Categorias: CINEMA, COLABORAÇÃO

Quase 20 anos depois, Bridget Jones continua sendo uma representação da mulher moderna

Bridget Jones está solteira. E isso não seria um problema se não a incomodasse tanto. Ou a todos a seu redor. Ao mesmo tempo em que luta pela sua independência, vive em cima de paradigmas fidedignos do feminismo e glorifica toda sua liberdade em poder sair para beber com os amigos a hora que bem entender, Bridget não aguenta mais ser a solteirona de 32 anos, motivo de chacota entre os amigos casados e a pobre coitada que os parentes tentam desenrolar para o filho de uma amiga da mãe meio esquisitão. Com o objetivo de dar um jeito na sua vida de uma vez por todas, Bridget resolve começar um diário na virada do ano, no qual traça objetivos como beber menos, parar de fumar, emagrecer e encontrar o homem ideal. Obviamente, nada corre como o planejado.

Não faço a menor ideia de quando foi o meu primeiro encontro com Bridget. Ou de quantos reencontros já tive com a personagem e quantas vezes revi sua trajetória. Com uma interpretação brilhante de Renée Zellweger, indicada ao Oscar, ao Bafta e ao Globo de Ouro pelo papel principal, o fato é que O Diário de Bridget Jones é uma dessas comédias românticas clássicas, do tipo que você revê quando está precisando de um quentinho no coração ou simplesmente precisa ver algo que te faça se sentir em casa. Era só o que eu queria quando dei de cara com o filme ali, no catálogo da Netflix, onde entrou no mês de abril — junto com sua sequência, de 2004. Mas não foi isso que aconteceu.

Assim como acontece com a gente quando se apaixona, a vida de Bridget parece finalmente entrar nos eixos quando seu chefe e maior crush, Daniel Cleaver (Hugh Grant, em sua melhor forma), começa a lhe dar bola. A partir disso nada parece mais importar. A calcinha bege de vó na hora do sexo, quantas calorias consome em um dia ou seu desempenho no trabalho. Até que tudo não são mais flores, quando ela descobre que Daniel está noivo e que ela é só mais uma… bem, ninguém.

Bridget Jones

O primeiro choque foi saber que o filme foi dirigido por uma mulher (Sharon Maguire) — em 2001 isso não era lá muito comum — e talvez tenha sido aí que tudo fez sentido para mim e que não estávamos mais falando de uma comédia romântica qualquer. Mas estou me adiantando.

Em uma das primeiras cenas, quando está em uma festa de família de fim de ano, Bridget passa por um tio que passa a mão em sua bunda. Assim, na cara dura.

Aliás, durante o filme inteiro, Bridget é assediada. Tem o colega de trabalho que não para de olhar para seus peitos. O chefe que manda mensagens impróprias por e-mail e com quem Bridget vem a ter um caso mais tarde (ele mesmo, o chernoboy Daniel Cleaver). O outro chefe que a contrata simplesmente no intuito de ter um caso com ela e que, mais tarde, pede que ela apareça em uma gravação com uma minissaia, apenas com a intenção de vender sua imagem — ainda que estivesse simplesmente atuando como repórter.

O fato é que, assim como nós, Bridget passa o filme inteiro sofrendo pequenos assédios e passando por eles, apesar de a deixarem visivelmente incomodada, como se fossem parte do jogo da vida, algo em que esteve tão acostumada e com que convive desde sempre, uma barata morta em uma canto do banheiro que está simplesmente ali.

Se todos esses pequenos detalhes me incomodaram, assim como a personagem principal o filme inteiro — ainda mais por tê-lo visto durante toda uma vida e eles nunca terem me chamado a atenção —, quando os créditos subiram, eu simplesmente entendi. Bridget Jones é tão bom e ainda faz tanto sentido porque foi dirigido e escrito por mulheres. Elas entendem Bridget e nós nos identificamos tanto com a personagem porque absolutamente todas nós passamos pelas mesmas situações, mesmo quase 20 anos depois.

Bridget Jones

O próprio relacionamento de Bridget Jones começa com o que poderia ser entendido, hoje em dia, como uma assédio no ambiente de trabalho, quando Daniel lhe envia um e-mail comentando o quanto sua saia é curta. E se Bridget não estivesse afim dele desde sempre? Mais tarde, ainda antes de ter a grande revelação sobre o verdadeiro status de relacionamento de Daniel, ele grita que ela não tem noção de como é trabalhar de verdade e que para ela é tudo muito fácil porque a vida no escritório se resume a desfilar de minissaia entre as mesas. Eu não faço ideia de quantas amigas minhas já desabafaram sobre se sentirem diminuídas no ambiente de trabalho simplesmente por serem mulheres, mas já foram muitas.

Claro que ainda estamos falando de um filme. O livro em que é inspirado, escrito pela jornalista britânica Helen Fielding, em 1995, quem basicamente inaugurou o que hoje a gente chama de chick lit — e que também assina o roteiro do filme, o que explica ele ser tão fiel ao romance —, bebe apenas em um dos maiores romances de todos os tempos: Orgulho e Preconceito.

Assim como no clássico de Jane Austen, as aparências enganam e nem tudo é o que parece ser. Daniel Cleaver é o próprio Mr. Wickham que, em meio a todo o seu charme, parece ser um cara muito legal, mas que na verdade é um grande babaca. Já o filho da amiga da mãe citado lá em cima e que se chama, olha só, Mark Darcy (interpretado por Colin Firth, que já deu vida ao senhor Darcy itself na adaptação do romance austeniano para série da BBC de 1995), que a princípio parece ser, além de meio esquisito, arrogante, é quem revela gostar de Bridget em meio a todos os seus defeitos, cozinha com ela e que lhe compra um diário novo. Afinal, ainda que um não tenha ido com a cara do outro de início, eles sempre podem recomeçar.

Mas O Diário de Bridget Jones não é perfeito e nem mesmo ele venceu o teste do tempo. A corrida da personagem em relação ao seu peso, por exemplo, é razoavelmente gordofóbica. Pelo menos no filme, dadas todas as piadas que se fazem e que funcionam como crítica através da identificação — parecida com a crítica social que Jordan Peele faz através do cinema de terror, mostrando os absurdos do nosso meio através de uma alegoria —, eu prefiro interpretar que tudo não passa de uma grande ironia. No livro, fiquei com a sensação na maior parte do tempo de que não funciona bem assim, principalmente em determinados pedaços em que Bridget diz sentir nojo de si mesma por ter consumido uma quantidade x de comida. As piadas e momentos engraçados ainda estão lá, mas eu me pergunto até que ponto, em pleno 2019, eles na real não poderiam ser gatilhos. Assim como o amigo gay que, apesar de ter lá sua graça, hoje seria visto como um personagem estereotipado e que está ali apenas para cumprir cota. Vale ressaltar também que absolutamente todos os personagens são brancos.

Bridget Jones

Por falar no ano em que estamos vivendo, é válido terminar com uma reflexão de uma das amigas de Bridget no livro e que não aparece no filme, onde as amizades da personagem não tem tanto espaço — o que felizmente foi mantido para os pais da personagem, principalmente todo o arco da mãe dela de autodescoberta e empoderamento aos 60 anos de idade.

“Nós, mulheres, somos vulneráveis porque integramos uma geração pioneira que tem a ousadia de não fazer concessões em se tratando do amor e que depende apenas dos próprios recursos financeiros. Daqui a vinte anos, os homens não vão nem pensar em babaquice emocional, porque nós vamos rir na cara deles”

Ainda não chegamos lá, mas nós vamos chegar. Nós vamos chegar.