebeu dessa água em Sinto Muito, assim como, em 2017 e 2018, Baco Exu do Blues com Esú e Bluesman, e Pabllo Vittar com Não Para Não (2017), quatro sucessos da crítica que, apesar de contemplarem gêneros musicais distintos, incorporam em seu cerne a constante renovação do Norte brasileiro, possibilitando uma espécie de revolução na música que expõe a natureza verdadeiramente diversa do Brasil-equatorial.
Comecei o ano de 2019 completamente desapegada de todo o tipo de música que andava ouvindo. Assim que terminei de assistir ao filme da Reputation Tour, percebi que, apesar de amar a Taylor Swift, o pop americano já não me agradava muito (obrigada por tudo, EDM). Além disso, o K-pop tinha perdido a essência para mim (obrigada por tudo, BTS) e o rockzinho inglês pós-Arctic Monkeys que sempre foi minha maior referência musical tinha ficado saturadíssimo. Tudo parecia igual e eu comecei a trocar a música (de longe meu tipo favorito de mídia) por arte que parecesse equivalente e se mostrasse inédita, mas mesmo as séries e filmes não foram capaz de preencher meu universo do mesmo modo que a música fazia. Foi num período de quase-desistência, em que eu estava pronta para simplesmente voltar a escutar o que sempre escutei, que encontrei a excelente playlist do Spotify Nova Bahia. Mais do que qualquer outra coisa, essa seleção musical fez com que eu me reconectasse com a música que cresci ouvindo, numa roupagem moderna que era exatamente o inédito que eu estava precisando. Daí, foi um passo para eu encontrar outras playlists que compilassem artistas da Nova MPB, e conseguisse me desligar quase completamente da música em inglês.
Foi numa dessas que eu encontrei Duda Beat, e ela me encontrou de volta quando trouxe letras tão simples mas tão verdadeiras e identificáveis, quando trouxe elementos de ritmos que lembro de ouvir com meus pais e meus avós, quando me vi representada pelo sotaque ao assistir a suas entrevistas (mesmo o dela sendo de Pernambuco e o meu sendo uma mistura única de Bahia-Pernambuco-Sergipe). Foi ao trazer essa alma do Nordeste direto para minhas playlists e para as minhas seleções de mais ouvidos que Duda Beat garantiu seu espaço e sua importância no meu mundo, e ainda que Sinto Muito seja pautado na impermanência dos relacionamentos amorosos, Duda provou pra mim que esse ideal nortista, a persistência e a crença em possuir ou tomar de volta os próprios espaços, é uma característica que, no imaginário e no coração-sentimental do nordestino, é capaz, sim, de persistir.
* A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.
Interessante análise, Duda Beat traz uma sonoridade inovadora e envolvente, ao mesmo tempo que preserva suas raízes e autenticidade, foi um bálsamo ter descoberto as suas músicas.