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As esposas de Stepford, o filme que inspirou Corra!

O filme Corra! (Get Out!, 2017) capturou o “espírito da época” e trouxe importantes reflexões sobre o racismo moderno. A obra do diretor e roteirista Jordan Peele contém diversas referências a clássicos, entre eles um filme de 46 anos, As Esposas de Stepford (The Stepford Wives, 1975), pouco conhecido no Brasil. Saber mais sobre ele pode tornar a experiência de assistir Corra! mais proveitosa.

Atenção: este texto contém spoilers!

Jordan Peele, diretor e roteirista, já declarou que utilizou As Esposas de Stepford como uma de suas referências para Corra!, especialmente o tom cômico e satírico. Peele, que começou em produções de comédia, acredita que esse gênero e o terror estão intimamente ligados. É possível que uma cena realmente assustadora faça todos rirem.” As Esposas de Stepford (ou Esposas em Conflito, como também é conhecido no Brasil) é um filme de ficção científica, terror e suspense, dirigido por Bryan Forbes. O filme foi baseado no romance The Stepford Wives (Mulheres Perfeitas ou As Possuídas, em português) de Ira Levin, o mesmo autor de O Bebê de Rosemary.

É possível traçar um paralelo entre As Esposas de Stepford e Corra!, cujos protagonistas, Joanna Eberhart (Katharine Ross) e Chris Washington (Daniel Kaluuya), respectivamente, partem da cidade em direção ao campo, são fotógrafos e sentem-se desconectados da realidade que os cerca. Esse detalhe é particularmente importante em ambas as narrativas, porque demonstra a sensibilidade aguçada desses protagonistas. Os dois personagens veem tudo em sua essência, por isso são tão lúcidos. Já em uma das primeiras cenas do filme, vemos Joanna sair do carro para fotografar um homem atravessando a rua, carregando um manequim. Seu filho pequeno confunde a boneca com uma mulher real. Um prenúncio do que a espera.

Joanna ambiciona ser fotógrafa profissional, mas tem seus planos frustrados quando o marido, Walter Eberhart (Peter Masterson), decide se mudar com a família de Nova York para uma cidade do interior chamada Stepford, em Connecticut, sem levar em consideração os seus interesses. Apesar da atmosfera agradável, a paz de Stepford parece artificial. Um olhar mais sensível seria capaz de constatar que na expressão das mulheres de Stepford falta algo, o que desperta uma sensação desagradável. As esposas de Stepford são troféus, bonitas e bem-educadas, convenientes a homens de posição elevada, e procuram ser agradáveis sempre, com um sorriso que parece ter sido talhado em seus rostos. Apenas as forasteiras, Bobbie (Paula Prentiss) e Charmaine (Tina Louise), não se encaixam nesse padrão.

Já os maridos de Stepford temem a mudança, porque são beneficiados pela estagnação. Eles são instigados pelo desejo de terem uma mulher inteiramente modelada para si, e participam de uma associação com interesses ocultos, cujo ingresso de mulheres é proibido. Nesse mesmo sentido, Walter também se incomoda com o fato de Joanna buscar a realização pessoal para além do relacionamento. Para ele, o bem-estar do casamento e da família depende de ela abrir mão da sua carreira, sonhos e personalidade.

A certa altura, de um dia para o outro, Bobbie e Charmaine transformam-se em donas de casa exemplares. Joanna sente que algo ameaçador a ronda e ela é a próxima. Em uma consulta à psiquiatra, ela afirma: “Haverá alguém com meu nome, ela cozinhará e limpará como uma louca, mas ela não tirará fotos e ela não será eu!” Joanna descobre então que as esposas de Stepford são substituídas por réplicas, mas não fica claro de que forma e se as verdadeiras são mortas. A cena mais marcante do filme é aquela na qual Joanna se depara com seu duplo, cujos olhos são duas esferas escuras. Fica subentendido que o que falta para que o experimento seja concluído são as suas retinas. Restou um recipiente vazio, no qual os outros depositam suas expectativas.

Joanna Eberhart, protagonista de As esposas de Stepford

As Esposas de Stepford foi concebido durante a segunda onda do feminismo, que trouxe à baila o debate sobre família, mercado de trabalho, direitos reprodutivos e outros. As mulheres, que durante a Segunda Guerra tinham assumido empregos e responsabilidades antes atribuídas aos homens, foram convocadas ao retorno à domesticidade. O filme retrata mulheres brancas de classe média-alta relegadas ao ambiente doméstico, não por escolha, mas à força.

Deve-se levar em consideração que há mulheres que optam por ser donas de casa, outras não, e outras ainda que não podem fazer essa escolha — por razões de raça e classe, sua força de trabalho é necessária para compor a renda familiar. Elas são sobrecarregadas com a dupla jornada. Além disso, os ideais de feminilidade atrelados à pureza, domesticidade, fragilidade e submissão não são direcionados a todas. Mulheres racializadas, imigrantes e da classe trabalhadora, por exemplo, podem ser estigmatizadas como fortes, resistentes a tudo, e receber menos cuidado (recomendo o discurso de Sojourner Truth na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, 1851). Desse modo, as mulheres não são uma categoria homogênea, que compartilha integralmente as mesmas experiências de vida.

No filme de 1975, há uma família negra que se muda para Stepford, e que aparece no final, fazendo compras no supermercado. São os únicos a aparentarem naturalidade enquanto as esposas de Stepford deslizam com seus carrinhos e diálogos vazios: “Eu vou bem, e você?”, “As crianças vão bem, e as suas?” No remake de 2004, Mulheres Perfeitas, com direção de Frank Oz, eles não aparecem. Apesar de contar com atores de peso, o remake esvaziou a crítica social, errou o tom terror/comédia, e caiu no pastelão. No livro As Possuídas, o casal existe e é composto por Royal e Ruthanne. Ruthanne é uma bem-sucedida escritora infantil, que acredita que o comportamento frio e distante das mulheres de Stepford se deve ao fato de eles serem negros. É do ponto de vista de Ruthanne que sabemos o final de Joanna. Por que essa interação foi suprimida em ambos os filmes?

Por outro lado, Corra! é preciso ao mostrar a negação do racismo entre pessoas que se intitulam progressistas, inclusive mulheres brancas. No filme, o protagonista Chris Washington parte com sua namorada, Rose Armitage (Allison Williams), rumo a um bairro de classe alta no interior. Ele está apreensivo, pois ela não contou aos pais que ele era negro. Diferentemente de Joanna, Chris já é um fotógrafo profissional reconhecido. No entanto, o único que menciona esse fato é Jim Hudson (Stephen Root), um negociante de arte cego. O pai de Rose até mesmo questiona qual seria o seu propósito na vida.

Os Armitages e seus convidados parecem ser amistosos, com seus sorrisos educados. Porém, logo eles mostram sua verdadeira natureza, com a negação do racismo atrelada à tentativa de “elogios” com estereótipos raciais. Jordan Peele joga com o ver (acompanhamos os olhos de Chris procurarem por seus semelhantes e escapes), olhar para dentro de si, ser visto (com olhares avaliadores, vigilantes) e não ser enxergado em uma experiência racializada. É possível sentir que algo espreita Chris, mas não se sabe ao certo o que é ou de onde vem.

“[Repórter] Ira Levin, que escreveu os livros dos quais esses dois filmes foram adaptados, fez o público questionar se o protagonista era paranoico.

[Jordan Peele] Eu uso exatamente o mesmo dispositivo. Este filme também é sobre como lidamos com a raça. Como um homem negro, às vezes, você não consegue dizer se o que está vendo tem intolerância subjacente ou se é uma conversa normal e você está sendo paranoico. Essa dinâmica em si é perturbadora. Admito que em certas ocasiões vejo raça e racismo quando não existe. É muito desorientador estar ciente de certas dinâmicas.” (em entrevista ao New York Times)

Primeiramente, Missy (Catherine Keener), mãe de Rose, hipnotiza Chris sem que ele perceba, ao rodopiar uma colher em uma xícara de chá e batê-la em sua borda, de modo a provocar um som intermitente. Missy faz com que ele sinta que está afundando, despencando na escuridão. Lá, ele apenas vê o mundo exterior através de uma pequena janela — como se estivesse em uma câmara escura. Segundo Peele, o Lugar Afundado (Sunken Place) é uma metáfora para o silenciamento experimentado por qualquer grupo marginalizado.

As microagressões crescem para atos de violência e de privação de direitos. Descobrimos o Procedimento Coagula, no qual os cérebros de pessoas brancas são transplantados para o corpo de pessoas negras, que passam a habitar permanentemente no Lugar Afundado. Eles querem apagar a identidade de pessoas negras e refazê-la segundo seus critérios, apenas para agradar a sua própria vaidade. Rose, que evoca o ideal de feminilidade construído, é a catalisadora, ela interpreta o papel da jovem liberal progressista para capturar as vítimas do Projeto Coagula.

Embora Jim Hudson, à primeira vista, pareça inofensivo, ele participa do Projeto Coagula e compra o corpo de Chris, mais especificamente, o “olho” que ele tem para a fotografia. No entanto, a maneira particular como Chris vê o mundo não está apenas ligada ao olho em si, mas à sua sensibilidade artística. O olhar de Daniel Kaluuya é especialmente expressivo. A cena mais marcante do filme é quando Chris, amarrado a uma poltrona, em frente a um televisor, é mais uma vez hipnotizado à força. Somos inundados pela sensação de impotência e despersonalização. Segundo Peele: “Esse é o poder da história e do gênero. Você pode pedir a uma pessoa branca para ver o mundo pelos olhos de uma pessoa negra por uma hora e meia.”

Chris Washington, protagonista de corra

É através de sua autoconsciência, especialmente a consciência histórica, que Chris consegue encontrar uma saída: ao arranhar a cadeira, ele vê o algodão (associado ao trabalho escravo no Sul dos EUA) saindo do estofado e utiliza-o para tapar seus ouvidos, como forma de resistir à hipnose, ou seja, subverte o símbolo. Depois de enfrentar os vilões do filme, um a um, Chris está sobre o corpo ensanguentado de Rose. Ela sorri ao avistar a viatura policial, antevendo que será tomada por vítima, e grita por socorro. Há então dois finais: no original, o amigo de Chris, Rod (Lil Rel Howery), é o policial que o encontra. No alternativo, é um policial branco que desce do carro e Chris é preso pelo assassinato dos Armitages.

Em As Esposas de Stepford e Corra!, a visão é utilizada como uma metáfora para a experiência subjetiva, a maneira como uma pessoa conhece o mundo que a cerca. Encontramos ecos tristes com a realidade, na qual corpos são alvo de invasão e controle. Isso mostra como a dominação objetifica os oprimidos e desvaloriza a sua subjetividade. Há ainda muitas relações que podem ser feitas, no entanto, Jordan Peele apresentou sua própria versão do filme de 1975. Se em As Esposas de Stepford temos donas de casa robóticas, Peele nos traz pessoas negras submetidas a uma espécie de lobotomia. Se as esposas de Stepford são oprimidas, Corra! mostra que elas também podem oprimir. Finalmente, ele apresenta a autoconsciência como forma de resistir ao processo de desumanização.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.