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Framing Britney Spears: a rentabilidade do colapso alheio

Após o lançamento do documentário Framing Britney Spears, em fevereiro desse ano, o debate a respeito do que realmente aconteceu com a pop star se tornou, mais uma vez, um dos assuntos mais comentados nas redes sociais. Através de entrevistas com críticos midiáticos e personagens importantes na carreira da cantora, o longa-metragem tenta entender o que levou uma mulher de 27 anos a ser considerada incapaz de tomar suas próprias decisões e, por isso, ser interditada juridicamente. O que faz uma pessoa, com uma carreira tão promissora e adorada por tantos, se perder completamente? O documentário, disponível no Globoplay, traz uma retrospectiva que é tão nostálgica quanto triste.

Britney Spears foi criada em Kentwood, interior de Louisiana e, com cinco anos de idade, debutou na TV local. Aos 11, fez parte do The All New Mickey Mouse Club, programa que foi responsável por popularizar talentos infantis como Christina Aguilera, Justin Timberlake e Ryan Gosling. Spears cresceu frente às câmeras, mas foi apenas em 1998 com o primeiro single…Baby One More Time” que a carreira da cantora despontou. O sucesso da princesa do pop, que na época tinha apenas 17 anos, foi tão grande quanto problemático e, rapidamente, ela foi inserida em um ciclo de exploração e capitalização da própria imagem.

O documentário evidencia, sem amenizar, como a mídia errou constantemente com a cantora. Spears nunca coube nas “caixinhas” redutoras que lhe foram imposta: “boa moça puritana” ou “promíscua erotizada”. As músicas, com diversas conotações sexuais, contrastavam com a voz infantil e o rosto angelical, e borravam essa linha fictícia da dualidade feminina. Por isso, quando Britney, o terceiro álbum de estúdio da artista, foi lançado, ficou evidente que aquele era um período de transição para uma imagem mais madura e divergente do ícone jovial adolescente. A “nova Britney”, agora provocativa e sensual, foi refletida através dos clipes de “I’m a Slave 4 U” e “Overprotected” que, embora hoje sejam um marco, renderam inúmeras críticas à cantora na época.

“Diga olá para a garota que eu sou!
Você precisa entender isso pela minha perspectiva
Eu preciso cometer erros para aprender quem eu sou
E eu não quero ser tão protegida”
“Overprotected”, 2001.

Além da mudança de tom na carreira, os relacionamentos conturbados foram um prato cheio para os julgamentos da opinião pública. Spears se tornou um alvo fácil após o término com Justin Timberlake, que usou o videoclipe “Cry Me a River” como uma arma incriminadora e expôs a vida íntima do casal em entrevistas ao vivo. O casamento com o dançarino Kevin Federline também foi motivo de especulações e, após o nascimento dos filhos, ficou claro que a mídia queria apenas consumir tudo que envolvia a cantora, ignorando qualquer parâmetro ético.

Os tabloides não perdoaram nem mesmo a experiência da artista como mãe. Ao tentar fugir dos flashes dos paparazzis, a cantora dirigiu com o filho no colo. Ativistas defensores da infância ficaram horrorizados com as fotos do incidente e a maternidade se tornou tópico de debate na TV aberta, além dos constantes questionamentos se Spears era uma boa mãe. Em 2002, três anos antes de Britney dar à luz o primogênito, Michael Jackson dependurou seu filho pela janela — o cantor foi rechaçado, mas os termos “tutela” ou “perda da guarda” nunca foram debatidos em âmbito nacional. Parecia existir ali dois pesos e duas medidas que tendiam a sobrecarregar as mulheres.

Em entrevista exclusiva à NBC, em 2006, a cantora chorou implorando que os paparazzis deixassem os filhos e ela em paz — mas isso apenas os incentivou mais. Na época, cada foto de Spears valia cerca de um milhão de dólares, podendo valorizar ainda mais após publicação nas revistas. Havia simplesmente muito dinheiro em jogo. Tanta pressão e a incapacidade de atingir uma expectativa que foi criada em cima de seu nome, fez com que Britney entrasse em colapso. A cantora foi hospitalizada diversas vezes e, após se divorciar de Federline, perdeu a  guarda dos filhos. É nesse contexto que, em 2007, Britney entra em uma barbearia e raspa seu cabelo dizendo “eu não quero que ninguém encoste no meu cabelo. Estou cansada das pessoas encostando em mim”. O colapso foi um grito de socorro tão óbvio e, mesmo assim, se tornou mais um motivo para que a mídia a ridicularizasse novamente. A ideia era realmente enquadrar Britney Spears como se nenhum fator externo tivesse influenciado todas essas situações. Essa era uma época em que raramente se debatia saúde mental e havia uma concepção de que a superexposição era uma decisão consciente e intrínseca à escolha de ser uma celebridade.

Um ano após o incidente, Jamie Spears, pai da cantora, pediu a curatela temporária de Britney. A curatela é um dispositivo legal, geralmente aplicado a idosos, que não conseguem cuidar de si e do próprio dinheiro e, por isso, o tribunal permite que alguém decida por eles. O pedido foi extremamente divergente do que é esperado judicialmente porque Britney era muito jovem e produtiva, mas especulações de transtornos mentais e uso de drogas fortaleceram o desejo do pai que, até esse momento, não era uma presença constante na vida da filha.

Ainda hoje, 13 anos depois, Britney continua sob controle de Jamie Spears e é impedida de atuar diretamente sobre sua carreira e finanças, mas uma campanha recente reacendeu o debate se essa decisão judicial foi prudente. Após receberem uma denúncia anônima, o podcast Britney’s Gram, conhecido por analisar as redes sociais da cantora, divulgou que Britney estava sendo internada em uma clínica de reabilitação mental contra sua vontade. O episódio, intitulado #FreeBritney, impulsionou o movimento de mesmo nome que tem recebido apoio de celebridades e grande repercussão na mídia. Sabe-se muito pouco acerca do que realmente acontece nos bastidores da briga judicial e, por isso, o documentário se aprofunda dentro das suas limitações. Entretanto, ainda que não exista a pretensão de trazer um furo de reportagem, Framing Britney Spears funciona como um exercício catártico e reflexivo de um período que foi acompanhado por muitos.

É realmente chocante relembrar através do documentário como Britney e outras artistas foram tratadas no início dos anos 2000 e como isso era consumido. As piadas incisivas feitas por pessoas públicas, o assédio e perseguição dos paparazzis, e a necessidade compulsória da equipe da cantora de tornar a “virgindade” o centro da sua narrativa, ao mesmo tempo que sexualizava uma jovem de 20 anos ao extremo. Ainda que os ataques fossem direcionados à Britney, não era exatamente apenas sobre ela. Em um mundo “pré-redes sociais”, a única forma de acesso à vida das celebridades era através dos tabloides e uma geração inteira cresceu vendo uma jovem ser analisada minuciosamente e julgada superficialmente por sua sexualidade e corpo, que não foi perdoado nem mesmo após a gravidez, como denunciado na música “Piece of Me”.

“Eu sou a Srta. ‘Estilo de Vida dos Ricos e Famosos’
Eu sou a Srta. ‘Oh meu Deus, Aquela Britney é Sem Vergonha’
Sou a Srta. ‘Extra! Extra! Últimas Notícias’
Eu sou a Srta. ‘Ela Está Muito Gorda, Agora Ela Está Muito Magra’
(Você quer um pedaço de mim?)”
“Piece of Me”, 2007

Parece absurdo, quase fantasioso, na verdade, imaginar uma indústria que lucrou bilhões através de uma cultura que impedia que Britney tivesse liberdade ou privacidade. Nunca existiu espaço para que ela pudesse simplesmente existir sem ser observada e examinada por todo o mundo e, para uma menina que cresceu na frente dos holofotes, isso significou ter todos seus erros e acertos publicizados. Para além do movimento #FreeBritney, a maior reflexão que o documentário traz é a autocrítica de perceber que nós consumimos e rentabilizamos o colapso alheio por anos como algo completamente normal.

Talvez seja um afastamento clínico, anos depois do incidente em 2007, mas é difícil imaginar que garotas, que nem eram adultas ainda, foram tratadas de maneira tão invasiva e como esse comportamento era incentivado, quase um esporte em que a plateia clamava: “gimme, gimme more!”. Entretanto, o que deveria ser utilizado como exemplo do que não se fazer, é recorrente até hoje, especialmente com artistas mulheres. Jesy Nelson, ex-integrante da girlband Little Mix, por exemplo, teve que se afastar do grupo para cuidar da saúde mental após estar na mira de comentários ardilosos sobre seu corpo por anos, especialmente por parte do jornalista britânico Piers Morgan.

É importante ressaltar que, após o lançamento do documentário, várias celebridades e organizações de mídia assumiram responsabilidade por perseguir a cantora e vieram a público se desculpar pelo comportamento na época. Framing Britney Spears é o que a indústria precisava no momento — uma obra midiática que critica abertamente o comportamento da mídia e não se isenta. A metalinguagem perfeita e necessária.

1 comentário

  1. É exatamente isso, esse doc é uma mistura de nostalgia e tristeza. Logo quando o “Framing Britney” estreou tenho sentimentos conflituosos (e complementares) sobre ele, já que apesar de ser uma “carta de desculpa” da mídia para a artista, a produção também está “pegando mais um pedaço” de Britney – lembrando que, se não me engano, outros docs sobre a cantora estão sendo feitos. Mas como prefiro ser uma otimista, espero que os tabloides “se redimam” com ela, pressionando e expondo as decisões legais sobre o caso.

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