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The Queen’s Gambit: o estudo de uma pessoa extraordinária

O cinema sempre foi lar para histórias de homens gênios e complexos e, muitos anos depois, até mesmo a televisão começou a incorporar essas narrativas. Do professor de química genial que fica viciado em adrenalina e começa a fazer metanfetamina perfeita para vender e “sustentar” sua família, até o publicitário brilhante e mulherengo que rouba a identidade alheia para conseguir uma segunda chance, a chamada Era de Ouro da TV está repleta de homens revoltados, amorais e cheios de nuances. E eu eventualmente cansei. Não me entenda errado. Até certo ponto gostei de Breaking Bad, e Mad Men foi, e ainda é, uma das minhas séries favoritas. Mesmo assim, fui me afastando cada vez mais desse tipo de trama e, quando vi, elas já não eram minha prioridade, nem de perto. The Queen’s Gambit (O Gambito da Rainha, em português), da Netflix, me fez retornar um pouco para as histórias sobre gênios e o que os movem. Seja porque a história é focada em uma mulher extraordinária (algo que não é tão comum assim de acontecer no audiovisual), ou simplesmente pelo fato de Anya Taylor-Joy estar brilhante no seu papel, a minissérie me conquistou e, com apenas sete episódios, me deixou com vontade de saber mais. 

A história acompanha Beth Harmon (Taylor-Joy), uma menina que ainda cedo perde a mãe em um acidente de carro. Com um pai ausente e sozinha no mundo, ela vai parar em um orfanato, onde acaba conhecendo Mr. Shaibel (Bill Camp). O zelador passa todo o seu tempo livre jogando xadrez no porão e quando Beth começa a se interessar pelo jogo, ele se transforma em uma espécie de mentor para ela, ensinando-a a jogar. Não demora muito, porém, e ela consegue ultrapassar seu mestre, chamando a atenção não só do zelador, mas também das pessoas ao seu redor. Seu dom é extraordinário, mas sua jornada pessoal é ainda mais. 

Muito como Breaking Bad e Mad Men, The Queen’s Gambit cria uma espécie de dança entre Beth e o Xadrez. Com Walter White (Bryan Cranston), a narrativa explana o químico em uma dança eterna entre sua genialidade e o perigo causado pelo tráfico de drogas, colocando-o no limite da vida e da morte constantemente. Com Don Draper (Jon Hamm) a dança é entre ele e as duas pessoas que ele foi na vida, os seus dois lados, e como isso influencia sua carreira como um dos melhores da sua área. Esses dois personagens, no entanto, já são homens formados, enquanto a história de Beth com o esporte é uma espécie de coming of age, explorando como ela encontrou o jogo e como eventualmente ele salvou a sua vida (de muitas formas diferentes). Permeada pela solidão de ser uma órfã e a dificuldade de pertencer a algum lugar, a protagonista usa o xadrez como uma forma de escape e, percebendo que é realmente boa nisso, começa a usá-lo não apenas como escapismo, mas também para ver até onde conseguia chegar — uma dança que se estende por toda sua vida.

The Queen’s Gambit

Atenção: este texto contém spoilers! 

Criada por Scott Frank (que também fez Godless para a Netflix) e baseada no livro de Walter Tevis, publicado em 1983, o estudo de personagem de Beth é o que move a produção — e faz com que ela seja tão fascinante. A atuação de Anya Taylor-Joy, que se prova ainda mais versátil do que em Emma. ou A Bruxa, mesmo que mais contida, é hipnotizante e não deixa a desejar em nenhum momento. Ainda que existam cenas que são mais focadas nas peças de xadrez e nos jogos, o seriado deixa claro desde o começo o que ele pretende fazer. A trama, por exemplo, começa com Beth de ressaca e atrasada para um jogo de xadrez na França. Quando ela finalmente consegue chegar no local e senta para jogar, a trama arremessa o público anos atrás, um pouco depois da morte de sua mãe. 

Apesar da narrativa realmente usar o recurso flashback para preencher as lacunas da história de Beth com certa frequência, o resultado de sua jornada fica claro desde o início: ela irá se tornar uma jogadora de xadrez importante e ao mesmo tempo vai sofrer com vícios em bebidas e drogas. Mesmo assim, saber o que vai acontecer no futuro não é um problema para a trama em si, sendo que esta tem plena consciência de que a jornada é muito mais importante do que apenas o final. A trajetória tem começo, meio e, só então, fim. Por causa dessa atenção aos detalhes e cuidado ao construir a personagem central (ainda que os coadjuvantes sofram com isso e fiquem jogados de lado na maior parte da trama), é interessante pensar o que levou Beth até o ponto que vemos no começo da série e porque, afinal, ela chegou até ali. Fiquei menos curiosa para saber se ela iria ganhar ou não, mas sim qual era sua condição psicológica e física naquele momento. E porque ela estava assim, quais seriam as consequências.

A narrativa deixa claro, aos poucos, que Beth é uma figura completamente solitária. Quando a minissérie tem início, a protagonista acabou de ser abandonada pela mãe, que tinha depressão e acabou se matando após sucumbir a pressão, assim como foi esquecida pelo pai, que arrumou uma outra mulher e consequentemente outra família. No orfanato, ela demora para se acostumar com a vida que está destinada a levar. Apesar de nunca ter sido rica e morar em um trailer quando a mãe estava viva, ali ela encontra regras e pessoas que tentam constantemente deixá-la na linha, fazer com que ela tenha horários, disciplina e siga com seus estudos. Ela não chega a sofrer abuso físico, e as pessoas ao seu redor não são cruéis (pelo menos não no sentido mais literal da palavra), mas o próprio orfanato faz com que as meninas tomem pílulas e um desses remédios é um tranquilizante no qual Beth acaba ficando viciada. 

The Queen's Gambit

Quando ela começa a jogar xadrez com Mr. Shaibel, passa a utilizar esse remédio para ajudá-la na hora de idealizar o jogo. Antes de dormir, Beth toma uma ou várias pílulas e pensa em estratégias para vencer o seu mestre, com um tabuleiro que se projeta no teto acima de sua cama. Eventualmente, isso acabou se tornando verdade: ela não só se tornou melhor do que seu professor, mas também se mostrou alguém que poderia ser melhor do que qualquer pessoa no jogo — e foi chamada para participar de eventos e jogar contra alunos muito mais velhos ainda bem cedo na sua carreira como prodígio. Mas se inicialmente as pílulas se tornaram uma espécie de escape, uma forma de aguçar sua criatividade e fazer com que ela conseguisse aprimorar suas habilidades, Beth acaba sucumbindo ao vício e viver sem elas não é mais uma opção. Mesmo com 10 anos de idade, ela procura meios de consegui-las porque passar por aquilo tudo e encarar sua solidão de forma clara era algo que parecia absurdo. O xadrez e as pílulas eram duas formas de esquecer onde ela estava e porque estava ali, mas um não parecia existir sem o outro e se tornavam cada vez mais entrelaçados, codependentes. Ainda bem cedo na sua vida, The Queen’s Gambit faz questão de explanar seus problemas com vícios, e onde tudo começou. 

As coisas só pioram quando ela finalmente é adotada pelos Wheatley. Logo no inicio do seu relacionamento com o casal, o patriarca deixa claro que não está confortável com a presença de Beth na casa. Tanto Beth quanto Alma (Marielle Heller) foram abandonadas pelas pessoas de suas vidas mais de uma vez e acabam criando um laço permanente entre mãe e filha. Antes, essa conexão é alimentada pelo fato de que elas não tem mais ninguém, por conveniência. Depois, no entanto, se desenvolve para algo genuíno e interessante de acompanhar. Elas realmente passam a ser mãe e filha, de uma forma quase tímida. Ambas foram jogadas em contextos sociais que as limitavam e as prendiam em uma caixinha moldada pela sociedade na época. Alma, que sonhava em ser uma pianista, se tornou uma esposa, abusada psicologicamente pelo marido, e uma sombra do que era anteriormente. Enquanto isso, Beth enfrenta suas limitações por ser uma mulher excepcionalmente boa em algo considerado “masculino”.

Quando começam a desbravar o mundo juntas, existe uma espécie de libertação na forma como ambas veem o mundo e se Taylor-Joy cria uma atuação espetacular (algo que reflete até mesmo na sua postura, na medida em que Beth vai amadurecendo), Heller é sua igual em absolutamente todos os aspectos. É comovente ver a forma como a atriz cria essa personagem que, de certa forma, abandonou todos os seus ideias para se encaixar, e depois acabou se arrependendo completamente disso. Sua melancolia é solitária, assim como a de Beth, e as duas parecem encontrar conforto uma na outra, criando a melhor dinâmica apresentada na série. A forma como elas lidam com tal solidão também é bem parecida e, mais uma vez, Beth entra em contato com pílulas e bebida, algo que Alma também consome, e perpetua seu vício. Por esses motivos, a morte prematura de Alma é ainda mais dolorosa e difícil de acompanhar. 

The Queen's Gambit

Este é um momento de ruptura para Beth e ela se encontra mais uma vez sozinha na vida precisando lidar não apenas com a morte da única figura materna que teve na vida adulta, mas também sobre o que quer fazer da sua vida. O vício e o xadrez parecem mais uma vez interligados, assim como a sensação de que ela está destinada a permanecer sempre sozinha, abandonada por todos que permeiam sua vida. O que nos leva a um outro aspecto da sua trajetória dentro da série. 

Uma coisa que realmente me incomoda na produção é a falta de mulheres por trás das câmeras, o que resulta em alguns deslizes dentro da própria narrativa. Em certo momento, por exemplo, Beth cita as revistas pelo qual é entrevistada e reclama de que nenhuma delas está, de fato, muito interessada em seu jogo — apenas no fato de que ela conseguiu entrar no “clube do bolinha” e se tornar importante no mundo do xadrez (dominado por homens desde o início dos tempos). Seu incômodo é pertinente dentro do contexto social da época — e até mesmo hoje —, mas não existe uma discussão mais profunda sobre o assunto. A trama apenas menciona esse desconforto, mas não parece preocupada em realmente mostrá-lo. A própria protagonista não se vê como um ícone feminista, algo que pode “inspirar outras meninas”, simplesmente porque não entende porque isso é relevante; ela está mais preocupada com o jogo em si, deslumbrada com o xadrez — o que faz com que ela se torne uma personagem mais complexa e diferente. Nem toda mulher que assume um lugar de poder é necessariamente feminista e mostrar isso é, de alguma forma, mais realista e importante do que fazê-la um ícone vazio do “girl power”.  

A minha crítica não é em relação a personagem e a forma como ela age perante a essa parte da história, mas ao próprio roteiro, que não entende as nuances de um assunto tão complicado e pertinente. Mulheres atrás das câmeras com certeza teriam ajudado nesse aspecto (todos os sete episódios são dirigidos pelo próprio Scott Frank, que também assina os roteiros ao lado de Allan Scott e do próprio Walter Trevis).

The Queen's Gambit

Dois pontos aprofundam esse viés sobre o assunto: o primeiro parte do fato de que, tirando Beth e Alma, nenhuma outra personagem feminina parece ser desenvolvida. The Queen’s Gambit tem um sério problema com os seus coadjuvantes, e a maioria fica sempre em órbita da protagonista. O que é compreensível, até certo ponto (são apenas sete episódios, afinal). Mesmo assim, alguns parecem sofrer um pouco mais com isso, como é o caso de Jolene (Moses Ingram). Parceira de Beth quando ela ainda está orfanato, Jolene, uma menina negra e órfã, acaba ficando para trás e se sente constantemente abandonada e solitária, alimentando aos poucos a revolta que nasce no seu coração. A personagem, que se mostra bem importante nos dois primeiros episódios, acaba sumindo até o sétimo, quando reencontra Beth. E mesmo que a narrativa explique um pouco sobre o que aconteceu com ela nesse meio tempo, ainda existe a necessidade de saber mais

Por ser uma série que é muito mais do que apenas sobre xadrez, Beth ganha um estudo de personagem incrível dentro das limitações da minissérie. Jolene, no entanto, não, mesmo que de certa forma ela fosse uma espécie de contraponto para a própria Beth. Se o seriado escolhesse explorar sua história, poderia ter entrado ainda mais fundo no sistema de privilégio e exclusão que eles abordam apenas superficialmente. Mesmo sendo mulher e excluída do clubinho constantemente, Beth é branca e consegue ser adotada, algo que abriu novas possibilidades para ela. Já Jolene ficou presa por anos na mesma situação e apesar da própria história apontar essa contradição entre suas jornadas, não explorar sua trajetória em si é um erro. Apenas expor as coisas como elas são não é o suficiente. 

O segundo ponto sobre a falta de um viés feminino na série vem do fato de que Beth constrói, ao longo dos episódios, relacionamentos importantes com outros jogadores homens de xadrez — mais exatamente outros jogadores que ela venceu ao longo de sua carreira. No centro desta narrativa, estão Townes (Jacob Fortune-Lloyd), Harry (Harry Melling) e Benny (Thomas Brodie-Sangster). Os três, de alguma forma, se tornam interesses amorosos da protagonista. Beth é uma personagem falha e honesta, que apesar de possuir uma mente brilhante, também luta contra o vício e um sentimento de solidão que permeia sua jornada. Envolvimento emocional não é algo que chega com naturalidade para ela e seus relacionamentos de alguma forma são todos um reflexo disso. Os três principais homens da sua vida parecem quase fascinados por ela, e pelo seu talento, mas parecem esquecer que estão lidando com uma pessoa real. Harry passa a morar na sua casa com o objetivo de ajudá-la a vencer o mestre de xadrez Borgov (Marcin Dorocinski), da União Soviética. Ele parece completamente apaixonado por ela, mas no momento em que Beth mostra uma parte sua que é mais complicada e frágil, ele não parece saber lidar com esse aspecto. O personagem tem a melhor das intenções; ele não é maldoso ou cruel, mas colocou Beth em um pedestal, em um ideal que nenhuma mulher jamais vai alcançar, porque nenhuma delas é perfeita. Essa parte da narrativa me fez lembrar o que Sam (Emma Watson), de As Vantagens de Ser Invisível, fala para Charlie (Logan Lerman): “não quero ser a queridinha de alguém, quero que as pessoas gostem do meu eu verdadeiro”. E ali estava o eu verdadeiro de Beth, complicado e até meio quebrado, mas não aquilo que ele imaginava no final.

The Queen's Gambit

Com Benny é ainda pior. Ele também passa a ajudá-la a criar estratégias para que Beth consiga vencer o campeonato que se aproxima, ao mesmo tempo que os dois vão se aproximando e criando um vínculo que vai além do xadrez. É possível perceber que até certo ponto ele realmente se importa com ela e vice-versa, mas Benny parece mais fascinado com a conversa sobre o xadrez em si e a fazê-la ganhar do que preocupado com a própria Beth. Ele sempre faz com que Beth tenha mais disciplina, passe a beber menos, mas apenas pelo jogo, não porque ele se importa com seu bem-estar (não mais do que superficialmente, pelo menos). Com Townes, por fim, a situação se torna ainda mais complicada. Em um momento, os dois estão próximos, no outro, a narrativa dá a entender que ele é um homem homossexual (ou bissexual, não fica claro). Mas ele mesmo parece estar procurando Beth por causa de uma atração mútua que existe entre os dois. É difícil entender o que realmente aconteceu até o ponto em que ele diz “estar confuso”, que só procurava amizade, no sétimo episódio. 

O principal objetivo da trama é deixar as relações serem complicadas, naturais e cheias de subtextos, porque é assim que elas são na vida real. É por isso que a relação entre Townes e Beth não parece se encaixar em um padrão, e é por isso também que, mais tarde, Beth aparece na cama com a modelo Cleo (Millie Brady), dando a entender que as duas passaram a noite juntas. É mais do que compreensível que Beth tenha tido vários parceiros sexuais ao longo da sua vida. É normal, é esperado. Mas falta um pouco de sensibilidade da história na hora de abordar a forma como seus parceiros viam não só a personagem em si, mas também o seu vício. E como isso a afetou. 

Porém, existe algo realmente importante que nasce a partir do relacionamento que ela cria com os homens do xadrez. Quando ela finalmente vai enfrentar Borgov, na União Soviética, eles vêm ao seu resgate para ajudá-la. Não porque ela precisa de ajuda, mas porque seu oponente aprendeu no seu país que procurar outros jogadores e discutir estratégias é algo que ajuda na hora de vencer. Beth, no entanto, sempre foi ensinada que o xadrez é um jogo solitário e, portanto, deve ser jogado na solidão, como ela fez tudo na sua vida. Mas The Queen’s Gambit deixa claro que existe muito a ser tirado do coletivo e, quando ela aprende a pedir ajuda e contar com as pessoas ao seu redor (seja com seus amigos jogadores ou apenas ao pedir dinheiro emprestado para Jolene), isso demonstra o amadurecimento da personagem e o quanto ela chegou e está longe daquela menina solitária que vivia no orfanato. Ela percebe, então, que existia uma alternativa para a solidão que ela passou a abraçar durante sua vida. 

Antes de sequer entender que minha verdadeira paixão era a ficção (e escrever, claro), assistia séries de TV durante minha adolescência que despertavam uma paixão sobre algo que nunca antes tinha me interessado. Foi assim com Grey’s Anatomy, que me fez decidir ser médica ao 15 anos. E até mesmo com Criminal Minds, muito antes disso, que me fez querer trabalhar com alguma coisa relacionada a criminologia. É lógico que, na medida em que fui crescendo, descobri que essas “obsessões” eram apenas o trabalho de uma narrativa bem feita — misturado a confusão do amadurecimento e a pressão de que querer descobrir o que eu iria fazer pelo resto da minha vida. Apesar de hoje ser velha demais para entrar nesse tipo de espiral, The Queen’s Gambit me fez procurar saber mais sobre o xadrez. Entre a narrativa fluída, esperta e pertinente sobre a história de Beth e a forma como a obra decidiu editar as partidas de xadrez — dando emoção e vida para um esporte que geralmente é introspectivo —, me vi procurando vídeos sobre o jogo e seus ofícios, nem que fosse para entender um pouco mais sobre o que estava acontecendo. 

Apesar da trajetória de Beth ser o ponto mais forte da minissérie, é impossível não mencionar todo o trabalho minucioso da produção, que não só editou as partidas de xadrez ao mesmo tempo com emoção e classe, mas também criou várias partidas hipotéticas do jogo para embutir na narrativa. Não tenho ideia se toda a representação é certa ou não, até porque estou longe de ser uma especialista no assunto, mas mesmo assim essa mistura de elementos (o emocional e o racional) faz com a série seja uma das melhores que saíram esse ano, realizando um trabalho primoroso ao estudar uma figura extraordinária e complexa de forma honesta.