Categorias: LITERATURA

Muitas Roupas Aqui, de Salma Soria

O livro Muitas Roupas Aqui, de Salma Soria, reúne 51 contos que exploram assuntos como política, luta de classes, violência policial na periferia, a invisibilidade do trabalho doméstico, as emoções e os conflitos internos do ser humano. Tudo isso por meio de algo tão trivial e, ao mesmo tempo, recheado de significados e representações sociais: as roupas. 

A autora destrincha o tema em textos curtos, mas complexos em sua estrutura, pois cada conto se inicia de forma corriqueira e no transcorrer da escrita, ao desenvolver as ideias e pensamentos, frases e parágrafos, é que Salma Soria avança para além do que seria sua principal proposta: escrever sobra roupas a partir de todas as suas representações, entre o social, político e econômico.

muitas roupas aqui

Ao iniciar a leitura e atravessar cada conto e, em alguns momentos, retroceder em busca de uma percepção que possa encontrar significados implícitos de cada conto, nos deparamos com uma escrita envolvente. Cada enredo de Muitas Roupas Aqui apresenta-se como um universo de percepções e vivências do que nos rodeiam e que, por vezes, passam despercebidas ou trazem à tona momentos reflexivos, que podem acontecer nas ações mais triviais do cotidiano como, por exemplo, ao se deparar com determinada peça nunca usada, que ainda possui etiqueta — uma peça que invariavelmente te faz refletir sobre as escolhas do seu “eu” do passado, sobre um possível excesso consumista ou a possibilidade em atribuir um novo destino à tal peça — como acontece no conto “Veste Desconhecida”.

No conto é Verena quem organiza suas roupas, enquanto exprime a estranheza sobre algo que já fora seu e assiste pela janela a um protesto contra o desgoverno atual, vê a si mesma amortecida sobre truculência policial contra os manifestantes. Também reflete, ao encontrar uma camiseta da Seleção Brasileira, sobre como um símbolo nacional torna-se estranho e até repulsivo diante do contexto social e político brasileiro atual.

Já no conto “Bainha Americana”, Salma Soria explora um assunto necessário, porém negligenciado socialmente: a desqualificação do trabalho doméstico, em geral exercido por mulheres. A personagem do conto, Dália, apresenta todas as nuances da mulher que trabalha em casa, mas se percebe em um lugar menos favorecido socialmente, por ter passado 20 anos ou mais cuidando e mantendo o marido que trabalha no espaço público e os filhos que estudam, e, de forma súbita, decide “trabalhar fora” mais uma vez.

“Numa dessas tardes pós-almoço, em que tratou de toda a louça e lavou toda a roupa, decidiu outra vez aventurar-se em um emprego qualquer apenas para ser vista pelos vizinhos como alguém útil e dizer à família que, finalmente, estava a se ocupar.” (p. 22)

De forma muito precisa, “Bainha Americana” coloca em evidência questões sociais a partir do que seria uma situação comum a muitas mulheres: a vivência de uma dona de casa que anseia por mais, mas que, inserida em uma sociedade machista e patriarcal, se vê em um lugar de menos importância. Exprime-se a divisão sexual do trabalho e os significados para além do salário e em uma perspectiva de representação social em que o trabalho externo é valorizado, enquanto o doméstico (mais duro em muitos dos casos) não é — a consequência de uma sociedade atravessada pela misoginia e pelo patriarcado.

“Estrela” mantém o local de trabalho como cenário, mas trabalha com questões diferentes de “Bainha Americana”. O conto tem início com a descrição das etapas do trabalho de uma funcionária em uma lavanderia que, ao realizá-las, imagina uma série de acontecimentos com quem irá vestir aquelas peças. Todas as situações são envolvidas pela idealização do amor romântico, desde as atividades feitas à dois aos percalços de um relacionamento, sempre imaginadas pela funcionária, que ainda não experienciou tal acontecimento, exceto a cada gola, entretela, costura, botões e camisas sociais masculinas.

“Ambiciona um amor ou pedaço  de afeto entre os nós que estão dentro de outros nós. Quer muito esse par. (…) olha para esse amor desesperadamente apaixonada, e o silêncio entre os nós testemunha o quanto ama. Só não sabe o quanto ela ama. Porque essa companhia não está nem aqui. Ainda vai chegar.” (p. 33) 

Muitas Roupas Aqui é extremamente envolvente, e é possível sentir a atmosfera que Salma Soria descreve em cada um dos contos. Com “Biquínis” sentimos a sensação de liberdade que a praia possui, em contraste com os julgamentos que fazemos sobre corpos perfeitos para poder ir à praia. No conto somos direcionadas a um lugar livre, sem julgamentos, aonde Felipa sente-se no controle de si, sem se preocupar com a marca ou tamanho do biquíni ideal para seu biótipo de acordo com alguma blogueira ou revista.

Gosta de caminhar pelo farfalhar dos grãos de areias, afundando os tornozelos em diversas espumas do mar, solas capturando a textura das conchas que mudam de acordo com as direções das ondas, enquanto espera o almoço, peixe frito, chegar.” (p. 54) 

Salma Soria transita por muitas roupas e evidencia diferentes formas e significados envolvidos no ato de vestir. Muitas Roupas Aqui é um universo de representatividade do estar e agir no mundo social.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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