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Nós e Jordan Peele: isso é a América, essa é a nossa história

“Underground Railroad” foi o nome dado a um conjunto de rotas secretas e pontos de parada clandestinos usados por escravas e escravos dos Estados Unidos para escapar rumo ao Canadá ou ao México. Ao contrário do que o nome sugere (“ferrovia subterrânea”, em tradução livre), essas rotas não eram nem subterrâneas nem férreas, mas o termo foi adotado para designar algo secreto e também servir como código de fuga. Em 2017, o americano Colson Whitehead venceu o prêmio Pulitzer de ficção por The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade, que conta a história de uma escrava fugitiva que se aventura por esse caminho — que no livro toma a forma de uma via férrea subterrânea e mágica — numa jornada que mistura surrealismo com a realidade brutal da escravidão. “Underground Railroad!” foi a primeira coisa que pensei assim que Nós, novo filme de Jordan Peele, começou.

O diretor norte-americano se tornou um fenômeno em Hollywood após o sucesso de seu primeiro longa-metragem, Corra!, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Roteiro Original e um lugar cativo no coração de todo fã de filmes de terror. Além de trazer um olhar ao mesmo tempo fresco, original e rico em referências para o gênero, Peele também se destacou pelo forte discurso racial de Corra!, que transforma o racismo no grande monstro da vez e provoca um necessário desconforto até na parcela branca e bem-intencionada de sua audiência ao chamar atenção para questões de apropriação cultural e exploração de mentes, corpos e olhares negros. Em um tweet que já nasceu clássico, em 2017 ele anunciou: “Corra! É um documentário”, chamando a atenção para a aproximação entre o que acontece no filme com a nossa realidade.

Essa bagagem faz com que seja inevitável a associação entre a Underground Railroad e o conjunto de túneis subterrâneos de função misteriosa que Nós apresenta em sua introdução. Essa aproximação é, ao mesmo tempo, certa e errada. Certa porque um cineasta que constrói suas obras com a riqueza de detalhes e referências de Jordan Peele não deixaria um paralelo como esse passar despercebido; errado porque reduzir o potencial de sua obra a uma única perspectiva é aprisioná-lo nesse lugar de Outro, como se seu trabalho devesse ficar restrito a uma única temática e não pudesse explorar outros temas e ideias consideradas universais. O que ele mostra, no entanto, é que essas perspectivas estão sempre interligadas, pois fazem parte da construção da nossa sociedade. A universalidade não existe — ou melhor, é apenas um dos lados da história.

“Nós é um filme de terror”, Jordan Peele disse poucos dias antes da estreia, e o filme oferece sustos, suspense e imagens perturbadoras que vão ficar com o espectador por semanas, meses até, ao mesmo tempo que explora excelentes e bem encaixados alívios cômicos já tradicionais nos trabalhos do cineasta. Mas não são só as cenas de impacto que permanecem. Nas entrevistas que tem dado sobre o filme, o diretor — que também assina o roteiro e a produção — afirma que Nós tem interpretações múltiplas e sua intenção é que as pessoas saiam do cinema e se confrontem, antes de tudo, consigo mesmas. O que você vê do outro lado do espelho?

Atenção: este texto contém spoilers!

Em 1986, quando ainda era criança, Adelaide (Madison Curry), se perdeu dos pais durante um passeio no parque de diversões ao entrar numa sala de espelhos em uma das atrações do local. Foram poucos minutos perdida, mas o que viu foi suficiente para deixar a garota tão traumatizada que anos depois, já adulta, ao voltar ao local com sua família em uma viagem de férias, Addy (Lupita Nyong’o) não consegue escapar da sensação de que o antigo mal está indo de encontro a ela novamente. Ao se olhar no espelho, a menina viu não o seu reflexo, mas uma outra versão assustadora de si.

Após uma sequência de alusões a imagens espelhadas e coincidências, o pressentimento de Addy se mostra correto quando uma família aparece no jardim da casa de praia dos Wilson na primeira grande sequência de susto e suspense do filme. Assim como o núcleo formado por Adelaide, Gabe (Winston Duke), Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex), o grupo invasor é composto por um homem, uma mulher e um casal de crianças, cada um deles um sinistro doppelgänger de um membro da família. “Somos nós”, nota o caçula, e de repente é impossível desver as semelhanças.

“Somos americanos”, explica Red (novamente Lupita Nyong’o, que em seu primeiro papel como protagonista merece duas indicações ao Oscar), o duplo, quando começa a contar sua história. Ela conta que sempre viveu à sombra de Adelaide, porém embaixo da terra, numa espécie de simbiose invertida. Tudo que acontecia de bom com Adelaide se refletia em Red de uma maneira ruim, e a conexão se estendia para os duplos dos membros da família, que foram se ligando a Red na medida em que surgiam na vida de Adelaide. Mais adiante, descobrimos que não só a família Wilson, mas todos no país (no mundo?) possuem o seu duplo, e eles chegaram na superfície prontos para matar sua contraparte e reivindicar a vida potencialmente normal e feliz que lhes foi negada por anos — ou séculos? “Somos americanos” é talvez a frase que ressoa com mais força em Nós, um dos eixos chave para a interpretação do filme.

Qual é a história que escondemos embaixo da terra?

A história que conhecemos dos Estados Unidos e da América de modo geral foi construída em cima da exploração colonial, da escravidão e do genocídio indígena. Isso, no entanto, nos foi contado de um jeito diferente, através da narrativa gloriosa das Grandes Navegações, como se a história do continente tivesse começado em 1492 com a chegada de Cristóvão Colombo. Enquanto o homem branco europeu “descobria” o Novo Mundo, a população indígena nativa, os americanos originais, eram massacrados, seja pela força da violência física, nas guerras, ou por consequência das novas doenças trazidas pelos navegadores, como sarampo, varíola e cólera, além do apagamento simbólico das múltiplas variedades culturais que existiam no local. Os dados são imprecisos, mas estima-se que até o início do século XX cerca de 80% dos povos nativos americanos já haviam sido exterminados, um processo de devastação que continua até hoje, inclusive no Brasil.

O capitalismo só foi possível graças à acumulação de capital vinda principalmente do sistema colonial e da economia escravista. Embora Nós mire diretamente os Estados Unidos (o título em inglês, Us, faz um trocadilho com a sigla U.S., de United States), podemos estender a análise para a realidade brasileira, principalmente quando pensamos nos governos atuais dos dois países e a forma como ambos negam as consequências desses séculos de exploração que são sentidas até hoje. O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão, que durou 300 anos e foi abolida há 130, sem que houvesse, no entanto, políticas adequadas de reparação e inclusão para a população negra. Essa herança é o nosso duplo, o gêmeo do mal, o rosto assustador do outro lado do espelho, o monstro do nosso médico.

O duplo não é um tema novo na arte, e uma das muitas referências que Jordan Peele traz é a do episódio “Mirror Image”, de The Twilight Zone, série clássica de fantasia, terror, suspense e ficção científica criada por Rod Serling, um realizador que acreditava que poderia dizer mais sobre preconceito, paranoia e ganância nos Estados Unidos através de monstros e alienígenas do que com seres humanos, de acordo com análise do The Verge. Em Nós, o duplo ganha uma leitura contemporânea e sua mensagem é mais incisiva do que o roteiro perturbador, porém com mensagem política menos clara, de “Mirror Image”, mas segue sendo usado como ferramenta para revelar os terrores que escondemos embaixo da terra e que nunca desaparecem.

Outro clichê de filmes de terror que Jordan Peele abraça, dessa vez para subverter, é o da maldição dos cemitérios indígenas. O cemitério indígena costuma ser usado para explicar fenômenos sobrenaturais que assombram personagens — em sua maioria brancos — de histórias de terror. Cemitério Maldito e O Iluminado são os dois exemplos mais óbvios do uso desse tropo, dois livros assinados por Stephen King.

A adaptação para o cinema de O Iluminado feita por Stanley Kubrick é uma das referências mais presentes em Nós — pelo tema da dualidade, estilo de câmera, uso da trilha sonora, passando pela presença de gêmeas malditas — e há interpretações que afirmam que o filme é uma alegoria ao genocídio indígena ocorrido em solo norte-americano. No entanto, a questão não é um debate central no roteiro, e mesmo nas histórias que usam o cemitério indígena para supostamente vingar o mal que os brancos fizeram ao povo nativo americano, a mitologia indígena é construída a partir de uma perspectiva ocidental e branca, que exotiza o “diferente” e o observa à distância, incapaz de transferir a esses Outros o mesmo olhar de empatia que ganha o protagonista, que nunca deixa de ser o mocinho ou até mesmo a vítima, como se deslocado das opressões estruturais responsáveis por aquela matança. O Outro continua sendo o objeto do medo.

Quem somos nós?

A ideia de perspectiva se torna especialmente importante quando chegamos à revelação final do filme: Red, na verdade, é a pequena Adelaide que entrou na sala de espelhos no verão de 1986, e é o seu doppelgänger que hoje vive na superfície depois de ter escapado, tornando a relação entre os Amarrados e seus duplos ainda mais complicada. Durante duas horas assistimos à história pelo ponto de vista de Adelaide, e enquanto espectadores somos levados a direcionar nossa empatia a ela, um aspecto que se torna ainda mais interessante quando lembramos que Lupita Nyong’o é uma mulher negra, assim como toda sua família é negra, subvertendo outro clichê racista de filmes de terror, que escolhe sempre matar primeiro o personagem não-branco. Numa história mais simples, com mocinhos e vilões, a Adelaide que conhecemos seria a verdadeira usurpadora, culpada por roubar a vida de Red. No entanto, Nós não é um filme simples.

Enquanto Corra! mira um único alvo, Nós é ambicioso e se expande em muitos temas e interpretações, ao ponto de às vezes se emaranhar em suas próprias armadilhas, criando alguns nós que Jordan Peele não consegue desatar. A explicação oferecida para o surgimento dos Amarrados, um experimento de clonagem abandonado, deixa pontas soltas e até retira um pouco da força simbólica e até perturbadora dos duplos. Porém, esse último espelho que ele coloca diante de nós através da virada final torna mais fácil a concessão de licenças poéticas por eventuais deslizes narrativos, uma vez que Nós nos deixa com questões mais complicadas em mente.

“Quando decidi escrever esse filme, eu estava acometido pelo fato de que vivemos um tempo que temos medo do Outro — seja ele um invasor misterioso que acreditamos que veio nos matar ou roubar nosso trabalho, ou parte da população que mora longe e votou de forma diferente da nossa. Estamos sempre apontando o dedo. O que eu quis dizer foi que talvez o monstro que mais precisamos olhar seja parecido conosco. Talvez nós sejamos o mal”, disse Jordan Peele na estreia do filme. O medo do Outro não é novidade nem no cinema e nem na História, e tem sido usado há séculos para justificar violências e injustiças; contudo, ao mesmo tempo em que bebe dessa tradição, Nós é um produto perfeito do nosso tempo.

Em entrevista sobre seu processo criativo, Peele disse que mergulhou fundo em pesquisas sobre a mitologia do doppelgänger, que é um de seus horrores particulares, e se perguntou como ele poderia ser usado numa história que só poderia existir hoje ou num filme que só poderia ser feito agora. Esse espelho maldito nos ajuda a refletir sobre a polarização política crescente, pois tanto Adelaide como Red acreditam ter sido roubadas. Nossas desigualdades, principalmente as raciais e sociais, foram mantidas pelo medo socialmente construído do que existe do outro lado, pelo instinto de proteger o nosso povo, aquilo que é nosso, dos outros. Quando perdemos, esse medo se transforma em ódio por esse outro, que se torna bode expiatório de uma falha intrínseca ao próprio sistema que cria essa perda. Não é à toa que a ascensão de governos conservadores, muitas vezes autoritários — seja na Alemanha com Hitler, nos Estados Unidos com Donald Trump ou no Brasil com Bolsonaro — esteja ligada a grandes crises econômicas.

Se Adelaide e Red são duas faces de uma mesma pessoa, de um mesmo país, Nós nos leva a algumas perguntas quando suas posições são trocadas: quem nós atingimos com os nossos privilégios? O que nós fazemos pelos outros ao chegar a uma posição privilegiada? Até onde é possível negar nosso passado, nossa identidade, para seguir em frente? É possível apontar dedos se não existe consumo ético no capitalismo? Quem perde quando somos heróis de nossas histórias individuais, quando realizamos o sonho americano? Quem tem direito a esse sonho?

Retratada no filme, em 1986 a campanha Hands Across America convidou os norte-americanos a dar as mãos e formar uma corrente ao longo do país para combater a fome e a pobreza. Para participar era preciso doar 10 dólares. Apesar do espetáculo midiático, a ação acabou gerando mais custos do que dinheiro para doação, além das falhas na organização que excluíram alguns estados, como a Nova Inglaterra e o Havaí, que fizeram suas próprias correntes, mostrando que eles também são norte-americanos. A canção tema da campanha, que deveria competir com atrações beneficentes que proliferaram na década, como o Live Aid e a canção “We Are the World”, não conseguiu um número significativo de famosos para cantar ou aparecer no clipe e passou despercebida. No fim das contas, a corrente acabou cheia de buracos e milhares de doadores nem chegaram a fazer a contribuição prometida, muitos simplesmente só apareceram no evento. A quem nossa vontade de fazer o bem realmente se destina? Quais mãos estamos soltando no meio do caminho?

A partir dessa memória de infância, Red se torna líder dos Amarrados e traça um plano de formar com eles uma corrente na superfície, para mostrar aos outros que eles existem e estão ali, eles são norte-americanos. Há quem acredite que os grupos marginalizados que tem ganhado mais voz nos últimos anos e lutado por direitos iguais são pessoas que querem destruir o mundo tal e qual eles conhecem, são estranhos vindos de fora prontos para roubar seus trabalhos e destruir suas famílias. Há quem acredite, por outro lado, que esse mundo já está dominado pelos Outros, que é preciso acordar um gigante e parar esse movimento, recuperar o país. Eles querem fazer a América boa de novo, colocar o Brasil acima de todos. Importante pesquisador do colonialismo, Boaventura de Sousa Santos afirma: “A grande armadilha do colonialismo insidioso é dar a impressão de um regresso, quando o que regressa nunca deixou de estar.”

Seria Red a líder de um movimento revolucionário ou alguém que usa de uma causa para uma vingança pessoal? É possível ser essas duas pessoas ao mesmo tempo? Será que não estamos todos sofrendo, porém gritando contra falsos inimigos? Nossa História cabe em uma única história?

Essas perguntas não são fáceis, mas precisam ser feitas, agora. Não são esses os únicos questionamentos que Nós suscita, e a intenção deste texto não é esgotar todas as perspectivas ou oferecer uma interpretação fechada, mas sim seguir o caminho que Jordan Peele deixa para que essas perguntas, dúvidas e contradições surjam e reverberem. Essas foram as inquietações que agitaram a mim e aos meus monstros. O que você vê do outro lado do espelho?

Para saber mais:

Looking at Us through black identity and Trump’s America;
Jordan Peele on how Us holds a dark mirror to our country;
O filme Nós não é apenas um filme de terror como a crítica vem dizendo;
Roma e a perversidade colonial;
O colonialismo e o século XXI;

2 comentários

  1. Assisti ao filme ontem e tava só pela crítica de vocês. Uau! Obrigada! Gostei muito dos planos que foram optados pela produção e meio que adivinhei o plot twist do final por causa dessas referências que eles deixaram durante o filme. Gostei demais e agora entendendo alguns pontos na sua resenha achei mais interessante ainda. Obrigada!

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