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Elvis, a primeira estrela

Mesmo sem conhecer muito sobre o homem, sempre fui fascinada pela imagem do jovem Elvis Presley dançando como em um transe sobre os palcos. Por mais que as imagens antigas pudessem ser consideradas ultrapassadas por uma adolescente, havia algo de violentamente sensual nos movimentos. A voz grave parecia dizer sobre algo que — mesmo para quem ainda não entendia inglês perfeitamente — emanava sexualidade, e toda a aura de rebeldia das roupas e do cabelo ousados vinha acompanhada de sorrisos inconsequentemente sedutores daquele rapaz bonito.

Astro-rei

Na minha adolescência, o ritmo que trazia aceitação para os grupos era o rock — e em algum momento nós nos debruçávamos sobre ídolos do passado, porque o rock ‘n’ roll já estava morto quando nasci. Lá pelos anos 2000, muitos nascidos nos anos 1990 investigavam as discografias (muito mais difíceis de se acessar na era pré-histórica da internet) de ídolos do rock dos anos 1980, 1970 e, no máximo, as pessoas chegavam até os Beatles e os Rolling Stones nessa viagem reversa pelo tempo. Eu mesma nunca conheci muito da discografia do Rei do Rock, e não cheguei a amar demais nada do que ouvia dos astros antigos. Mas eu gostava muito do Elvis.

Não sabia o quanto sua trajetória era genial, embora julgasse o cantor brilhante. Tampouco poderia imaginar que tanto brilho ofuscava um lado sombrio daquela história. É que a imagem daquele rapaz cheio de energia era muito atraente, e a música muito palatável para os meus ouvidos e tudo aquilo me movia. Me comovia em várias camadas, embora não tivesse nunca chegado ao nível mais racional — eu nunca consegui saber ou compreender verdadeiramente o que havia por trás de quem fez o rock nascer.

Elvis não gestou o rock — quem o fez foram artistas negros, e talvez a mãe do rock seja mesmo Sister Rosetta. E se pensarmos na definição tradicional da mãe que gera e nutre e do pai que protege e sustenta, Elvis Presley definitivamente foi um pai que, segundo a visão do cineasta Baz Lurhmann, protegeu sua música revolucionária inclusive com a própria saúde, autonomia e a vida.

É muito difícil não saber sobre o talento do cantor e ator, considerado um símbolo nos anos 1950 e 1960 e uma das figuras mais facilmente associada à cultura estadunidense — em especial, quando se fala sobre a cidade de Las Vegas, um símbolo do país. É também praticamente impossível não reconhecer sua icônica imagem. Mas muito do que o filme lançado em 2022 traz à tela soa novo para o conhecedor médio de Elvis. Como eu, muita gente admirava e se atraía pelo cantor sob os holofotes, mas talvez muitos detalhes pareciam ocultos na sombra que se formava atrás das luzes tão fortes que brilhavam sobre ele. O diretor e roteirista australiano entrega um filme decidido a mostrar tudo que se escondia na sombra, sem se esquecer que é exatamente a luz que provoca aquele tipo de escuridão.

Nasce uma estrela

Quando ouviu falar de um jovem branco que vinha fazendo sucesso em pequenos shows cantando música negra, a ambição de Coronel Tom Parker o fez procurá-lo imediatamente: um achado como aquele seria fonte de sucesso em um país ainda segregado por leis racistas, mas que já tinha apreço pela apropriação cultural. No entanto, ao bater os olhos pela primeira vez no jovem cantor criado em Memphis, no Tennessee, Parker — futuro empresário do artista e personagem que narra a cinebiografia Elvis (Austin Butler) — descreve o rapaz da seguinte maneira: “Cabelo engomado, maquiagem de menina. É impossível descrever o quanto ele parecia estranho.”

O topete e as costeletas, o rosto delicado e bonito, ainda se tornariam ícones da cultura pop, mas já começavam a destacar o cantor de voz grave e cheia de personalidade das outras figuras da música. Hoje, a imagem de Elvis pode ser icônica justamente por ser inconfundível, mas, naquele momento, sua estética singular não chamou positivamente a atenção do empresário musical interpretado por Tom Hanks. Além de estranho visualmente, o rapaz não parecia muito promissor: nos bastidores, o adolescente é apresentado nervoso, passando mal, e sendo motivado pela família, que o acompanhava em seus shows. A mãe relembra ao jovem que ele tem a força de dois homens: consegue subir nos palcos com a própria capacidade e também a do irmão gêmeo, que havia falecido ainda na infância e estaria — segundo ela — com ele, até aquele momento.

Desconfiado, o empresário assiste em segredo ao rapaz com um terno cor de rosa nada convencional. É ali, sob as luzes, que conhecemos sua voz indiscutivelmente memorável. Ela não apenas é afinada — mesmo nos momentos futuros de sua vida, em que o cantor não estava em perfeitas condições de cantar —, mas seu tom grave consegue carregar emoções e se expressar junto com todos os outros componentes da música. Seu timbre tem alma — soul, assim como o nome de um dos estilos que influenciaram o cantor sugere. Mas para o Coronel, o potencial de Elvis Presley se mostra de fato quando os primeiros acordes e a voz única embalam movimentos frenéticos do quadril. Como num transe, as fãs da plateia vão se contagiando e deixando escapar gritos histéricos.

Naquele momento, em um flash de luz, o garoto franzino de terno rosa se transforma em um super-herói.

Tom Parker já havia visto um lado frágil do garoto, mas também conheceu a potência que ele tinha sobre os palcos. E talvez, por isso, tenha sido tão fácil para um homem ambicioso enxergar no filho daquela família não muito estruturada uma fonte de sucesso e dinheiro: Elvis tinha um talento enorme e algumas vulnerabilidades que expunham ele e sua família à manipulação sem muito esforço.

O lado escuro da lua

Como uma daquelas jovens fãs na plateia entrando em um transe coletivo mesmo só ouvindo uma música, eu também não sabia muito sobre o homem nos bastidores, mas me bastava o que ele fazia diante das câmeras — que, afinal, foi o que ficou para mim, que não vivi na mesma época e não pude experimentar vê-lo ao vivo. Tudo que eu sabia sobre Elvis Aaron Presley é que, sobre os palcos, o Rei do Rock era capaz de deixar toda a plateia em um êxtase dionisíaco, que tinha a ver não só com sua aparência ou sua dança, mas também com o transe induzido por sua voz e pela música em si.

A cinebiografia dá a oportunidade de viver essa experiência musical muito vividamente, mas além disso, escolhe contar a história do primeiro astro do rock e uma das mais icônicas figuras da cultura pop mundial pelo ponto de vista de seu empresário. A escolha do roteiro apresenta aos espectadores algo diferente do que já era mais conhecido sobre a vida do cantor, sempre exposta na mídia e previamente (cine)biografada algumas vezes. Coronel Tom Parker é vivido por Tom Hanks em um dos raros papéis em que interpreta um personagem de caráter duvidoso. A narração do personagem controverso apresenta o Elvis Presley de Austin Butler como essa espécie de super-herói: alguém com poderes sobrenaturais sobre o palco, mas com uma vida privada bem diferente daquilo que acontecia sob os holofotes. A narrativa, claramente bastante ficcionalizada — como toda história que é contada acaba sendo, conscientemente ou não —, permite ver de perto a relação de codependência entre os personagens principais e o abuso moral sofrido pela jovem estrela.

Além de trazer uma estética bastante própria, fazendo referência aos elementos mais presentes nas épocas em que o filme se passa, e um cuidado com a musicalidade e a reprodução de figurinos e shows históricos, a música não é só um elemento sensorial ou um recurso narrativo, mas é, principalmente, personagem brilhantemente ativo da trama. Afinal, Elvis não tem apenas uma história particular bem peculiar, mas ele também transformou a indústria musical, o modo como lidamos com celebridades musicais e consolidou o ritmo que misturava influências diversas como rock. Além de popularizá-lo, sustentou-o por anos de sucesso e deu base para muitos dos outros artistas icônicos se arriscarem no ritmo.

Fora da música, que muitas vezes diz mais ou o contrário do que as cenas mostram, dando um efeito muito dinâmico para a narração de Tom Paker, as interferências do narrador e as deduções que a ficção sugere compõem uma trama que traz a chance de conhecer o personagem-título por um lado mais humano, desde a primeira cena em que ele aparece, de costas para as câmeras e sendo espiado pelo Coronel que foi atrás do cantor para agenciá-lo. Além de estranho, pouco promissor, frágil e inseguro, o olhar de Tom Parker sobre o então garoto também revela a força, o talento e a dedicação heroicas do cantor.

A metáfora do super-herói — que o rapaz, criado em uma região pobre e precarizada reservada à população negra dos EUA segregado,  sonhava em ser quando criança — parece perfeita para explicar o que o roteiro se propõe a fazer. Ao invés de mostrar apenas uma trajetória de sucesso e fama ou de polêmicas e decadência, a história escolhe mostrar tudo isso, já que Elvis, assim como os super-heróis possuía um lado humano e comum e precisava sustentar as suas próprias contradições.

Escolhendo não entrar em algumas das polêmicas — como o casamento com uma garota de apenas 14 anos quando o mesmo tinha 24 e estava no exército — e suavizar outras — como a questão da apropriação cultural da música negra por um homem branco —, os roteiristas priorizam uma história sobre as fragilidades do cantor e o seu talento, que influenciam mutuamente sua jornada pela fama: quando pequeno, o pai havia sido preso, então a família Presley precisou se mudar para um bairro pobre. Foi lá que o garoto sonhador conheceu a música gospel e teve contato com o soul, ritmos que ficaram marcados em seu corpo: sua voz e sua dança remetiam ao poder daquelas melodias. Sua estética, hoje icônica, era incorporada da moda dos bairros negros também, os quais frequentou até a adolescência e os primeiros anos da vida adulta, quando começava a conhecer a fama.

Mesmo levando uma vida de abuso frequente do álcool, a única pessoa da família que parecia ser capaz de lidar de uma forma mais firme e esclarecida com a fama do filho era Gladys (Helen Thomson). A mãe, pilar familiar e maior apoio emocional do adolescente, acabou morrendo ainda no começo da carreira do rapaz. Mesmo antes do falecimento, o jovem já se encontrava desestabilizado e enfraquecido com sua ascensão meteórica e inesperada à fama. O sucesso não só trazia uma fortuna enorme, mas também muitas limitações: as turnês intermináveis e as viagens cansativas que o levaram ao uso não muito consciente de estimulantes trouxeram também apresentações na TV. Com elas, veio a perseguição da imprensa e da classe política dos EUA, a pressão psicológica e alguns boicotes e ameaças para que deixasse de lado o estilo de cantar e dançar.

Por um determinado período, o cantor chegou a ser visto como um inimigo dos políticos que representavam o conservadorismo dos Estados Unidos. O motivo? Seu rebolado perigoso, que não apenas deixava as mulheres cheias de desejo — e parecia demais para aqueles homens que mulheres tivessem vontades fora do controle deles —, mas também era uma referência ao suposto descontrole das danças negras. Ainda que desfrutando de todos os privilégios de ser um homem branco, Elvis sofria com as interferências dos grupos racistas e conservadores que queriam domar sua música para fazê-la caber na programação familiar. Para aquelas pessoas, parecia ser muito perigoso que mulheres tivessem desejos indomáveis e que a cultura musical vinda das pessoas escravizadas — e até então, ainda segregadas por leis nacionais — começasse a se misturar à branca.

Ciente de estar no centro desses impasses, o personagem-título vivia seus dilemas em relação à música quando se viu apenas sob a tutela do pai, que não tinha muita firmeza para cuidar da carreira do jovem por conta própria. Vivendo um luto profundo pela mãe, o jovem desaba e acaba se mostrando ainda mais vulnerável a Tom Parker. Depois de servir ao exército — também uma maneira imposta para limpar sua imagem — e retornar casado com Priscilla (Olivia DeJonge), uma jovem que havia conhecido na Europa enquanto estava em batalha na Segunda Guerra Mundial, Elvis acaba se vendo manipulado pelo Coronel outra vez.

Supernovas e buracos negros

Crescendo em uma família com um certo apreço por cinema antigo, sempre soube que Elvis havia tido uma extensa carreira como ator de filmes com qualidade muito duvidosa. O que eu nunca soube, e aprendi no filme de Baz Luhrmann, é que existia uma razão para a escolha de roteiros não muito elaborados e uma produção em alta escala: quem escolhia aquele tipo de roteiro não era o próprio Elvis, mas sim seu empresário.

Desde o começo, Tom Parker manipulava a família, mas após a morte de Gladys, Vernon (Richard Roxburgh), que deveria tomar conta das finanças do filho, delega totalmente seus afazeres ao empresário. O problema maior da decisão é que o garoto fragilizado foi jogado nas mãos de um homem que se preocupava apenas em ganhar dinheiro. E, mais do que enriquecer, as fortunas geradas com o gerenciamento da carreira de um artista daquele porte acabaram tendo a função de alimentar o vício em jogos do Coronel. O abuso não era apenas financeiro, e o rapaz, que nunca havia se importado muito em ganhar dinheiro, acabou não se preocupando com aquelas questões. Mergulhado nas aflições de seu tempo, Elvis se preocupava com as tensões raciais e acompanhava a política com opiniões firmes, enquanto vivia um casamento de aparente companheirismo com Priscilla Presley e cuidava da filha recém-nascida. No entanto, gravar músicas para filmes com os quais não se conectava e participar de especiais de Natal não parecia ser o que de fato satisfazia o artista.

Às escondidas de Tom Parker, que a esta altura do filme já sabíamos que era um homem que não tinha passaporte e por isso não poderia acompanhar o cantor caso ele saísse para turnês internacionais, o agora pai de família e marido supostamente exemplar procura quem possa ajudá-lo a transformar o especial de Natal em um retorno para suas raízes musicais. Para funções de dinamizar o roteiro, há algumas mudanças na ordem dos acontecimentos, mas os fatos motivadores parecem ter sido os mesmos da realidade: no meio das gravações do episódio, acontece a morte de John Kennedy, gerando grande repercussão em todo o mundo.

Após o assassinato de Martin Luther King, a quem o Rei do Rock acompanhava e admirava, a notícia de mais uma morte violenta causa um baque enorme, até porque o próprio cantor sofria ameaças de morte — e algumas parecem ter sido uma trama do próprio empresário para assustá-lo e mantê-lo sob controle. Abalado, Elvis reafirma a importância de sua arte: não só ela é uma expressão do cantor como indivíduo, mas é com sua música que, literalmente, ele consegue impor sua voz para expor o que sente em relação ao mundo. Depois de passar toda uma noite compondo, o artista grava uma de suas canções mais enfáticas e faz uma performance icônica de “If I Can Dream”, cuja letra demonstra uma posição política consciente de seu tempo.

A cena é um dos episódios registrados no filme que demonstram a conexão do artista com sua arte. Pela segunda vez, Elvis precisa reafirmar a importância de fazer não qualquer música, mas a sua música, que é também expressão de sua identidade e história enquanto parte de uma comunidade e do mundo. Neste ponto do filme, também há uma ruptura mais definitiva na relação entre Tom Parker e Elvis Presley, mas o empresário precisa que seus contratos para programações familiares sejam aceitos, pois é dessa maneira que ele seguirá obtendo o dinheiro para sustentar seu vício no jogo. Além disso, suas manipulações também o afastam do risco de revelar que é um homem que não deveria estar nos EUA. E este caminho que o Coronel deseja percorrer é bem diferente daquele que Elvis deseja para a própria carreira.

Decidido a tomar as rédeas de sua vida e de sua expressão artística, o cantor está quase pronto para uma turnê internacional por vários estádios quando o Coronel é hospitalizado. Sua determinação, no entanto, se esvazia quando Tom Parker, no leito hospitalar, ainda manipula emocionalmente o astro a aceitar um show em Las Vegas. A fragilidade mental do artista começa a se tornar ainda mais evidente ali. Encantado com a possibilidade de fazer algo tão grande sem precisar se arriscar — já que o cantor recebia a tempos ameaças de morte contra ele e sua família — Elvis aceita, mas acaba mais uma vez sendo enganado.

Para lidar com suas dívidas de jogo, o Coronel acaba firmando um acordo para que Elvis entre em uma residência fixa em Las Vegas. Este é mais um momento em que a música fala mais do que a própria cena mostra. “Suspicious Minds” é apresentada pela primeira vez no palco enquanto, na plateia, Tom Parker negocia e assina um contrato que irá deixar o artista — cujo talento já havia sido negligenciado — ainda mais à sombra de sua própria fama: pelo resto de sua vida, o cantor fica preso ao mesmo circuito de shows dentro do território dos EUA, sendo que sua fama era internacional e seu potencial era enorme. Elvis foi uma das primeiras super estrelas a alcançar o status de celebridade como hoje conhecemos, e também uma das primeiras vítimas dos abusos até hoje recorrentes na indústria musical.

Elvis, o homem, foi sacrificado, mas Elvis, o deus, nasceu.

A afirmação do Coronel, quando Elvis ainda era jovem, parece ter sido uma previsão que se cumpriu tragicamente. No fim de sua carreira, já não havia mais espaço para Elvis se expressar, a não ser os palcos limitados em que podia subir, mas sua fama continuava enorme. Já não havia muitas amizades, não havia muita confiança nas pessoas, as relações com as pessoas amadas se enfraqueciam — e Priscilla pede o divórcio não só pelos casos extraconjugais, mas também porque já não suportava o vício que sustentava o cantor nos palcos. Só restava a imagem — aquela, icônica, que vinha se transformando aos poucos em apenas uma caricatura de todo o talento e potência contidos no homem. E a voz. Ainda restava a voz de um deus, ainda com poderes sobrenaturais sobre a plateia.

Mais um dos acertos de Baz Luhrmann — que co-escreve o roteiro, além de dirigir o longa — é deixar evidente como a fragilidade do artista foi encontrada por alguém mal-intencionado e com todas as ferramentas para manipular o jovem e sua família para sugar dele dinheiro e potencial, mesmo que às custas da saúde emocional e física do Rei do Rock. Com apoio do pai, abusos de substâncias foram cada vez mais incentivadas para que os contratos se cumprissem, mesmo diante da exaustão física e mental que o levou a internações, e diante também do isolamento que a própria fama criava e ampliava. Todos os pontos agravavam as dificuldades de uma mente fragilizada por uma história trágica e pouco comum, até então.

Nasce uma constelação

É difícil definir precisamente quando as celebridades começaram a existir nos moldes atuais. Em todas as épocas a sociedade ocidental tem ídolos que, de uma forma ou outra, são amados e recebem muito poder em suas mãos. A fama já corroeu personagens muito mais antigos, mas talvez, o Rei do Rock tenha sido o primeiro a, em tal proporção, ser exposto a câmeras de TV e ter sua imagem exaustivamente exibida em fotos e notícias. O limite entre vida pessoal e pública do astro era tão tênue quanto sua capacidade emocional de lidar firmemente com as pessoas mal intencionadas ao seu redor. Mas podemos culpá-lo? Certamente não diretamente, afinal o filme e seus biógrafos nos expõem diversos fatores para sua abertura para golpes tão duros, que se aplicaram devido a sua fragilidade mental e emocional.

A vida do cantor parece ter sido um protótipo para as relações entre empresários e celebridades e também entre pessoas famosas e o público — entre eles, fãs, admiradores, detratores e perseguidores. Elvis se propõe a discutir os impactos da fama sobre um jovem rapaz despreparado para tanto poder. Anos mais tarde, a super estrela do rap Kanye West — que de certa forma, ainda vive uma trajetória de fama similar a de Elvis — declararia em sua canção “Power” “que ninguém deveria ter tanto poder” (“no one’s meant to have all this power”), embora a música atual não seja exatamente apenas sobre fama, o verso se aplicaria facilmente à vida retratada no cinema por Baz Luhrmann. O jovem rapaz recebeu poder e fama demais, dinheiro e atenção demais, o que acabou por agravar ainda mais todas as suas questões pessoais, além de ter criado tantas outras que vieram com o estrelato em proporções sobre-humanas. E mesmo sendo visto como herói, Elvis era apenas humano.

Tantos outros casos de abuso parecidos parecem ter surgido posteriormente à primeira estrela do rock. Assistindo ao filme, algumas passagens parecem semelhantes às vidas de Michael Jackson, Amy Winehouse e Beyoncé — que tiveram algumas questões com pessoas próximas ao longo de suas trajetórias pela fama, mais especificamente, seus pais. As várias crises e o abuso sofrido por Britney Spears também se assemelham muito àquilo que foi vivido por Elvis em vários aspectos, com algumas diferenças, claro, porque uma mulher tem algumas camadas a mais de cobranças para passar. A própria maneira como a cantora teve sua vida controlada durante grande parte da vida adulta parece ser uma repetição do que Elvis viveu. Para quem tem um conhecimento do funcionamento da indústria agora global do k-pop, não é difícil encontrar semelhanças entre a maneira como o Coronel gerenciou e explorou o talento de um jovem e a forma como jovens rapazes e moças acabam tendo seus talentos e imagens agenciados por empresas na Coreia do Sul, que nem sempre tomam as melhores decisões por eles e muitas vezes os afastam de uma verdadeira possibilidade de expressão artística.

Com seu roteiro, Baz ressalta que não só o abuso psicológico é um fator que deprime e retira os artistas de suas humanidades, mas também o afastamento da possibilidade de uma livre expressão de sua arte também tem impacto forte sobre eles. Ao mesmo tempo, a vontade de seguir cantando e receber o carinho do público os mantêm sobre o palco, mas também é justamente o fato de estar sob os olhares das pessoas para que sejam consumidos como um produto que os destrói um pouco mais. Desumanizados, e tendo encontrado alguém que os saiba manipular, os artistas podem ser vítimas fáceis. O sistema capitalista induz as pessoas a estarem não só prontas, mas também ávidas para consumir a arte, a imagem e até mesmo a vida de quem faz arte, simplesmente por entretenimento, sem muita consciência de que há uma pessoa por trás da fama.

Obviamente, o filme nos faz ver como Elvis também foi precursor de várias outras tendências relativamente menos danosas que se mantém até hoje, como a associação de uma imagem facilmente reconhecível e marcante à música, a proximidade entre artista e público, a ideia de performance como muito mais do que apenas cantar uma canção, entre tantas outras coisas — ou pelo menos, foi ele o primeiro a obter tanto sucesso com tais estratégias. Mas é bastante marcante como a tragédia da fama parece se manter até hoje.

Não sei se o longa-metragem teve o mesmo efeito sobre outros espectadores — provavelmente sim, pelo menos para algumas pessoas com quem conversei sobre o filme, que me deixou fascinada — mas refleti muito, durante o filme e quando os créditos subiram, sobre os pilares da fama. Primeiro, existe alguém talentoso, depois, alguém ambicioso e com a capacidade de convencer a pessoa com talento a deixar algumas — senão todas — as decisões sobre a carreira em suas mãos. Em terceiro lugar, existe o público, talvez o elo forte que una os dois destinos de forma que pode ser bem-sucedida ou trágica.

Não creio que Baz Lurhmann nos dê uma resposta, mas é de se pensar quais responsabilidades o público tem diante dessas tragédias e também qual é o papel do sistema capitalista como mediador dessa relação entre público, celebridade e empresários. Talvez o sistema seja aquilo que causa a luz, para seguir operando nas sombras.

O brilho eterno das estrelas

A imagem sedutora do artista, sob as luzes, ocultava uma sombra. A sombra também ofuscava a luz que o próprio Elvis poderia emanar. Mas é vendo sua totalidade que a genialidade do performer se torna evidente. Não é a toa que, até hoje, ele segue sendo referência. Baz Lurhmann, com um longa-metragem com todos os elementos para ser um filme perfeito — bom roteiro, boa direção e atuações, sem contar a parte técnica — mostra a luz e a sombra e a verdadeira essência do pai do rock, revivendo tanto o cantor quanto as origens do gênero, até sua morte precoce. A fama que ele teve o tornou imortal, e foi, também, como indica o filme, o que causou sua morte.

Se Elvis, de fato, morreu, não importa muito. O brilho das estrelas segue mesmo após o fim.


*Agradecimentos especiais à Priscilla Pinheiro pela leitura e opiniões anteriores à publicação deste post.
** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!


Elvis recebeu 8 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Ator (Austin Butler), Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino, Melhor Cabelo e Maquiagem, Melhor Montagem e Melhor Som.