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Crítica: Runaways

Depois de lotar o mercado com os mais variados tipos de séries sobre super-heróis, a Marvel decidiu, junto com o serviço de streaming Hulu, contar uma narrativa diferente, fugindo das usuais produções que desenvolveu em parceria com a Netflix, como Jessica Jones, Luke Cage e Punho de Ferro, e também dos seriados que são exibidos em canais abertos, como a rede norte-americana ABC, responsável por Agents of Shield. Runaways veio para dar um ar novo e jovem para o segmento, trazendo inovação enquanto ainda mantém muitos artifícios característicos nesse tipo de narrativa. A série se utiliza da fórmula já batida da luta entre bem e mal, tropos que referenciam a jornada do herói idealizada pelo escritor Joseph Campbell, pares românticos e elementos sobrenaturais, unindo-os a novos componentes, como diversidade e representatividade, personagens adolescentes e até um dinossauro, de modo a atingir tanto um público totalmente novo quanto resgatar a audiência dos mais antigos fãs do gênero.

A jornada, no entanto, teve início muito antes do Hulu decidir mostrá-la ao mundo. Os heróis adolescentes Molly Hayes (Allegra Acosta), Nico Minoru (Lyrica Okano), Karolina Dean (Virginia Gardner), Gertrude Yorkes (ou simplesmente “Gert”, interpretada por Ariela Barer), Chase Stein (Gregg Sulkin) e Alex Wilder (Rhenzy Feliz) foram trazidos à vida pelos escritores de quadrinhos Brian Vaughan e Adrian Alphona ainda em 2003. No Brasil, a história chegou apenas em 2006. Depois de uma pausa de mais de dez anos no arco dos personagens, a Marvel decidiu reviver a trama nos quadrinhos com ninguém menos do que Rainbow Rowell (conhecida por sucessos como Eleanor e Park, Fangirl e Carry On) à frente do projeto. As edições atuais também contam com o talento do artista Kris Anka, cujo trabalho pode ser visto em outros títulos da Casa de Ideias, como Captain Marvel Vol. 1: Rise of Alpha Flight, de 2016, e Star Lord: Grounded, de 2017.

Embora não tenha lido os quadrinhos (ainda!), os comentários e reviews têm sido bastante positivos no que compete ao tom e abordagem da adaptação que, mesmo tendo lançado mão de novos elementos, expandindo o universo dos jovens Fugitivos, continua devidamente fiel ao conteúdo no qual é baseado.

Como o site Preta, Nerd & Burning Hell definiu, Runaways, a série, por sua vez, se torna um encontro de narrativas, trazendo elementos das típicas produções centradas em grupos de heróis, como Os Defensores e Vingadores, junto com a riqueza, luxo, conflitos e questionamentos adolescentes vistos abundantemente em produções norte-americanas, como 90210 e The O.C — Josh Schwartz, idealizador da última, está a frente do seriado ao lado de Stephanie Savage, co-criadora de Gossip Girl e produtora executiva de The O.C. Em perspectiva, Runaways poder ser facilmente tida como uma espécie de Malhação repleta de personagens com super-poderes e pais de moral questionável que participam de um culto secreto chamado PRIDE [ORGULHO, em tradução livre].

Atenção: este texto contém spoilers!

A série tem início quando um grupo de amigos de longa data volta a se reunir após ter se afastado por algum tempo devido a um incidente que afrouxou as relações entre os seis. Reunidos, como tradicionalmente faziam no passado, os adolescentes descobrem uma passagem secreta no escritório do pai de Alex, Geoffrey Wilder (Ryan Sands), onde acabam se deparando com os próprios pais em uma espécie de porão secreto, vestidos de vermelho, realizando um ritual no qual uma integrante da igreja comandada por Leslie Dean (Annie Wersching), mãe de Karolina, é aparentemente assassinada. Assustados e sem saber o que aquilo significa, o grupo tenta agir de forma natural na presença das figuras paternas e seguir a rotina de suas vidas, que inclui ir para a escola, ser a garota propaganda perfeita da igreja, no caso de Karolina; lidar com o pai abusivo e usufruir de seu privilégio branco, no caso de Chase; fazer rituais wicca e ser gótica em tempo integral, no caso de Nico; panfletar contra o patriarcado e assegurar a revolução feminista, no caso de Gert; lidar com mudanças radicais em seu corpo e com a saudade dos pais mortos, no caso de Molly; e descobrir o que diabos está acontecendo e se reconectar com Nico, no caso de Alex.

Como no estilo utilizado por John Hughes em Clube dos Cinco, cuja representação dos adolescentes partem inicialmente de estereótipos típicos do ambiente escolar, Runaways nos apresenta seis protagonistas de forma conjunta, entrelaçando suas histórias no decorrer dos dez episódios que compõe a primeira temporada. Para tornar a dinâmica mais fácil e impedir que tantas pessoas briguem pela atenção na tela de uma só vez, o roteiro faz a escolha sábia de dividi-los em duplas, o que também ajuda a formar o quebra-cabeça que é o passado e o futuro desses jovens. É com a busca incansável pela verdade que Alex e Nico vão impulsionar a trama, incentivando os outros personagens a desvendarem o mistério sobre seus pais, sobre qual tipo de atividade criminosa — e provavelmente ligada à assassinatos em série — eles são parte.

Karolina e Chase, por sua vez, apoiam-se um no outro, mas a ligação é desenvolvida de forma questionável. Com o passar dos anos, Chase se transformou no típico garoto branco esportista, que usa sua influência no ambiente escolar, para ser babaca e praticar bullying, e que se apaixona pela garota mais bonita, não necessariamente por quem ela é, mas por aquilo que representa. Criado sob a influência de uma figura violenta, não é surpresa que suas atitudes sejam reflexo da relação problemática com o pai, Victor Stein (James Marsters). Em determinado episódio, Chase vai dizer que ele já “nem o espanca há algum tempo”, traço importante que revela uma realidade fundamental: a de que muitos praticantes de bullying são também vítimas de violência. Karolina, em contraponto, não demora a tornar-se uma agradável surpresa: apenas um rostinho bonito à primeira vista, seu arco narrativo aborda questões profundas, como sua descoberta como homossexual, revelação que pode ser considerada parte do cânone de Runways, tendo sido tratada abertamente nas HQs, e que fica implícita desde os primeiros episódios da série. Na tela pequena, contudo, o tema é abordado de forma mais subjetiva; é preciso estar atento aos olhares direcionados à Nico ou à indiferença dispensada às investidas de Chase. Mesmo que, no fim, a representação lésbica em Runaways receba alguns pontos por seu desenvolvimento, o fato de jamais mencionar o que Karolina realmente é — lésbica —, deixando a informação apenas como uma suposição, caracteriza um tipo de queerbaiting, mascarado pela desculpa dada de que “a personagem estava sendo desenvolvida.”

Outra decisão controversa sobre o arco de Karolina envolve a cena de estupro no qual Chase se torna protagonista ao salvá-la de dois colegas do time de lacrosse, que se aproveitam do desmaio da garota para tirar proveito dela. A cena pouco agrega à personagem, que se transforma em uma mera coadjuvante após o acontecido; sua opinião sobre o assunto ou o impacto emocional sofridos por Karolina são apenas pincelados na trama, que projeta seu foco em Chase utilizando a violência contra a jovem como meio de criar maior profundidade e tridimensionalidade em seu arco narrativo, fazendo-o perceber que não é preciso ser um babaca como seu pai. A pergunta que não quer calar é: quantas vezes teremos que ver uma trama como a de Sansa Stark (Sophie Turner) — e muitas outras personagens femininas — serem repetidas exaustivamente apenas para validar sentimentos e reações de personagens masculinos?

O que nos leva a Gert, uma das minhas personagens favoritas. Ainda que os roteiristas tenham errado a mão na composição da personagem em muitos momentos, o idealismo, a lealdade e força de vontade de Gert, fora o fato de possuir um dragão e ser capaz de se comunicar com ele, a tornam uma personagem memorável. Como uma garota que deveria, supostamente, fugir dos padrões estéticos impostos pela sociedade, no entanto, sua construção é alvo de uma sucessão de erros, a começar pela escolha da atriz Ariela Barer, mais conhecida por seu papel como Carmen, em One Day At a Time. Apesar de talentosa, Barer precisou da ajuda do figurino para parecer gorda, algo que ela não é; característica essencial na construção de Gert. A série lança mão de artifícios como roupas largas e ângulos específicos de filmagem que dão a impressão de um corpo não-magro, o que definitivamente não é o jeito de representar uma minoria que ainda ocupa espaços tão limitados em produções cinematográficas.

Além disso, o discurso feminista empregado por Gert demonstra o desconhecimento da produção em relação ao movimento e o despreparo para construir uma garota adolescente e ativista. Com a cobrança maior por parte do público sobre a presença de temas emergentes que reflitam debates fomentados na internet e nas ruas, muitas produções decidem acatar tais sugestões — o que também funciona como forma de atrair e manter esse público. O interesse, no entanto, não reflete a qualidade do discurso, que muitas vezes dispensam o mínimo esforço para realizar pesquisas e inserir maior diversidade em suas tramas; um problema que não existe de forma isolada, mas permeia a cultura pop de forma mais ampla. Em Runaways, Gert frequentemente vomita frases de suposta ordem feminista, mas que são apenas uma reprodução vazia daquilo que se tornou popular com a difusão do movimento e, no fundo, não fogem tanto assim do senso comum. Ainda, embora tenha se declarado feminista, os roteiristas insistem em manter um arco de rivalidade entre Gert e Karolina pelo interesse e atenção de um homem.

Demora até que elas sejam capazes de criar um laço de amizade e suporte, como deveria ser desde o primeiro momento, o que soa contraditório em uma série com proposta tão autêntica, que mantém um elenco não apenas majoritariamente feminino, mas também predominantemente diverso: dos seis protagonistas, apenas dois deles são brancos, um deles uma mulher lésbica.

O exemplo de relações femininas positivos é abordado de maneira singela e delicada pelas interações entre Gert e sua irmã adotiva, Molly. Integrante mais nova do grupo, Molly é também a primeira a descobrir suas habilidades especiais; dona de uma força extrema, ela é o tipo de personagem que conta para todos o que é capaz de fazer e não mede esforços para demonstrar a que veio, como pode agregar ao time. Com una narrativa essencial para a formação da aura de mistério e sordidez que envolve os pais de seus colegas, ao final da temporada, Molly precisa encarar algumas revelações sobre o assassinato de seus pais, que contribuem diretamente para a trama maquiavélica centrada na PRIDE.

Mas Molly não é a única irmã a ter um papel fundamental. Amy (Amanda Suk), irmã de Nico, ainda que reservada somente à aparições em flashbacks devido a sua morte prematura, orbita como uma presença palpável e instigante em uma história que muitas vezes demora a sair do lugar. Pivô da reaproximação enter Alex e Nico, ainda que não de forma positiva, a morte de Amy, tratada inicialmente como suicídio, é encoberta por diversas mentiras e distorções, que, mais tarde, se provam essenciais para desmascarar o plano maligno comandado pelos pais dos adolescentes. Para Nico a morte da irmã é, também, catalisador de conflitos pessoais: por trás da maquiagem pesada e das roupas escuras, a personagem é claramente a mais afetada pela perda da irmã, com quem tinha uma forte ligação. Alex, em comparação, parece menos interessante, sendo sua principal habilidade o raciocínio frio e lógico.

Com tempo considerável de tela, os pais se tornam um show à parte, cujo desenvolvimento chega a ter mais foco do que os adolescentes em muitos momentos. Runaways é incrementada pela visão dos pais, mostrando a trajetória e conflitos dos assassinos, como chegaram ao ponto em que estão e como todos são joguetes nas mãos de Jonah (Julian McMahon), líder da PRIDE e verdadeiro vilão da série. Ele, que surge na metade da temporada, mostra, principalmente, que pode existir alguém pior do que as pessoas manipuláveis e ambiciosas que decidiram permanecer na situação em que foram amarradas, fosse pelo status ou pelo dinheiro. A abertura para esse novo olhar sobre a trajetória desses jovens, e também de seus pais, surpreendentemente não faz com o que ritmo e o texto da série se tornem envolventes, cativantes o suficiente para prender quem a assiste, pelo contrário: apesar de despertar interesse e nos fazer ansiar pelo próximo episódio, Runaways peca pela falta de apelo da maioria de seus personagens, especialmente se tratando dos pais. Desde o andamento da história e o estabelecimento de laços entre personagens, até as atuações levam o telespectador a acreditar que a série nunca chegará ao seu clímax.

Todavia, Runaways consegue mostrar suas boas intenções em escolhas interessantes e ligeiramente fora da curva, como a profundidade dada à relação entre os adolescentes e sua carga de questionamentos e angústias, em uma fase de crescimento pessoal e descoberta de si mesmos, que se sobressaem aos defeitos presentes na série. Os dois últimos episódios, em especial, despontam um potencial enorme para a próxima temporada (já confirmada pelo Hulu, com 13 novos episódios), que é quando finalmente ocorre a ruptura entre pais e filhos, nos levando a respirar aliviados pelo roteiro ter, enfim, decidido fazer jus a definição referenciada em seu título — Fugitivos, em tradução para o português.

Runaways é uma série que merece atenção. Mesmo que produções maçantes dos últimos tempos tenham saturado o público antes ávido por novidades da Marvel e da DC, a série consegue subverter alguns elementos que tornaram produções como Arrow, por exemplo, tão indigestas. A força do novo seriado reside justamente em seus personagens adolescentes, composto por um elenco positivamente diverso e que coloca em voga temáticas de coming of age, mas principalmente em suas protagonistas femininas que, cada uma à sua maneira, endossam o argumento de que garotas podem ser badass, femininas, duronas, inseguras e sentimentais, e ainda salvar o dia — não apesar de tudo isso, mas com tudo isso; sendo exatamente quem são.