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Interseção: uma comédia romântica à brasileira

O que fazer quando você quer ler um livro em específico, mas ele parece não existir? Escrevê-lo, oras. Foi isso que a autora baiana, Vanessa Reis, pensou — e fez — ao pesquisar no site Smart Bitches (2020) um livro que tivesse uma trama baseada no clichê haters to lovers com a protagonista sendo uma pessoa com deficiência (PCD) e não encontrar nenhuma opção listada pelo mecanismo de busca.

A partir deste momento nasceu Interseção, segundo livro publicado de forma independente na Amazon por Vanessa, e que faz companhia a Dois, obra de estreia da escritora, e aos contos das coletâneas das quais faz parte, entre elas Qualquer Clichê de Amor e Confetes e Serpentinas. Embalado em referências à Bíblia, Rebelde, Crepúsculo e produções que quem cresceu nos anos 2000 vai ter orgulho em reconhecer, além de trazer diversas expressões do baianês, dando um toque especial ao texto, Interseção é um presente para quem ama romances, mas, sobretudo, para quem ama ler.

A jornada de Catarina, uma assistente social, começa quando ela está prestes a matar o seu colega, João Pedro da Silva, mais conhecido como JPS. Catarina sendo quem é — cabeça dura, implicante, irredutível e com pitadas de medo de ser vulnerável — passa seus dias amaldiçoando o momento em que o Todo-Poderoso a colocou para dividir uma sala minúscula com um homem de nome bíblico — isso, por si só, já é um atestado de “cilada”; agora ela passa seus dias alternando entre rezar para que Jesus lhe dê paciência, e não forças, para aguentar o ego gigantesco de seu colega — que não cabe no cubículo que eles habitam — e implorando aos céus por um livramento para que JPS saia de sua vida e pare de se meter em seus projetos.

Seria tão mais fácil amar ao próximo se ele trabalhasse a 2.700 quilômetros de mim.”

Entre ataques verbais e implicâncias que destilam o ódio mortal que reina entre os dois, além da competitividade de quem entrega mais projetos, a relação de Catarina e JPS parece fadada a terminar em uma sala do Recursos Humanos, não fosse por uma intervenção divina que os leva a trabalhar em um grande projeto juntos, do qual a teimosia e arrogância de ambos não permitirá que desistam, mesmo que para isso eles precisem realmente trabalhar em sintonia, o que implica em conversar de verdade, muito além das farpas e acusações de incompetência que são proferidas e pairam entre o pequeno espaço que os separa.

Entre conversas com sua melhor amiga, Nathália, que me fizeram ter a sensação de estar lendo trocas de mensagens reais com minhas amigas, maratonas de séries, uma festa a fantasia que deveria entrar para a história, um trabalho de cupido nas horas vagas, afinal até quem é #TeamJacob merece amor, interações com uma menininha sapeca e adorável, a relação de Catarina e JPS vai se desdobrando, se moldando e se transformando para algo além da inimizade e desgosto. Conforme convivem, o ranger de dentes de Catarina em reação às falas de JPS torna-se sorrisos e risadas de suas piadas bobas, e a imunidade ao charme de seu colega começa a se desfazer até que, assim como Sr. Darcy, nossa protagonista acaba cheia de sentimentos, que não sabe muito bem quando ou onde começaram, e muito menos como encará-los.

“É como se eu carregasse um buraco gigantesco de coisas miúdas, como se eu estivesse repleta de vazios que não pesam, porque eu nunca estive cheia dessa sensação desconhecida que tem me feito falta, que tem me feito sentir vazia, que parece nunca se preencher.”

Catarina é meu tipo preferido de protagonista e daquelas que toda comédia romântica merece. Se ela mesma é contra si, não sobra muita sabotagem para os outros fazerem com ela. Com a língua rápida, pronta para defender com unhas e dentes as muralhas ao redor dos seus sentimentos, ela é o suprassumo da cabeça dura e teimosia com quem é impossível não se identificar, seja por como tem dificuldade em dar o braço a torcer ou como é leal aos amigos ou, ainda, pela insegurança de ser amada romanticamente. Já JPS é o mocinho que toda leitora que ama idealizar o amor merece. Logo de cara somos levados a pensar “que chato implicante” apenas para poucas páginas depois, quando menos se espera, surgir o primeiro suspiro por uma fala doce ou gesto gentil; a partir daí, você, e a protagonista, são um caso perdido. Mesmo que, claro, nós admitamos muito mais rápido nossos sentimentos do que ela.

Comédias românticas são um alimento para alma e nada melhor do que uma recheada de clichês como Interseção, que entrega todos os ingredientes necessários para fazer o leitor ser cativado desde a primeira página, tornando-se incapaz de desgrudar da leitura até o final. Esse feito se devo muito a incrível escrita de Vanessa Reis, que cria um encanto com suas palavras que poucas vezes experimentei até hoje; do início ao fim, os personagens, o andamento da trama e cada frase tocaram meu coração e me deixaram morrendo de vontade de mergulhar nesse universo tão único, tão próximo, tão da nossa realidade, com expressões típicas da Bahia, referências a cultura brasileira e locais que parecem terem saídos da esquina da minha casa.

“Daqui a pouco vai me dizer que o João Pedro é o novo Rodrigo Hilbert.”

Mais do que isso, a maestria do senso de humor dos personagens, das situações e a naturalidade com que pensamentos e interações acontecem tornam a leitura incrivelmente deliciosa e fluída. Tudo isso para na página seguinte estarmos secando lágrimas do rosto ou de queixo caído, pegos de surpresa com uma reflexão que ressoa para além da história.

O fato é que Vanessa Reis nasceu para a escrita, é amiga das palavras e sabe segredos sobre elas que nós desconhecemos, por isso, é capaz de moldá-las de jeitos impossivelmente poéticos e que atingem verdades tão enterradas que você nem sabia que estavam lá. Talvez por isso, ao ler Interseção, minha impressão seja que a escritora está confortável em exercer o seu papel, o que faz a magia da história que está contando ser perceptível, incapaz de resistir e impossível de não se tornar uma favorita absoluta quando finalizada.

Falando em estar confortável, é preciso destacar o modo que Vanessa constrói sua personagem principal que, assim como ela, é cadeirante. O livro, no entanto, não gira em torno disso e é extremamente satisfatório ler uma história em que a personagem tem o direito de ser quem é, sem ser transformada em um token de representatividade, transitando pela história de forma confortável consigo, com nuances e personalidade tridimensional.

“Eu odeio ser tratada como o Serviço de Atendimento ao Consumidor ou vista como a recepcionista num grande balcão de informações da vida, mas sinto uma dúvida genuína em seu semblante.”

Quando falamos de representatividade é preciso pensar além de preencher um espaço com minorias de forma rasa e apenas para conquistar um selo de politicamente correto. É preciso pensar no real objetivo e na necessidade de dar vozes às histórias daqueles que foram pouco ouvidos ao longo do tempo — mas, principalmente, não apenas sobre suas dores, mas de todo o universo que existe em si —, e Catarina é a prova do quão importante e satisfatório é para o leitor ter a oportunidade de acessar isso.

No fim, Interseção proporciona muito ao leitor: risadas, lições, bons momentos, uma escrita que deixa marcas e um casal que nos faz acreditar que o amor é complicado, relações são mais ainda, e humanos são complexos, mas quando se cruzam, se encontram, se unem em um ponto em comum, o destino de felizes para sempre é selado.

“Nossa interseção é o amor.”


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