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Como Greta Gerwig conta uma história de amor

Durante os muitos meses em que promoveu Lady Bird: A Hora de Voar conforme o filme chegava a diferentes festivais e recolhia múltiplas indicações em diversas premiações, não foram poucas as vezes em que Greta Gerwig, diretora e roteirista do longa, enfatizou a importância dos diferentes relacionamentos entre suas personagens femininas:

“Meu interesse é em como as mulheres se relacionam umas com as outras, porque acho que é muito comum que as mulheres nos filmes sejam reduzidas a se conectar através de um cara. O que, sabe, deu origem a um monte de filmes maravilhosos, então não estou jogando shade neles. Mas eu acho que isso significa que existe um vasto território de relacionamentos que não estão sendo explorados.” (Greta entrevistada por Simon Houpt no The Globe and Mail, tradução livre)

Simon Houpt, que entrevistou Greta para o The Globe and Mail, considerou Lady Bird um “retrato autêntico de uma história de amor entre mãe e filha”.

Embora 2017 tenha marcado a estreia de Greta na direção, ela já vinha trabalhando ativamente por trás das câmeras há bastante tempo, sempre em conjunto com outras pessoas, fosse como co-roteirista ou co-diretora. Antes de Lady Bird, Frances Ha (dirigido por Noah Baumbach) representou durante alguns anos seu maior sucesso autoral — que, além de guardar a até então maior bilheteria (ainda que muito modesta), também trouxe sua primeira indicação ao Globo de Ouro. Greta encontrava efetivamente sucesso no mainstream através de seus filmes independentes, sucesso que resultou no financiamento de um projeto próprio e inteiramente seu; mas que guarda, como seria de se esperar, alguns pontos de ligação com que ela já havia feito antes.

Lady Bird conta uma história de amadurecimento mais convencional, porque estamos falando de uma adolescente no último ano de ensino médio; Frances Ha conta outro tipo de história de amadurecimento, uma que não que se enquadra no gênero coming-of-age (outro nome para o bildungsroman, o romance de formação), mas que guarda muitas semelhanças com ele: os anos pós-faculdade, aqueles em que teoricamente precisamos descobrir como nos tornar adultos de verdade e finalmente Ser Alguém. Christine McPherson, ou simplesmente Lady Bird — nome dado a ela por ela mesma —, sonha em sair de sua cidade natal, Sacramento (ou “o meio-oeste da Califórnia”) e ir para Nova York estudar onde existe cultura e todo um mundo inimaginável de coisas empolgantes. Frances Halladay está em Nova York, mas a realidade é agridoce — algo que, ao final do filme, Lady Bird também descobre.

Frances Ha e Lady Bird têm estilos muito distintos, mas se complementam em termos de trama e temática — e porque, em alguma medida, a vida de Frances poderia ser também a de Christine; ainda que tenham personalidades essencialmente diferentes, quando se veem por conta própria no mundo, ambas vivem um processo semelhante de quebra de expectativas e precisam aprender a viver com a realidade material à sua frente, o que não configura suas histórias como tristes ou cínicas, e sim como histórias de pessoas que estão vivas. “Às vezes nós não somos quem aspiramos ser, ou pelo menos não somos ainda — nós simplesmente somos quem somos”, diz Amanda Petrusich em sua resenha de Lady Bird. Greta Gerwig parece afirmar, em ambos os filmes, que se queremos explorar e entender quem realmente somos, precisamos olhar para as conexões mais fundamentais que estabelecemos com aqueles ao nosso redor. Nesse sentido, os dois filmes também se complementam porque, por trás de todos os dramas particulares das duas protagonistas, estão duas histórias extremamente significativas que falam sobre amor, sobre conexão e desconexão e os caminhos difíceis habitando o espaço entre esses dois opostos.

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Um tropo muito comum nas histórias de romance é aquele que nos apresenta a dois personagens que inicialmente se odeiam e, ao longo da narrativa, descobrem que se amam. A sabedoria popular diz que entre ódio e amor existe uma linha tênue — ódio e amor, afinal, são duas emoções muito fortes e poderosas que, de formas diferentes, nos fazem sentir e pensar no destinatário daquela emoção, mantê-lo sob nossa atenção constante. A trajetória entre um sentimento e outro — ou, talvez, entre reconhecer e aceitar a presença do segundo deles —, no entanto, é geralmente lida como uma trajetória de transformação, e nós gostamos de transformação. Lady Bird se apropria desse tropo para contar uma história sobre um relacionamento conturbado, que é o elemento essencial no desenvolvimento de Lady Bird, sua protagonista: o relacionamento entre mãe e filha.

Greta Gerwig

Ao longo de toda a narrativa, vemos conflitos intermináveis entre Christine/Lady Bird (Saoirse Ronan) e sua mãe, Marion (Laurie Metcalf). Lady Bird é adolescente, é pretensiosa e a maneira como se refere à sua terra natal, a casa onde vive e às suas próprias aspirações deixam transparecer um ar de superioridade insuportável. Mas ela também é engraçada, sabe ser gentil, aprende a reconhecer seus erros e é corajosa e cheia de vida. Sua mãe, por sua vez, se desdobra em muitas para cobrir diversos turnos trabalhando num hospital enquanto o marido está desempregado e seu filho, com um diploma de uma boa faculdade na mala, precisou voltar para casa, trazendo uma namorada a tiracolo. O estresse de Marion e sua exasperação quanto à filha são palpáveis e compreensíveis; por outro lado, também é palpável e compreensível que Christine sofra porque, embora ela não questione se a mãe a ama, ela se pergunta se a mãe gosta dela, uma vez que Marion passa praticamente o filme inteiro tecendo críticas à filha.

Para Lady Bird, o tipo de adolescente que grita “eu te odeio” para a mãe, crescer também significa finalmente aprender a sentir empatia por sua mãe e enxergá-la como um ser humano tão real quanto ela mesma — ela precisa desenvolver uma visão menos egocêntrica do mundo ao seu redor. Em uma resenha que considerou o filme um ato de amor, Alissa Wilkinson descreve o processo de amadurecimento da personagem:

“[A]o longo do ano, uma série de pequenas conversas, capturadas por meio de vinhetas e vislumbres, atravessam seu egocentrismo. Tudo o que acontece — mágoa, vergonha, decepção, júbilo – evidencia que as outras pessoas também passam por dificuldades.” (tradução livre).

Enquanto as coisas acontecem para ela, há a vida acontecendo para todas as outras pessoas — de modos muito diferentes, mas diretamente ligados. Quando ela começa a andar com um novo grupo de amigos, e isso é empolgante, sua melhor amiga, Julie (Beanie Feldstein), fica para trás. Não é só isso que faz Julie proclamar, num dos momentos mais comoventes do filme, que algumas pessoas simplesmente não foram feitas para serem felizes, mas perceber-se descartada por sua melhor amiga faz parte do que machuca. Quando Lady Bird encontra seu então namorado beijando um garoto e fica mais ultrajada do que propriamente triste, ela é confrontada com a realidade de que ele está aterrorizado, e sofrendo, com a descoberta da sexualidade. Quando ela realiza seu sonho e vai embora da Califórnia, ela deixa os pais, a mãe, para trás. A um país inteiro de distância. E eles só tiveram dezoito anos.

A capacidade de enxergar tudo isso, aliada às novas experiências que vive — nenhuma delas supervalorizada como o grande marco específico da chegada da vida adulta —, é que transforma Lady Bird. Onde o sentimento era mais forte e mais poderoso, no entanto, a transformação também era a mais difícil: ela só consegue perceber a beleza de Sacramento (e Sacramento é também a sua mãe) depois de finalmente deixá-la para trás.

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Em Frances Ha, o sonho nova-iorquino de uma garota originária do meio-oeste da Califórnia não é exatamente aquilo que ela imaginava. Frances (Gerwig) tenta criar para si mesma uma carreira de dançarina, mas ela não sai da estagnação; a diretora da companhia onde Frances é aprendiz gosta muito dela, mas quer mantê-la apenas fazendo trabalho administrativo. Enquanto isso, o relacionamento de Frances termina sem muitas cerimônias quando o namorado quer morar com ela, mas ela se opõe praticamente sem pestanejar à ideia. Sua melhor amiga e colega de apartamento, Sophie (Mickey Sumner), tem um emprego fixo, um namorado com dinheiro e quer se mudar para um bairro melhor que não cabe no orçamento da amiga. Frances flana por Nova York procurando um lugar para viver que possa bancar com seus não-empregos, não sabe exatamente o que fazer, não tem certeza de quais são suas aspirações se não são a dança, não sabe como resolver seus problemas de um jeito efetivo. “Desculpe, eu ainda não sou uma pessoa de verdade”, ela diz num encontro quando tenta pagar a conta e o cartão é recusado — e ela tinha acabado de receber a restituição do imposto (o que é, é claro, muito adulto).

Sempre presente por trás dos dramas de Frances com ela mesma está sua amizade com Sophie; as primeiras cenas do filme são dedicadas à relação entre as duas, que naquele momento congelado do tempo são tão próximas que por vezes são confundidas com um casal. Mas os ritmos e as dinâmicas da vida de cada uma mudam, tornam seus horários, seu tempo livre, seus programas, incompatíveis; elas não compartilham mais o ritmo da faculdade, que equalizava suas vidas. É difícil para Frances ver a vida de Sophie caminhando para a frente e perceber que a amiga está fazendo escolhas que ela mesma não faria, que as afastam e que evidenciam que elas não são, afinal, a mesma pessoa com cabelos diferentes. Se existe uma personagem específica a quem Frances reage constantemente no filme, essa personagem é Sophie.

Greta Gerwig

Mas Frances Ha insiste que, ainda que as coisas mudem e os sonhos não se concretizem, o sentimento, as histórias compartilhadas, tudo isso continua a existir. Quando Sophie e Frances se reencontram pela primeira vez após a mudança da primeira para o Japão, uma Sophie bêbada diz que vai largar o agora noivo e voltar para casa. Mas ela não se lembra de nada disso na manhã seguinte e a vida segue seu curso normal. As cenas finais do filme, no entanto, enfatizam a continuidade de uma conexão profundamente sentida que não deixa de existir, mas que precisa ser reacomodada às pessoas que Frances e Sophie são naquele momento. Assim como Sophie, Frances não realiza exatamente aquilo que havia planejado; ser dançarina, ao que tudo indica, é algo que não vai se concretizar. Mas seu triunfo é finalmente encontrar uma maneira de recanalizar suas ambições criativas de uma maneira produtiva: Frances encontra espaço — e apoio — como coreógrafa. É um momento de triunfo pequeno, não completamente transformador, mas que deixa claro que existe um caminho, mesmo não sendo exatamente aquele que ela almejava. E o filme, em suas cenas finais, opta por centralizar a permanência de um relacionamento platônico que por vezes parecia fadado a acabar também como um pequeno, mas significativo, triunfo.

Lá pela metade do filme, num jantar no qual encontramos uma Frances completamente deslocada, vivendo seus piores dias, ela explica (ainda que ninguém tenha perguntado) que o que quer em um relacionamento: em meio a muitas outras pessoas, do lado oposto da sala, trocar olhares com alguém e saber que ali existe todo um mundo de significados que os outros não conseguem enxergar ou saber que está ali. É o que ela espera encontrar em um relacionamento ou apenas na vida, ela se corrige. Frances Ha encena e materializa o momento descrito por ela. Mas, talvez inesperadamente para ambas, ele acontece entre Frances e Sophie. Frances passa o filme inteiro solteira, e ela e seu amigo Benji (Michael Zegen) têm uma piada interna sobre serem “inamoráveis”; mas não é uma questão com a qual o filme de fato se preocupa e ela não demanda uma resolução. Não porque não é importante para Frances, mas porque ele simplesmente não é sobre isso.

Frances Ha, como Lady Bird, desloca ativamente o foco dos relacionamentos românticos de sua protagonista para jogar toda a luz sobre os outros relacionamentos (igualmente importantes, mas nem sempre tratados como tal na ficção) que existem nas vidas de meninas e mulheres, reafirmando e insistindo em sua centralidade e relevância. Não deixa de ser significativo que Lady Bird, por sua vez, deixe de ir ao baile de formatura da escola com seu ex-quase-namorado para ir com Julie, onde elas se divertem sendo fotografadas nas poses absolutamente ridículas que são tradicionais desse tipo de evento escolar.

Mas em Lady Bird é o relacionamento de mãe e filha que abre e fecha o arco narrativo. É preciso que a mãe não esteja fisicamente presente para que Lady Bird, agora oficialmente Christine de novo, sinta vontade de fazer um esforço consciente para se reconectar com ela em termos mais positivos. Coisa que ela faz ao telefone, sozinha na paisagem nova-iorquina logo após assistir a uma missa — justo ela, que queria de todas as maneiras fugir do catolicismo que rodeara sua adolescência no colégio católico.

A última cena de Lady Bird, que centraliza a personagem em uma cidade na qual ela é uma espécie de imigrante, curiosamente (ou não) me lembrou da última vez em que Saoirse Ronan estivera nas telas do cinema antes disso, em Brooklyn. A cena que fecha o filme de John Crowley também centraliza Saoirse, sozinha, em uma cena nova-iorquina, para logo depois reconectar a personagem à sua família — ao marido de quem estava distante há meses. Brooklyn, uma história sobre imigração, sobre solidão e encontro, sobre identidade e sobre o que significa um lar, sobre renúncia como consequência de qualquer escolha, foi inúmeras vezes reduzido a uma história sobre uma garota entre dois amores. Talvez porque simplesmente estejamos acostumados demais a atribuir muito significado e importância às figuras masculinas. Ou talvez porque os dois homens em questão de fato são usados para simbolizar as duas vidas possíveis para Eilis.

Ainda que tenhamos realizadores homens muito bem intencionados, empáticos e cuidadosos entregando bons trabalhos que centralizam personagens femininas (como o próprio Brooklyn), sua percepção a respeito das mulheres será inevitavelmente filtrada por, bem, um homem (seja no papel de pai, filho, irmão, marido, amigo). E homens ainda são mais de noventa por cento dos diretores e roteiristas dos filmes de maior sucesso de bilheteria. Por outro lado, a presença de uma diretora ou roteirista em um filme aumenta significativamente o número de protagonistas, personagens e principais e personagens com falas que também sejam mulheres. É menos provável, numericamente falando, que mulheres interajam entre si em um filme escrito e dirigido por homens, mesmo que essa interação precise acontecer em termos ridiculamente simples.

Nada disso quer dizer que Frances Ha ou Lady Bird são filmes revolucionários para a representação feminina no cinema, ou que mulheres brancas heterossexuais de classe média não protagonizam filmes há décadas, ou que a relação de mãe e filha, ou a amizade entre mulheres, nunca foram representadas antes. Mas elas certamente não foram representadas o suficiente — como poderiam, quando em 2014, logo ali atrás, vimos apenas 12 protagonistas mulheres entre os cem filmes de maior bilheteria naquele ano, quando termos como Princípio Smurfette ou Teste de Bechdel continuam a ser relevantes para a discussão sobre mulheres na mídia (termos que nem mesmo levam em consideração qualidade de coisa alguma, apenas quantidade)?

Com Frances Ha e com seu cem por cento autoral Lady Bird, Greta Gerwig contribui para uma representação menos limitada e menos limitante de nossas vidas no cinema. Mas existem muitas intersecções que precisam ser levadas em consideração quando pensamos em um termo que engloba literalmente bilhões de pessoas. Enquanto mais mulheres não tiverem espaço para contar as próprias histórias e enquanto aquelas que o fazem continuarem sendo exceção, a ficção que consumimos continuará sendo principalmente isso: limitada e limitante.

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