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Me Diga Quem Eu Sou: a trajetória de dor, descoberta e superação de uma mulher bipolar

Verão de 1988. Helena Gayer, então com 21 anos, é diagnosticada com transtorno bipolar. De férias com os amigos, no litoral de Florianópolis, ela vê seu primeiro e mais devastador surto de mania tomar forma, até explodir como uma bomba que espalha seus estilhaços por todos os lados e arrasta consigo tudo o que encontra pelo caminho, episódio que culmina em sua primeira — mas não última — internação em uma clínica psiquiátrica. É dessa forma que a autora inicia Me Diga Quem Eu Sou, seu primeiro livro, cuja narrativa navega entre os extremos de dois mundos (a mania e a depressão) e, a partir de então, vai refletir sobre as nuances existentes entre e para além do diagnóstico.

Natural do Rio Grande do Sul, onde vive até hoje, e formada em Jornalismo pela UFRGS, Helena descobriu muito cedo o que era ter a vida marcada por transtornos psicológicos: a batalha contra a depressão teve início ainda na adolescência, em especial após a separação dos pais, momento que a marcou de forma profunda e que rememora em várias passagens da obra. Mesmo que tivessem continuado a viver sob o mesmo teto, o casamento tornara-se sinônimo de rancor, mágoa e falta de diálogo, e Helena assistia a tudo isso, ao mesmo tempo próxima e distante do que estava acontecendo: embora fosse diretamente afetada pela situação, não lhe cabia exercer voz ativa — o que, em consequência, viria a agravar suas crises depressivas.

“Era como se eu fosse um fantoche desprovido de vida. A tristeza me invadia aos poucos, as coisas iam perdendo sentido e, de repente, me encontrava numa prostração, totalmente estática, definitiva. (…) Estava encurralada frente a uma realidade intransponível e de uma tristeza visceral que me comia por dentro, que me tirava a alegria de viver. A sensação era de estar chumbada e irremediavelmente condenada às profundezas às quais eu me entregava sem reagir. Mergulhei nesse abismo de inúmeras vezes. Eu acreditava que não havia alternativa.”

Em casa, ninguém entendia muito bem como ou por quê a separação parecia ter um efeito tão devastador sobre ela, que menos ainda entendia o que estava acontecendo consigo mesma. Mudanças corporais aconteciam em meio ao caos que era sua mente, mas eram eclipsadas pela tristeza. Mesmo alguns anos mais tarde, Helena viveria os altos e baixos da doença, que eram intercalados com momentos de normalidade e outros de hipomania (alteração de humor similar à mania, mas de menor intensidade), que não se comparavam à força, tampouco à irrealidade que tomaria conta de si anos mais tarde, mas que ainda eram catalisadores de reações desproporcionais. Não se trata de culpar o fim do casamento ou mesmo seus pais, no entanto. Ao revirar o passado, Me Diga Quem Eu Sou traça um pano de fundo que nos ajuda a compreender o funcionamento da mente da autora e como situações que poderiam não ter um impacto tão grande na vida de outras pessoas exerceram influência sobre a sua de maneira muito particular. Mesmo pessoas imediatamente próximas, com quem dividia o mesmo teto, como sua tia Giulia, que foi morar em sua casa quando tinha apenas dez anos e viria a assumir o papel similar ao de uma irmã mais velha, não pareciam ser tão afetadas pela disruptura familiar; elas continuavam a seguir com as próprias vidas, a fingir que nada estava acontecendo, a mascarar os próprios sentimentos ou lidar com eles na intimidade, de maneira silenciosa e pacífica — Helena não.

Me Diga Quem Eu Sou

A depressão é o que a leva pela primeira vez ao consultório psiquiátrico, onde passa a ser tratada com medicamentos que não surtem o efeito desejado. A experiência torna-se mais traumática quando, durante uma consulta, Helena é assediada pelo médico. Não é um episódio isolado: ao longo da narrativa, a autora nos conduz por diferentes situações em que homens se aproveitam de seu estado de completa vulnerabilidade e abusam-na de diversas maneiras. Me Diga Quem Eu Sou amplia o espectro da discussão, nos fazendo refletir, também, sobre questões de gênero dentro do recorte específico da saúde mental. Se por um lado, as crises de mania e a falta de discernimento entre fantasia e realidade a transformavam em um alvo fácil, por outro, muitas das situações experienciadas por ela e narradas no livro remontam padrões que não se restringem ao contexto de uma mulher com transtorno bipolar, ou quaisquer transtornos psicológicos, mas de literalmente qualquer mulher.

“Em meio a tanta dor, a maior manifestação da misericórdia divina foi permitir que tudo se apagasse de minha memória. Poupada dos detalhes sórdidos, acordei de manhã como se nada tivesse acontecido. Ainda vi o último deles vestindo as calças e saindo pela porta. Uma sensação de anestesia e vazio invadiu vísceras e mente, e tive certeza de que não havia mais nada a fazer.”

É uma história que se repete com frequência e continua a se repetir exaustivamente. Em seus surtos de mania, Helena se transformava em uma mulher sedutora e destemida, eufórica e provocativa, cuja noção de limite tornava-se mais confusa à medida que o episódio se intensificava. Movida pela crença de que era uma pessoa especial, com nível de consciência elevado, e influenciada por livros como a Bíblia e Do Jardim do Éden à Era de Aquarius, de Greg Brodsky, a autora era levada a situações de perigo, muitas das quais eram acentuadas pelo seu modo de agir, falar e vestir. Seu comportamento era um convite para desconhecidos, que liam em sua postura uma oportunidade para se dar bem, já que não sabiam o que acontecia em sua vida privada. Mas será mesmo? Vivemos em uma sociedade onde o comportamento agressivo, invasivo e abusivo de homens ainda é normalizado e, em muitos casos, também encorajado, visto como parte de uma suposta identidade. Assim, as experiências relatadas em Me Diga Quem Eu Sou não partem de uma realidade isolada, refletindo problemáticas estruturais da sociedade como um todo e da discrepante socialização de homens e mulheres — o que, mais uma vez, recorda o que é ser o outro, em contrapartida ao ser sujeito.

A violência eventualmente transforma-se em um gatilho que, mais uma vez, a leva ao enclausuramento, num ciclo que jamais parece ter fim. De forma bastante visceral, Me Diga Quem Eu Sou revela os horrores vividos por Helena em suas internações, sobretudo em hospitais públicos, enquanto nos confronta sobre a coexistência de dois mundos tão distintos: aquele que existe para quem vê de fora, sempre a uma distância segura, e a realidade de quem enxerga de dentro, das pessoas marginalizadas e excluídas do convívio social. No livro, ela relata que mesmo profissionais da saúde não se preocupavam em dispensar um tratamento adequado aos pacientes, que eram punidos também nos locais que deveriam lhes fornecer cuidado e conforto. Em uma de suas primeiras internações, Helena reflete sobre seus dias na solitária, após ferir o ego da médica que a atendera — o que não é um episódio único.

“Me lembro do enfermeiro que baixou minhas calças para aplicar uma injeção dolorosa e depois me conduziu com brutalidade até esse quarto de loucas. Que direito ele tinha de me medicar sem ao menos dizer o que estava adicionando à minha corrente sanguínea? Mas eu já sabia que os procedimentos eram assim. Nessa terra de ninguém não existiam direitos, não existia respeito, o que imperava era a autoridade soberana das mentes sãs.”

Nem só de dor e tragédia é feita a vida de uma bipolar, no entanto. Em meio ao caos, Me Diga Quem Eu Sou também encontra espaço para tratar sobre a busca por sanidade, sobre a vida que existe para além do transtorno. Embora exerça um papel importante em sua trajetória, a doença não é o aspecto mais importante da vida da autora, tampouco lhe define como pessoa. Entre os altos e baixos, há também muito carinho, cuidado, esperança, renascimento, e corações que batem com força até o dia que encontrarão novamente a própria sanidade.

“Retornar sã e equilibrada foi uma façanha incrível. Todos os dias da viagem, ligava para os meus pais para dizer como estava. A viagem deu certo. Mostrei a eles que tinha condições de me aventurar por outros lugares. Aquilo foi um estímulo que fez com que eu acreditasse mais em mim mesma e renascesse de depressões e manias sempre que necessário, mesmo que as evidências indicassem o contrário. Assim aprendi o valor das palavras ‘confiança’ e ‘fé’, e como elas fazem diferença na vida.” 

Me Diga Quem Eu Sou O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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3 comentários

  1. Não entendi a razão de você ter dado 3 estrelas e ter escrito um textão desse de maneira positiva sobre o livro. Estava animada para comprar, mas vi a classificação e fiquei “mas ué”!
    Qual a explicação?

  2. Eu me interessei pela história e lendo sua resenha tão positiva me deixou com vontade de comprar. Mas não entendi a nota dada rs. Mesmo assim achei interessante essa conversa sobre transtorno psicológico. <3

  3. Meu nome é Luisa Helena Gayer Vaghetti. Sou a autora de “Me Diga Quem Eu Sou”. Concordo com a avaliação feita de meu livro. Realmente ele não é ótimo, mas é muito bom por usar uma linguagem coloquial com o intuito de alcançar o maior número de pessoas possível. Sou jornalista e minha formação é de uma escrita simples e acessível. Mesmo não tendo um caráter literário, meu livro relata de forma fidedigna a experiência de uma bipolar em busca da sanidade. Por isto também concordo que a aquisição do livro faça a diferença em termos de análise deste transtorno de humor. Com certeza é uma boa leitura.

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