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For All Mankind: as mulheres na frente da corrida espacial

Para quem não leu muito sobre a série antes de começá-la, os primeiros minutos de For All Mankind são surpreendentes: vários estadunidenses, de todos os cantos do país, se reúnem para presenciar o homem pisar na Lua pela primeira vez. Na TV, os repórteres dizem que esse é um fato histórico, que ficará para sempre guardado na memória de cada um, e que suas consequências seriam massivas para o país. Mas quem aparece na Lua para fincar a bandeira na sua superfície, no entanto, não é Neil Armstrong, mas sim cosmonautas da União Soviética que, na realidade alternativa do seriado, chegaram lá primeiro. Ao invés do famoso “nós viemos em paz, por toda a humanidade”, proclamado por Armstrong, os comunistas clamam “pelo estilo de vida Marxista-Leninista”.

Criada e desenvolvida por Ronald D. Moore, também responsável pelo maravilhoso reboot de Battlestar Galactica (2006-2010) e pela excelente adaptação de Outlander, os dois primeiros episódios da produção se desenrolam sem grandes choques além do inicial, explorando as consequências da perda crucial dos Estados Unidos na corrida espacial e nas figuras que foram responsáveis por fazer isso acontecer (ou, nesse caso, não acontecer). Com dois episódios sólidos, mas nada originais tanto em estrutura quanto em arco de personagens, a grande mudança vem quando a União Soviética fica, mais uma vez, na frente dos EUA e anuncia que vai mandar sua primeira cosmonauta mulher para o espaço. Com a necessidade de alcançá-los, a NASA coloca seus melhores astronautas para treinar mulheres engenheiras e pilotas. Mas o que é apenas uma conveniência para a NASA (outro obstáculo a ser ultrapassado para ganhar a corrida espacial) se torna um verdadeiro trunfo para a série que, por meio do arco dessas personagens, desenvolve algo espetacular, profundo e muito melhor do que era antes.

O foco dessas narrativas ficam por conta de Molly Cobb (Sonya Walger), Dani Poole (Krys Marshall), Tracy Stevens (Sarah Jones) e Ellen Waverly (Jodi Balfour). Ao lado de Karen (Shantel VanSanten) e Margo (Wrenn Schmidt) — que não são astronautas, mas tem um papel tão fundamental quanto as outras na história —, cada uma delas leva um novo e refrescante dilema para a narrativa, elevando uma trama que era potencialmente interessante para algo realmente e primoroso. A trama em si sempre chamou a atenção, mas a forma como For All Mankind trata seus personagens é tão meticulosamente cuidadosa e bem feita que, por causa disso, a dramatização dos eventos retratados são absorvidos de forma intensa pelo público e suas consequências são reais e palpáveis.

Tocar um seriado como For All Mankind e fazer todas as narrativas funcionarem em harmonia não é um trabalho fácil. Milhares de obras na cultura pop já tentaram recriar o que ficou conhecido como “histórias de realidades alternativas”, umas com efeito positivo e outras com o efeito completamente contrário. A mais recente, por exemplo, é O Homem do Castelo Alto: com quatro temporadas disponíveis na Amazon, e baseada livremente no livro homônimo de Philip K. Dick, a produção aborda uma realidade em que o Japão imperial e a Alemanha nazista venceram a Segunda Guerra Mundial, e o mundo se divide entre eles. Com uma mistura de figuras reais e fictícias, o desenrolar da trama é lento, mas a mudança é grande e monstruosa, até mesmo cruel. Com For All Mankind, as coisas são um pouco diferentes. O efeito borboleta gerado pela mudança pela chegada dos soviéticos na Lua antes do que na “nossa” realidade, pode ser visto em pequenos detalhes, que vão sendo expostos aos poucos pela história. Em algumas montagens, por exemplo, é possível ver que John Lennon não foi morto por um tiro em 1980. Em outras, a política dos Estados Unidos parece ter tomado rumos semelhantes, mas não completamente iguais (as mesmas famílias continuam no poder, mas com membros diferentes, por exemplo).

A maior mudança é aquela vem de dentro da própria NASA, onde mulheres e outras minorias são colocadas na frente de projetos espaciais. Apesar de existir uma mudança estrutural na forma com que elas são tratadas dentro e fora do próprio escopo da NASA, os empecilhos na maneira como elas têm que lidar com as missões ainda são imensos, provando o ponto de que as coisas podem parecer diferentes e progressistas por fora, mas ainda existem muitos fatores para serem modificados.

Se no final da primeira temporada de For All Mankind o ser humano consegue estabelecer uma base na Lua e começar seu trabalho de reconhecimento de território, Ellen, por exemplo, não consegue assumir sua sexualidade para os colegas pois ser homossexual nunca foi considerado algo “aceitável” pela NASA. Uma coisa parecida acontece com Dani, que não recebe missões pois foi contratada para ser a mulher negra “simbólica”, uma contratação apenas de aparências. A questão que permanece durante os 20 episódios da série até agora é: até que ponto o avanço tecnológico é realmente bom se não conseguimos seguir com questões humanas básicas? O avanço é realmente um avanço se a maioria ainda está fazendo com que pessoas como Ellen e Dani ainda se sintam excluídas e marginalizadas?

No segundo episódio de Lovecraft Country, a música “Whitey on the Moon” toca enquanto o protagonista Tic (Jonathan Majors) sofre para livrar ele e seus amigos das mãos de um homem branco que tenta usá-los para um ritual que, supostamente, iria avançar anos no estudo sobre magia que o mesmo realizava. O sentimento expresso por Gil Scott-Heron é que, enquanto os brancos estão na Lua, ele passa fome e tem que lutar por direitos básicos na Terra. De certa forma, o contraponto também é mostrado por For All Mankind: enquanto a humanidade dá passos fundamentais para o desenvolvimento espacial, aqui embaixo, na vida “real”, as coisas ainda andam a passos de formiga. Um passo para frente, dois para trás.

Atenção: a partir deste ponto o texto contém spoilers!

A história realmente começa quando as mulheres são contratadas para se tornarem astronautas, sendo que os seus dilemas pessoais movem não apenas seus arcos individuais, como também a história em si. Cada uma delas tem um papel intrínseco dentro da narrativa e cada pequeno avanço que a NASA faz em questões tecnológicas são colocados lado a lado com as motivações e tramas das protagonistas.

Isso não quer dizer que os personagens masculinos não tenham nada para acrescentar na narrativa. As duas figuras masculinas centrais são Ed Baldwin (Joel Kinnaman) e Gordo Stevens (Michael Dorman): ambos são astronautas e levantam questões pertinentes sobre masculinidade e a pressão de se ter um emprego com um nível de responsabilidade muito alto. Para Ed, esse custo vem na forma como lida com a família e com a morte de seu filho (que acontece quando ele está na Lua pela primeira vez). Já com Gordo, é sobre a forma como, no geral, homens são ensinados a acumular seus sentimentos sem nunca realmente falar sobre eles. Sua jornada culmina em um episódio chamado “Hi, Bob”, onde ele tem um surto psicótico.

De muitas formas, a trajetória de Dani e Gordo estão bem interligadas. Como ela estava com eles na primeira viagem onde estabeleceram uma base na Lua, os três acabaram ficando bem amigos, algo também refletido na vida que levam na Terra. Quando Gordo começa a perder o controle da sua situação mental, Dani se sacrifica e quebra o próprio braço, fazendo com que Gordo não precisasse enfrentar os psicólogos da NASA e, consequentemente, ser proibido de utilizar sua licença para voar. A questão é que o sacrifício que ela faz tem repercussões diferentes para ela do que teria para ele. Enquanto ele, com o braço quebrado, talvez fosse levado como um herói, Dani, uma mulher negra, vira motivo de piada entre alguns colegas, um exemplo do que “não fazer”.

Enquanto Gordo tem toda uma jornada para se descobrir dentro da sua profissão outra vez, Dani é empurrada cada vez mais para escanteio. Com um marido que foi para a Guerra do Vietnã, a narrativa faz um paralelo entre o trabalho de Dani e as dificuldades que um ex-militar enfrenta para se “reintegrar” à sociedade. Até mesmo sua cunhada aponta que o marido estava aqui, sofrendo, enquanto ela ia para Lua. Ao que ela pergunta: “e o que os seus colegas astronautas já fizeram por você?” Esse é um questionamento que ecoa na cabeça de Dani que, após quebrar o braço, nunca mais teve uma missão. A resposta é relativamente simples: nada. É isso que impulsiona a personagem a pressionar seus superiores para finalmente comandar uma missão — o que ela consegue, ironicamente, apenas para reforçar seu papel como um “símbolo” da NASA.

Essa narrativa também está interligada com a de Margo. Uma mulher ambiciosa e uma das primeiras a ser realmente reconhecida na NASA, ela sempre foi retratada como alguém fiel ao seu país e ao propósito dos astronautas. Eu diria até que Margo é, e sempre foi, a mais dedicada de todos eles (e com certeza a mais talentosa). Uma engenheira de primeira, e mais uma líder, a segunda temporada a coloca como uma das responsáveis por fazer acontecer a conexão entre os EUA e a URSS — eventos que se interligam no final da segunda temporada e influenciam até mesmo a trajetória de Tracy, que se torna uma das personagens mais interessantes e complexas do seriado.

A grande falha da série se encontra, com certeza, no arco de Karen. Apesar de ser uma personagem interessante, que vive à margem dos astronautas, ela constrói sua independência de forma gradual ao longo da primeira e começo da segunda temporada. Isso tudo é jogado no lixo por várias escolhas narrativas que fazem pouco sentido dentro do escopo da segunda temporada em si — mas que talvez venham a fechar o ciclo da personagem de alguma forma nos anos seguintes.

Com uma segunda temporada espetacular, que não deixa a desejar em (quase) nenhum aspecto, For All Mankind continua evoluindo de todas as formas: a trama continua escalando (agora a humanidade está em Marte!), os personagens continuam crescendo em questão de profundidade e complexidade e a série em si continua a misturar perfeitamente ação e introspecção, com total consciência de que são os arcos narrativos dos personagens centrais que importam. Com a terceira temporada marcada para chegar em 10 de junho na plataforma de streaming da Apple, o futuro promete que as mulheres continuem à frente da corrida espacial.


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