Faz 21 anos desde que 42 milhões de americanos assistiam ao episódio da sitcom Ellen, de Ellen DeGeneres, em que a apresentadora assume, depois de muitas tentativas, que é lésbica. No episódio, chamado “Puppy Episode”, a personagem fictícia de Ellen diz a Susan (Laura Dern), durante uma despedida, que também gosta de mulheres. Apesar de engraçado, o capítulo reverberou mais do que o esperado, fazendo com que a produção da série, na temporada seguinte, decidisse colocar um aviso para os pais sobre o conteúdo do programa. O conservadorismo americano e o preconceito à comunidade LGBTQ+ eram frequentes nos anos 90, e Ellen parou de ser gravada. Grupos religiosos, inclusive, propuseram boicote ao programa na época.
Algumas semanas antes do episódio ir ao ar, a apresentadora Ellen DeGeneres já havia dito à Time Magazine a frase: “Sim, eu sou gay”. Mas a partir do momento em que boa parte dos cidadãos americanos estavam ligados à televisão, sua história se perpetuou. Mesmo colocando em xeque todas as suas conquistas, sendo vítima de lesbofobia e vivenciando a rejeição do público, a comediante manteve seu discurso. Conversou abertamente com Oprah Winfrey, durante uma extensa entrevista, e foi lutar para reconquistar sua reputação e sua profissão. Sobre sua experiência, DeGeneres disse alguns anos depois de se assumir que “aprendeu o que é não ser amada e foi o alvo da piada de todos na televisão e nas revistas“.
Durante esse período turbulento, Ellen continuou procurando trabalho, até que foi selecionada para ser a voz da inesquecível Dory, de Procurando Nemo, e pouco tempo depois foi chamada para ter seu próprio talk show, o The Ellen DeGeneres Show, que é transmitido há 15 anos pela emissora de televisão NBC. A insistência e o talento de Ellen renderam a ela o título de maior ícone da televisão norte-americana. A apresentadora atualmente é a humorista mais bem paga do mundo e também uma das lésbicas mais respeitadas de todos os tempos. Foi vencedora do People’s Choice Award por nove vezes, eleita como a personalidade mais influente da TV, e é a única celebridade a ter apresentado o Oscar duas vezes, além dos prêmios Emmy e Grammy.
Alguns dizem que a história de Ellen DeGeneres sobre assumir publicamente sua sexualidade não foi tão traumática, já que esse tema não aparece à exaustão em seu programa. Apesar disso, no ano passado, ela deu inúmeras declarações sobre os 20 anos desde que revelou ao público que era lésbica. Além disso, ela não deixa de abordar esse tema em seus programas e continua falando abertamente sobre seu casamento e sua vida pessoal. No universo da comédia, lugar em que ela conquistou seu merecido espaço, a sua existência já é a maior resistência que ela poderia fazer. Não ter desistido, em um espaço comandado pela figura masculina, impulsionou ainda mais a representatividade de mulheres lésbicas nessa indústria. Para citar alguns exemplos, temos atualmente Wanda Sykes, Tig Notaro, Rosie O’Donnell, Sandra Bernhard e Kate McKinnon — todas comediantes que têm sua sexualidade abertamente revelada.
Há, entretanto, uma nova personalidade que fala com franqueza (e propriedade) de suas experiências, na maioria das vezes não muito positivas, como uma mulher lésbica. Hannah Gadsby conquistou o público num dos primeiros stand-ups da era #MeToo, Nanette, que se dedica a falar sobre ser lésbica e mulher na comédia, além de dissecar as estruturas machistas desse mercado. Sua apresentação modificou por completo a estrutura de um stand-up. Uma das fala de Hannah, inclusive, motivou a reunião de sua história à de Ellen neste texto. Durante uma parte de seu show, ela se detém a problematizar os feedbacks que as próprias lésbicas que a acompanham dão a ela sobre seu trabalho. “Seu show não é muito lésbico”, Hannah ouve, aparentemente com frequência. “Você precisa representar mais seu povo”, continuam. A comediante faz diversas críticas sobre esse posicionamento e questiona se “o simples motivo de estar no palco não é suficiente para discutir o que é ser lésbica nos dias de hoje”. Toda a sua história de existência no país em que nasceu, a Austrália — mais exatamente o estado da Tasmânia, lugar onde a homossexualidade era ilegal até meados dos anos 90 — e de seu desenvolvimento como mulher lésbica e feminista fazem parte de sua “lesbiandade”. Todo o conteúdo que aborda em seu show, sem exceção, faz de sua simples presença, a prova da resistência.
Tanto Hannah Gadsby quanto Ellen DeGeneres são responsáveis por representar as lésbicas em espaços que hoje jamais alcançaríamos sem a existência dessas duas mulheres como figuras públicas. Ambas as comediantes exercem um papel fundamental para inserir discussões sobre a lesbofobia, o preconceito e as desigualdades no debate das pessoas que acompanham seu sucesso. Ambas ainda têm um estilo e uma postura que são, claramente, lésbicos. E nenhuma delas parece se preocupar com isso. As histórias são inspiradoras para todas as meninas que gostam de outras meninas, que sonham em ir para a televisão ou serem famosas. É, sem dúvidas, uma honra saber que Hannah e Ellen seguem ganhando dinheiro (sim, isso é importante também), dando voz para milhões de pessoas e continuam a ser lembradas e reconhecidas em todos os cantos do mundo.
Clara Cerioni é jornalista e lésbica, é apaixonada pelo universo da música, em especial por tudo o que é produzido por mulheres. Acredita na bondade das pessoas e queria que sua história fosse como a de Patti Smith. Sonhadora, busca nas palavras o refúgio para enfrentar os problemas do mundo. Medium | Instagram
** A imagem em destaque é de autoria de editora Paloma.