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Sierra Burgess entre os altos e baixos de um filme loser

Branca, ruiva, intelectual, classe média, hétero e cis. Sierra Burgess (Shannon Purser) apresenta todas, ou a maioria, das características de uma protagonista de romance adolescente com que estamos familiarizadas desde a infância. Entretanto, Sierra é gorda e, só pelo fato de ser gorda e não vestir um jeans tamanho 38, diz muito sobre representatividade nesse tipo de filme.

Atenção: o texto contém spoilers!

Em resumo, Sierra Burgess é uma Loser, filme dirigido por Ian Samuels e lançado pela Netflix em 2018, conta a história de uma jovem que começa a receber mensagens de um número desconhecido e que gradualmente vai se apaixonando pela pessoa do outro lado enquanto finge ser a garota com quem Jamey (Noah Centineo), o remetente, acredita estar conversando. Veronica (Kristine Froseth), a garota que deveria ser a destinatária das mensagens, passa o número de Sierra para Jamey, com quem faz bullying na escola, apenas para se divertir com a situação. O filme é uma adaptação da peça de teatro, Cyrano de Bergerac, de 1897 e escrita por Edmond Rostand.

Sierra é gorda e protagonista, enquanto que a líder de torcida magra é a coadjuvante. Essa inversão de protagonismo conversa comigo e com tantas outras meninas que cresceram assistindo filmes em que, no máximo, seu manequim era alvo de piadas de algum figurante, o que reforçava ou incentivava as atitudes maldosas dos considerados populares. Outro destino para estas personagens é a “incrível” missão de apoiar a protagonista magra nos momentos difíceis na jornada de desventuras de amor juvenil, sem explorar sua vida, seus desejos ou qualquer aspecto que não seja estar ao lado da amiga.

Um estudo realizado em 2013 pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP) com estudantes universitários mostrou que os participantes sentem grande insatisfação com o próprio corpo após a visualização de imagens de pessoas que seguiam o padrão de beleza imposto pela da mídia. Os jovens foram divididos em dois grupos, o experimental, que foi exposto a fotografias com corpos considerados ideais pela sociedade, e outro, de controle, em que os integrantes observaram imagens neutras.

Após as observações, entre os integrantes do grupo experimental, 58,97% dos homens e 37,50% das mulheres escolheram uma silhueta diferente da desejável antes das imagens. Neste grupo, 60,87% dos homens e 80% das mulheres escolheram um corpo mais magro. Entre o grupo de controle, as escolhas permaneceram as mesmas. Sendo assim, este estudo demonstra e, acredito que nossas experiências pessoais também, a capacidade dos produtos midiáticos de influenciarem a percepção sobre nós mesmos, do que é aceitável ou não. Os ideais de beleza quase inatingíveis atua, principalmente para as mulheres, como fortes pressões visto que grande parte delas sofre enquanto tenta fazer com que sua barriga, pele, cabelo, enfim, que cada centímetro de si, seja liso, claro e perfeito.

Estamos acostumados que a jovem gorda possa ser a comediante pastelão e com algumas atitudes estranhas, como no caso da “Amy Gorda” (Rebel Wilson) de Pitch Perfect (2012) ou a menina boazinha, que aceita tudo devido a sua bondade e paciência, até mesmo o tempo em que é deixada no escanteio, para depois ser retomada na trama pela protagonista, como a personagem Julie (Beanie Feldstein), de Lady Bird (2017). O romance destas personagens está escondido em pequenos momentos ou sequer existe na maioria dos casos.

Sierra, em algumas situações, se humilha pelo rapaz que deseja e isso é inegável. Não há como defendê-la. Espionar debaixo do carro o encontro planejado para manter a mentira que criou é humilhante. Ou, logo em seguida, em que o beija de olhos fechados para ele não saber que, na realidade, Sierra finge ser Veronica, são situações que você respira profundamente pela dignidade da personagem e a condena por mentir sobre a identidade. Além disso, não podemos esquecer da cena em que Sierra de fato conhece pessoalmente Jamey e o irmão mais novo dele, em que ela finge ser surda e muda a voz para não delatá-la visto que o único traço real que Jamey conhece de Sierra era a voz, “até porque ele reconheceria a voz dela até no meio de uma multidão”. Mesmo quando ficam juntos no final, as esperanças e química do casal não são lá essas coisas. A relação catfish não é nem um pouco positiva ou justificável, principalmente ao considerar que o desenlace reforça ideia de que pessoas gordas agem de maneiras estranhas para ficar com alguém por não saberem lidar, ou não tem experiência, com essas situações.

Sierra pede a ajuda de Veronica para enrolar Jamey em troca das aulas de reforço porque sabe que não está nos padrões. Ela sabe disso e continua se escondendo porque sabe que ele espera, na realidade, Veronica e seu corpo magro, com rosto maquiado e roupas estilosas. Essa não é quem Sierra é, o que vai de contrapartida com outra produção da Netflix, Insatiable, em que a solução “maravilhosa” da protagonista para lidar com os seus problemas foi emagrecer durante as férias para buscar vingança com quem fazia bullying com ela na época em que era gorda.

Sierra tem ciência de que não corresponde às expectativas de corpo visto como ideal e desejável pela sociedade, mas não muda quem é para tentar se encaixar em um padrão. Ela sofre as pressões, como qualquer um, como é possível observar na cena em que discute com os pais e confessa que é difícil ficar se comparando com a mãe que é magra e pequena. Entretanto, mesmo com os dramas romântico e familiar, Sierra se mantém. Paralelamente, temos o desenvolvimento da relação entre Veronica e Sierra. Vemos mais o lado familiar da líder de torcida e o quanto o ambiente problemático em que vive influencia nas ações e posturas da garota durante o filme. Com o avanço da trama, Veronica muda seu comportamento, deixando o lado garota popular maldosa, e tudo isso colabora para que entre ela e Sierra nasça uma relação pautada na amizade, fugindo da ideia de rivalidade feminina tão comum nesse tipo de filme.

Em Sierra, por sua vez, a mudança de comportamento que vemos é em relação ao seu currículo para ter chances de entrar na universidade conceituada que almeja, Stanford. Ela corre quase que literalmente atrás de sua vaga na faculdade, ao tentar entrar na equipe de atletismo da escola. A ideia de alguém sedentário competir por uma vaga para o time de corrida do colégio não é uma das mais brilhantes, mas vale a tentativa, pois Sierra sabe que precisa ir além pela sua formação. Ter boas notas e ser filha de pais notáveis não vai garanti-la lá fora.

Outro ponto da trama é a hora da vingança de Sierra. Ver quem você gosta beijando outra pessoa dói, certo? Uma amiga, como neste caso, é de arrasar. Veronica, ao beijar Jamey, trai a confiança de Sierra que não era aberta a novas amizades até ela entrar na sua vida, além de Dan (RJ Cyler). Em outros casos, a protagonista, muito provavelmente, é uma personagem completamente bondosa e a sua atitude seria se sentir arrasada, ir para a casa, desistindo assim da apresentação que precisava fazer, subir as escadas correndo e chorar até a campainha tocar com a amiga esperando uma chance para explicar o mal entendido.

Sierra não. Ela é cruel na vingança. Mesmo com a quebra de confiança, a exposição de um momento tão íntimo de Veronica não é justificável, ainda mais ao considerar que foi enganada para ficar com o cara que tirou a foto divulgada. É uma exposição tão maldosa que você esperaria essa atitude da personagem líder de torcida e popular e não da menina tímida e que tira boas notas. Novamente, ela não atende a certas expectativas com as atitudes que toma. Entretanto, o filme peca nos pedidos de desculpas de Sierra que poderiam ser mais enfáticos e diretos para demonstrar o quanto estava arrependida. Em nenhum dos casos, com Jamey ou Veronica, ela apresenta de forma clara no que errou. Não há justificativa para o que fez, mas neste momento de reconhecimento ela deveria ter sido mais objetiva.

As pessoas reais não estão presas a fórmulas X ou Y, como magreza somada a uma pessoa branca é igual a certos tipos de posturas e o mesmo vale para os que fogem deste padrão. Sierra Burgess é uma Loser pode não ser um exemplo de como lidar com relacionamentos, mas sem dúvidas é uma chance de ver outros corpos e comportamentos nas protagonistas de produções de romance adolescente.

Thalya Godoy é acadêmica de jornalismo e exploradora no Pinterest nas horas vagas. Quer escrever sobre as histórias escondidas e, geralmente, funciona a base de pensamentos intranquilos sobre a vida, o universo e tudo mais.

1 comentário

  1. Olá! 🙂

    Normalmente, não deixo de ver/ler algo apenas por opiniões negativas, mas tem situações que não consigo mais aceitar de boa e “tudo pra ficar com ele” é uma delas. Difícil, né? Quando é filme antigo, a gente ainda tenta relevar, mas 2018 né, e o pessoal batendo na mesma tecla…

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