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Crítica: The Crown, a esquecida rainha Elizabeth

A quarta temporada de The Crown está quase estreando (a data é dia 15 de novembro) e somente agora consegui concluir a leva de dez episódios de sua terceira fase. Diferente do que que aconteceu com as duas temporadas anteriores, cujos episódios assisti de uma vez só no dia de suas respectivas estreias, dessa vez eu fui resistente. Não consegui mergulhar por completo nos dramas da família real britânica e um episódio por vez parecia o suficiente a cada mês. Demorei um pouco para entender de onde vinha tanta resistência, mas ao finalizar a terceira temporada cheguei a uma conclusão: ainda que a produção permaneça impecável, falta um pouco de carisma a essa história, ou seja, falta a faísca de entusiasmo que nos faz maratonar dez episódios de uma vez e ainda pedir por mais.

Atenção: este texto contém spoilers!

E com isso não quero dizer que falta carisma aos seus atores. Olivia Colman entra para substituir Claire Foy como a Rainha Elizabeth II e é perfeita em todos os momentos como a monarca. O mesmo pode ser visto em Tobias Menzies incorporando o Príncipe Philip, outrora interpretado por Matt Smith, ou a Princesa Margaret de Helena Boham Carter que honra em todos os momentos a versão mais jovem vivida pela atriz Vanessa Kirby. O que falta aqui é um carisma com relação às histórias contadas por Peter Morgan, criador da série: enquanto na primeira temporada nós descobrimos juntos de Elizabeth o que é ser rainha, aqui já acompanhamos uma monarca estabelecida enfrentando os quinto, sexto e sétimo primeiros-ministros e se preparando para comemorar seu jubileu de prata — marco de vinte e cinco anos de reinado.

E muitas coisas acontecem nesse ínterim. Alguns do eventos pinçados para essa temporada incluem a desvalorização da libra esterlina, o desastre da mina de Aberfan em 1966, o romance entre o Príncipe Charles (Josh O’Connor) e Camilla Shand (Emerald Fennell), o fim do casamento de Margaret e Antony Armstrong-Jones (Ben Daniels) e até a chegada do homem à Lua em 1969. No meio de tudo isso, é a própria Elizabeth que termina quase apagada, solitária, servindo apenas como conexão entre todas essas histórias visto que as tramas envolvendo todos os demais personagens soam mais interessantes do que as dela. Nos dez episódios da terceira temporada, Elizabeth é o foco de praticamente apenas um deles, o quinto, nomeado “Coup”, quando ela, em companhia de Porchey (John Hollingworth), embarca em uma viagem para a França e os Estados Unidos com a intenção de conhecer os grandes criadores de cavalos de corrida e suas novas tecnologias, vislumbrando o que poderia ter sido sua vida caso não tivesse se tornado rainha.

Embora os episódios passem a sensação de serem tramas desconectadas umas das outras, ligadas apenas pela existência de Elizabeth, a terceira temporada de The Crown tem em suas histórias isoladas momentos muito interessantes que permitem que seus atores brilhem. É o caso, por exemplo, do sexto episódio, “Tywysog Cymru” em que a trama acompanha a viagem de três meses de Charles ao País de Gales e seu empenho para aprender galês antes de sua investidura como Príncipe. Parece um roteiro simples, mas é possível ver como Charles se sente perdido em uma posição em que não pediu para estar. Ser o próximo na linha de sucessão ao trono britânico, para ele, significa ter uma vida em suspensão. Aguardar sua ascensão ao trono significa, também, uma existência aguardando pela morte de sua mãe. Os sentimentos de Charles são sua prisão, assim como ter nascido na família real — o que fica evidente para ele quando sua história com Camilla espelha a de Edward, Duque de Windsor (Derek Jacobi) com Wallis Simpson (Geraldine Chaplin): o duque foi exilado em Paris após abdicar do trono para se casar com Wallis, união feita contra a vontade da família devido ao fato de Wallis ser divorciada, o que não é permitido no anglicanismo, e que colocou o pai de Elizabeth, como o rei George VI (Jared Harris) e ela, como sucessora.

No oitavo episódio da terceira temporada, “Dangling Man”, o passado de Edward se sobrepõe ao presente de Charles — e não é preciso ser muito conhecedor da história da família real britânica para saber o que isso acarretará. Charles, apaixonado por Camilla Shand, vê sua história de amor ruir quando os Windsor se mostram contra o relacionamento entre eles. Para Charles, Camilla é a escolhida, mas Elizabeth, a Rainha Mãe (Marion Bailey) e Lord Mountbatten (Charles Dance) não aceitam que uma moça de fora da aristocracia (e não mais virgem) se torne esposa do futuro rei da Inglaterra. O final dessa história todos nós sabemos e Charles vê Camilla romper o relacionamento de ambos e se casar com Andrew Parker Bowles (Andrew Buchan) na sequência, deixando-o de coração partido enquanto embarca para assumir um posto como oficial da marinha britânica no Caribe.

A interpretação de Josh O’Connor em todos os momentos é impecável e nos faz simpatizar com o sofrimento de Charles. O Príncipe de Gales, aqui, é concebido como um jovem rapaz simpático, sentimental e até mesmo um pouco ingênuo, o que O’Connor demonstra em sua forma de se portar e reagir aos outros ao seu redor. Na presença da mãe, Charles quer poder ser apenas um filho comum, mas ele sabe que a rainha não espera nada menos do que excelência de sua parte — e, como futuro rei, é isso o que ele precisa externar. Charles não recebe as palavras de conforto e carinho de que precisa da mãe e Elizabeth, enquanto rainha, parece não conseguir fazê-lo. The Crown é uma obra de ficção livremente baseada em fatos reais, e aqui não é Elizabeth quem se opõe à união de Charles e Camilla — na vida real, no entanto, só podemos imaginar o que se passou —, e é ela quem lembra, inclusive, apontando para Edward e Wallis, o que acontece quando a família interfere no amor entre duas pessoas.

Com Camilla casada com Andrew — que anteriormente teve um breve relacionamento com a Princesa Anne, interpretada pela excelente Erin Doherty, que não hesita em falar na frente da mãe, da avó e do tio que fez sexo antes do casamento justamente com Andrew Parker Bowles —, Charles se vê em sofrimento, vislumbrando diante de si exatamente o que seu tio-avô viu quando deixou a família em nome da amor que sentia por Wallis: pessoas que não se importam com os sentimentos dos outros se isso entra no caminho do seu legado e de suas tradições. The Crown já prepara o terreno, dessa maneira, para a entrada da jovem Diana Spencer, interpretada por Emma Corrin, na vindoura quarta temporada. Diana é tudo aquilo que os Windsor esperam de uma jovem esposa do futuro rei: parte da aristocracia, virgem e anglicana.

Outro personagem de quem os roteiristas parecem gostar mais do que de sua protagonista, é Philip. Assim como nas temporadas anteriores, o marido de Elizabeth recebe plena atenção na terceira temporada — o que até funciona, mas apenas por conta de seus intérpretes excepcionais. Tobias Menzies, tão acostumado a ser coadjuvante em tramas de fantasia, como Game of Thrones e Outlander, e roubar cenas no processo, faz o mesmo por aqui. No quarto episódio da terceira temporada, “Bubbikins”, e no sétimo, “Moondust”, é basicamente o show do Tobias Menzies. Se em “Bubbikins” é mostrado um pouco do seu relacionamento com a mãe, a Princesa Alice de Battenberg (Jane Lapotaire), em “Moondust” vemos mais do homem por ele mesmo — e talvez, até por conta disso, eu prefira aquele a este. “Bubbikins” conta a história de Alice, bisneta da Rainha Vitória, esposa do Príncipe André da Grécia e Dinamarca e mãe de Philip, mas não apenas isso. A história de vida de Alice é rica por si só e é uma pena que só tenhamos visto parte dela.

Exilada com toda a família após seu marido ter sido declarado como culpado da derrota na Guerra Greco-Turca, que durou de 1919 a 1922, Alice retornou para Grécia em duas ocasiões, em uma delas durante a Segunda Guerra Mundial. Em seu segundo retorno, Alice passou a realizar trabalhos de caridade, protegeu judeus e ainda fundou uma ordem de enfermagem de freiras que ficou conhecida como Irmandade Cristã de Marta e Maria. Em The Crown, Alice aparece com idade avançada, usando hábito de freira e fumando cigarros enquanto vende joias da família real para manter sua fundação funcionando. É o joalheiro, inclusive, que dá o alerta para a polícia quando a senhora tenta lhe vender um broche valioso, apenas para descobrir a verdadeira identidade da freira na sequência. Alice viveu uma vida longa, indo de país em país após o exílio, e recebe o convite de Elizabeth para morar no Palácio de Buckingham quando um golpe militar derruba a monarquia grega em 1967 — e é nesse momento em que ela retoma o contato com Philip.

O convite de Elizabeth para que Alice fosse viver em Buckingham realmente aconteceu. No contexto de The Crown, a chegada princesa serve como mais um pretexto para nos aprofundarmos na psique de Philip, os traumas de sua infância e como ele lida com a mãe no momento atual. Quando Alice chega ao palácio, ele a evita. Preocupado em recuperar a imagem da família real junto aos plebeus, Philip tem a ideia de gravar um documentário no palácio, envolvendo toda a família no processo. O intuito é mostrar como os Windsor são importantes para seu país e seu povo, e não um gasto desnecessário como muitos parecem pensar. Mas a chegada de Alice deixa Philip alerta, ele não imagina como a população receberia a história de sua mãe, uma princesa exilada que deixou a realeza para se dedicar aos menos afortunados, se colocada em perspectiva com a história da família que ocupa o Palácio de Buckingham atualmente.

Se em “Bubbikins” entendemos Philip enquanto filho, em “Moondust” vemos sua preocupação enquanto homem que está envelhecendo e passando por uma crise de meia idade. Philip está longe de ser meu personagem favorito em The Crown, mas a interpretação de Tobias Menzies nos faz simpatizar com o Duque de Edimburgo e seus dilemas que poderiam ser encaixados em um “white people problem” sem muito esforço. Peter Morgan entrega um episódios belíssimo para Philip com “Moondust”: aqui, o consorte da rainha fica obcecado com o lançamento da missão Apollo 11, que levaria os primeiros astronautas à Lua, e coloca o feito de Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins ao lado de seus compromissos pouco empolgantes, o que desperta nele todo tipo de gatilho a respeito do que está fazendo com sua vida e o sentimento de que está falhando miseravelmente em encontrar um propósito. Enquanto os três astronautas partem para desbravar o desconhecido, Philip está fazendo discursos em clínicas odontológicas, e colocar isso em perspectiva causa um desconforto imenso no duque que sente-se pouco importante. O episódio inteiro é um paralelo entre esse dilema na vida de Philip e o que ele quer fazer com ela, o que culmina em um encontro estranho de quinze minutos entre ele e os três astronautas após o retorno com sucesso da missão Apollo 11. Philip, que esperava encontrar três homens tão imensos quanto a tarefa que se dispuseram a fazer, se depara com três norte-americanos resfriados e mais deslumbrados com o palácio do que com o fato de que estiveram na Lua. Descobrir que aqueles homens eram tão humanos e cheios de falhas quanto ele  faz com que Philip, finalmente, entenda os sentimentos que tem lutado contra durante tanto tempo.

É dessa maneira, com episódios focados em membros pouco queridos da família real, que The Crown tem feito um ótimo trabalho em trazer mais humanidade e simpatia para figuras como o Príncipe Philip e o Príncipe Charles — o que ocorre às custas justamente de Elizabeth. Tanto nos episódios focados em Philip quanto nos focados em Charles, Elizabeth atua apenas como coadjuvante. E para além das tramas envolvendo Philip e Charles, é a Princesa Margaret quem também rouba a cena de sua irmã mais velha, sendo o foco de dois episódios, “Margaretology” e “Cri de Coeur”. Em “Margaretology”, a princesa visita os Estados Unidos ao lado de seu marido e se torna a alma de qualquer festa em que apareça, e em “Cri de Coeur” acompanhamos os momentos finais do casamento entre ela e Antony Armstrong-Jones após seu affair com um jovem ser exposto nos tabloides.

Assim como Charles foi impedido de se casar com Camila, Margaret também não pode ser casar com Peter Townsend (Ben Miles), oficial da Força Área, divorciado e dezesseis anos mais velho do que ela — o que a levou, mais tarde, ao casamento com Antony Armstrong-Jones. O relacionamento entre eles se iniciou de forma leve, com dois filhos incluídos no processo, mas na medida em que os anos foram passando e Tony começou a se afastar de Margaret em longas ausências justificadas por seu trabalho como fotógrafo, as coisas foram ficando pouco saudáveis entre eles, e a terceira temporada de The Crown mostra isso por meio das brigas que se tornaram mais violentas e rotineiras entre o casal. Enquanto Tony se relacionava com outras mulheres à plena vista, Margaret bebia para afogar sua tristeza e depressão — até que ela decidiu que faria o mesmo que Jones e procuraria ser amada onde pudesse. Dessa maneira, em uma festa, Margaret conhece o jovem paisagista Roddy Llewellyn (Harry Treadaway), um rapaz dezessete anos mais novo do que ela, com quem começa a se envolver romanticamente.

Margaret e Roddy são fotografados por paparazzis e logo o idílico relacionamento entre eles é exposto por todos os tabloides britânicos, desencadeando mais uma crise na família real. Esse é apenas um novo escândalo para a lista de Margaret, e até mesmo seu marido, que estava viajando com Lucy Lindsay-Hogg (Jessica De Gouw), sua jovem amante, retorna para casa afim de tirar satisfações com Margaret — enfim a hipocrisia. Ela e Tony brigam novamente, e dessa vez em definitivo. Um assustado Roddy deixa Margaret, mas eles ainda ficarão juntos por oito anos após o divórcio da princesa e de Jones. Margaret foi o primeiro membro da família real próxima ao monarca em atividade a se divorciar desde que o Rei Henrique VIII desfez o matrimônio com Catarina de Aragão para se casar com Ana Bolena em 1533. O baque do divórcio, do escândalo e de tudo o que estava ruindo ao redor de Margaret foram muitos para a princesa suportar. Margaret tomou uma overdose de medicamentos para dormir, sendo encontrada por seus funcionários inconsciente pela manhã em seu quarto — logo os tabloides cobriram esse episódio como uma tentativa de suicídio da princesa, algo que a família real nunca comprovou.

Ao visitar Margaret após esse episódio, Elizabeth, em um raro momento de emoção, diz que não poderia seguir em frente sem a irmã. Para Elizabeth seria insuportável se a pessoa que ela mais ama e de quem é mais próxima tivesse conseguido se matar. Ainda que esses sentimentos não sejam expostos por Elizabeth com frequência, afinal ela aprendeu a se manter neutra e contida em todas as ocasiões, a ligação entre as irmãs é um dos aspectos mais interessantes de The Crown e é uma pena que a terceira temporada não tenha entregue muitos momentos propícios para que elas pudessem interagir — principalmente levando-se em consideração o calibre de Colman e Bonham Carter, excelentes em seus papéis. Enquanto Elizabeth se preocupa por não ter construído nada relevante em seus vinte e cinco anos de reinado, Margaret é aquela que a lembra que Elizabeth é a responsável por manter todas essas engrenagens funcionando e que permitem a família real continuar existindo.

Nos últimos momentos da season finale, “Cri de Coeur”, vemos Elizabeth se arrumando para os eventos de seu Jubileu de Prata entremeados com a narração de Margaret com relação a importância da irmã para a família. “There is only one queen” (“Existe apenas uma rainha”, em tradução livre). Tudo pode ruir e desmoronar, mas não Elizabeth. “You cannot flinch. Because if you show a single crack, we’ll see it isn’t a crack, but a chasm. And we’ll all fall in. So you must hold it all together” (“Você não pode vacilar. Porque se você mostrar uma única rachadura, não a veremos como uma rachadura, mas como um abismo. E vamos cair nele. Então você deve manter tudo junto”, em tradução livre). E talvez, justamente por ser tão boa em seu papel de mantê-los todos juntos em um verniz de impecável perfeição, que Elizabeth suma em sua própria história. Enquanto rainha, ela é a melhor em manter suas emoções controladas, em não deixar transparecer um lampejo de lágrimas ou sentimentos. E é isso que a faz tão boa em seu trabalho. Enquanto Philip tem crises de meia idade, Charles chora por um coração partido e Margaret causa com um amante, para delírio dos tabloides, Elizabeth nunca colapsa. Elizabeth nunca vacila.

E é essa perfeição que acentua sua solidão. “There is only one queen.” Enquanto Elizabeth entra, sozinha, na carruagem que a levará para a comemoração de seu Jubileu de Prata, é essa a mensagem que fica. Embora a terceira temporada de The Crown não a tenha colocado nos holofotes tanto quanto seria o ideal para uma protagonista, Elizabeth é a engrenagem que mantém tudo girando e funcionando. Ela é a pessoa que passou por sete primeiros-ministros em vinte e cinco anos de reinado. Ela é a pessoa que passou por duas grandes guerras, por colapsos da moeda, por falta de luz, por dramas familiares e segue em frente. The Crown certamente é muito mais ficção do que fatos, mas mesmo assim tem seus méritos visto que, somente assim, podemos ter um vislumbre do que se passa dentro do coração da rainha. A terceira temporada não foi tão coesa ou empolgante quando suas antecessoras e parece funcionar muito mais como uma preparação para os dramas vindouros — como a chegada de Diana, o casamento com Charles, as traições com Camila e até mesmo o mandato de Margaret Thatcher, a ser interpretada por Gillian Anderson, como primeira ministra — mas não perde seu brilho. A produção segue impecável tecnicamente, com figurinos e cenários executados à perfeição, e brinca com os fatos reais e a ficção ao seu bel prazer.

The Crown segue funcionando por mais que a monarquia seja uma instituição falida porque a curiosidade é intrínseca ao ser humano — e mesmo uma história romanceada sobre essas pessoas é melhor do que história nenhuma.