Categorias: TV

Sharp Objects: até onde vai o trauma

Era abril de 2018 quando a HBO, emissora responsável pela minissérie Sharp Objects, decidiu largar um trailer para deixar os meros mortais ávidos por mais uma adaptação que sairia dos livros pra tomar forma na TV. Eu, fácil como sou, comprei na hora. O trailer lançava Amy Adams no elenco; uma adaptação da mesma autora do estrondoso Garota Exemplar; e, a mesma direção responsável pela icônica Big Little Lies. Ou seja, não havia possibilidade de não comprar a ideia. Pra entrar no clima, corri atrás do livro – que já estava na lista dos “quero ler” há anos – e conheci a história de Objetos Cortantes. Não amei, mas gostei o suficiente para torcer por uma boa adaptação.

Atenção: este texto contém spoilers!

Aviso de gatilho: este texto contém linguagem de violência e automutilação.

Com roteiro de Gillian Flynn e Marti Noxon, e uma direção esplendorosa do cineasta Jean-Marc Valléé, Sharp Objects é muito fiel em relação ao livro. A série conta a história de Camille Preaker (Amy Adams), uma jornalista recém-saída de uma internação psiquiátrica mandada de volta à sua terra natal, Wind Gap, Missouri, a fim de investigar o assassinato de uma menina local e o sumiço de outra. O trabalho, que ela aceita a contragosto, a leva de volta à casa onde cresceu, à antigas memórias, e a uma costumeira difícil convivência com Adora Crellin (Patricia Clarkson), sua mãe. Ao longo de oito episódios, assistimos o lento desenrolar de uma investigação que parece nunca ter fim, muito menos ápice. Mas, principalmente, assistimos ao ir e vir de três histórias paralelas, conectadas e difíceis de digerir: a história de Camille, a história de Adora, e a história de Amma Crellin (Eliza Scanlen), filha mais nova de Adora e meia-irmã da protagonista.

Durante o curso da investigação, somos também apresentados a personagens secundários de uma trama intrinsecamente feminina. Alan Crellin (Henry Czerny), marido de Adora, poderia muito bem ser um abajur, pois pouca utilidade ele possui – escuta música, mima a esposa e faz vista grossa para o ambiente sufocante da própria casa. Um dos detetives responsáveis pela investigação policial é Richard Willis (Chris Messina), pessoa com quem Camille cria uma conexão muito superficial, mas movida pelo sentimento de inadequação entre um turista e alguém que deixou a cidade para trás. Richard é a maior presença masculina da série, mas, obviamente, fica ofuscado e atordoado pela relação da família Crellin (e Preaker). John Keene (Taylor John Smith), por sua vez, é o irmão mais velho de Natalie Keene, a segunda menina a desaparecer na cidade. É um dos principais suspeitos, mais tarde ficamos sabendo, pela morte de ambas as meninas.

É um ledo engano pensar em Sharp Objects como uma série jornalística-policial. Apesar do seu enredo girar em torno de assassinatos e sumiços, que saem da caixinha comum ao assassinato de mulheres e meninas (nenhuma das duas é abusada sexualmente), o ponto central da história é a relação das três mulheres – Camille, Adora e Amma –, suas personalidades, defeitos, acertos e, acima de tudo, o gênero das três. Por assim o ser, ou seja, por se tratar sobre construção de personagens e não evolução de grandes plots e reviravoltas, a série é construída em camadas, camadas densas, que caem uma sob a outra com uma calmaria exacerbada, no maior estilo slow-burn [queimando aos poucos] – o que pode não agradar a todos, e não me agradou por completo. O erro, contudo, é fazer uma comparação rápida com a adaptação para o cinema de Garota Exemplar, ou Big Little Lies. A diferença entre aquelas e esta, no entanto, é justamente precisar criar um ambiente para desenvolver e situar a vida de três mulheres tão diferentes, o que se faz ao custo de quase oito horas. É muito mais sobre o que se sente, se pensa, se sujeita, do que o que se faz, o que acontece ou que se fala.

Essa transição das letras para a tela da TV é menos trabalhosa quando, na obra original, o que acontece envolve ações, grandes acontecimentos. No caso de Sharp Objects, o trunfo, então, não resta nisso. Com exceção dos dois últimos episódios e dos segundos finais do series finale, o que se assiste e o que se acompanha é a relação conturbada entre mulheres de uma mesma família. Tais relacionamentos, baseiam-se, majoritariamente, em desconfiança, dependência emocional, maltrato (muitas vezes velado), cobranças, expectativas, mágoa e uma bagagem muito grande vinda do passado.

A forma como a série trabalha em construir essa aura de medo, solidão, angústia, violência e raiva, é primorosa. A utilização de flashbacks, mantém a ligação entre passado e presente, muitas vezes de forma contínua, com memórias que auxiliam na construção daquilo que acontece no tempo presente. Por meio de alguns desses flashbacks descobrimos, por exemplo, que Adora perdeu a filha mais nova, Marian (Lulu Wilson), por quem Camille nutria um grande apego emocional – o que geralmente acontece entre duas irmãs que vivem sob uma realidade de controle extremo. Não sabemos ao certo o que aconteceu com a protagonista, nem em que momento exato a relação entre Camille e Adora começou a azedar, mas é perceptível que as duas, há muito, não se suportam. É uma relação nada fraternal, movida por sentimentos ruins, que demonstra que, como bem disse Tolstói, “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

Infelizes à sua própria maneira, as moças Crellin mantêm as aparências, embebidas na mais alta sociedade da cidade pequena. Para Amma, no entanto, isso só acontece durante o dia – à noite, no auge dos seus treze anos, está ocupada demais bebendo, usando drogas e provocando garotos. Camille, por sua vez, não poderia se importar menos para como se apresenta para pessoas que mais parecem engolidas por um vácuo no tempo e espaço, estacionadas numa realidade antiga, preconceituosa e muito fofoqueira. Para além da relação familiar dessas três gerações de mulheres, ou talvez justamente por causa dela, fantasmas do passado estão sempre presentes, os traumas nunca são realmente superados, refletindo-se diretamente nos traços de personalidade – e, principalmente, nos distúrbios de personalidade – dos quais essas mulheres não se desvencilham.

Camille, logo sabemos, tem o costume de automutilar-se, o que também é referenciado no título da obra. Quando jovem, ela reservava espaços escondidos no próprio corpo para escrever na pele palavras que achava adequadas ao dirigir a si mesma. Ao longo do tempo, a recorrência se faz presente, e o corpo de Camille é coberto por xingamentos e “elogios”, a maioria deles fazendo referência à experiência de ser mulher – julgamento, subjulgamento, slut-shaming e palavras “doces”.  Além de abusar da bebida e do sexo como mecanismos de controle e fuga, assistimos a personagem, ainda antes de retornar para Wind Gap, em uma tentativa de suicídio. O transtorno e o trauma de Camille são palpáveis, e ganham muito pela interpretação de Amy Adams, que, se o mundo ainda é justo, possivelmente renderá indicações e premiações a um dos mais densos trabalhos da atriz. Os louros também podem e devem ser estendidos à Patricia Clarkson, que dá vida a Adora Crellin. Com o passar dos episódios, não apenas somamos um mais um e tiramos a conclusão de que Adora realmente torna o ambiente pesado e claustrofóbico ao seu redor, mas ficamos sabendo, também, que a personagem sofre de uma doença chamada de “Munchausen por procuração”. A síndrome, classificada como uma forma de abuso infantil, consiste em intencionalmente provocar uma doença em alguém a fim de trazer para si a atenção dos outros. No caso de Adora, é sua única forma de amar. Por fim, a mais nova da geração, Amma Crellin parece já sentir os efeitos de viver sob um teto onde a claustrofobia e o controle são a regra. A conciliação entre a menina que é em casa e a adolescente desregrada que é fora dela, é um dos desenvolvimentos mais interessantes da série. Entre a doçura, a provocação e a violência, a atuação de Eliza Scanlen é uma surpresa agradável, muito marcante, e que nada deixa a desejar perto do elenco de peso.

A minissérie, que chegou ao fim no final de agosto, não exatamente deixa saudades – não há estômago que aguentaria o tranco por tanto tempo –, mas em menos de dez episódios contou tudo o que tinha para contar. Não o fez de forma rápida, muito pelo contrário pois; é entre passos lentos e calculados que se torna possível montar o quebra-cabeça que fez, e faz, de Sharp Objects uma adaptação tão aclamada pela mídia. Construir personagens não é tarefa fácil, demanda ambientação, um plano de fundo, e atores capazes. Por si só, não é algo que se vê todos os dias. Construir personagens mulheres, complexas, cheias de camadas, traumas e fantasmas, então, é realmente muito difícil – e é algo ainda mais raro de se ver. Em Sharp Objects, no entanto, o raro é a norma.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!