Categorias: LITERATURA

Querida Konbini: o microcosmo de uma loja de conveniências japonesa

Com quase dois mil anos de história, a literatura japonesa é considerada uma das mais antigas do mundo. Separada em cinco períodos distintos — Yamato, Heian, Kamakura-Muromachi, Edo e Moderno — a literatura japonesa se afastou da influência exercida pela China e conquistou suas próprias raízes e histórias, sendo reconhecida ao redor do mundo por suas características narrativas capazes de torná-la única e especial. Entre autores contemporâneos de renome mundial estão Haruki Murakami, Ruth Ozeki, Hiro Arikawa e, claro, Sayaka Murata, cujo décimo romance, Querida Konbini, é o primeiro da autora a ser lançado no Brasil. A edição é da Estação Liberdade, com tradução direto do japonês feita por Rita Kohl.

Em Querida Konbini, Sayaka Murata constrói a história de Keiko Furukura, uma mulher que aos 36 anos trabalha em uma loja de conveniências — konbini, da flexão da palavra em japonês konbiniensu sutoa, cuja origem é o inglês convenience store — desde que tinha 18 anos, nunca se envolveu romanticamente com outra pessoa e é considerada estranha por todos ao seu redor. Ainda que tal estranheza não a incomode em nada — Keiko é feliz da maneira como é —, ela tenta se enquadrar naquilo que se espera dela como forma de minimizar o sofrimento de seus familiares por vê-la desconectada da sociedade japonesa, ou seja, sem um trabalho fixo, casamento ou filhos. Aos 36 anos de idade, trabalhando por hora em uma konbini e sem perspectiva de encontrar um marido, o futuro de Keiko é considerado preocupante mesmo que, para ela, esteja tudo bem continuar sua rotina da mesma maneira, todos os dias.

“As coisas nunca mudam”.

Keiko sempre foi considerada estranha. Quando criança, acertou a cabeça de um colega com uma pá simplesmente por ter concluído que para separar a briga em que ele tinha se metido, seria mais rápido e prático acertá-lo do que chamar a ajuda de um professor. Em outra ocasião, quando encontrou um passarinho morto na praça onde brincava com os colegas, concluiu que o melhor a ser feito com a ave era um churrasco e não enterrá-lo no jardim, como queria sua mãe. A maneira de pensar de Keiko soava completamente inesperada, assustando as outras pessoas que não conseguiam entender sua linha de raciocínio. Para Keiko, acertar o colega com a pá e comer o passarinho morto eram as maneiras mais óbvias e sensatas de lidar com cada situação, mas seus colegas e familiares pensavam o completo oposto.

Para não ser julgada pelos outros e não deixar sua família preocupada, Keiko decide, ainda criança, mudar sua forma de agir. Ela deixa de ser espontânea em suas ações e passa a analisar as situações que vive, levando em consideração a maneira como os outros agem e recebendo conselhos de sua irmã “normal”. Quando Keiko consegue o trabalho na konbini ainda aos 18 anos, um novo mundo se abre para ela: na loja de conveniência as regras para os funcionários são precisas e claras, sem margem para dúvidas, o ambiente é controlado e a dinâmica de funcionamento é sempre a mesma. Com um manual a orientando, uniforme para usar e uma ordem de convivência para seguir, Keiko encontra um lugar onde pode relaxar, na medida do possível, sem correr o risco de parecer estranha aos olhos das outras pessoas. Observando a maneira de agir dos outros funcionários, copiando seus trejeitos, formas de se vestir e falar, Keiko se mistura à konbini e passa a sentir que é parte do grande mecanismo que faz o mundo girar.

“Do lado de fora dos vidros perfeitamente polidos, sem uma única marca de dedo, vejo as pessoas caminhando às pressas. Mais um dia começa. É a hora em que o mundo desperta e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, rodando dentro da manhã.”

Na konbini, é possível ter acesso a diversos itens e serviços: além de comprar alimentos frescos ou congelados, doces, sanduíches e bebidas, é possível também despachar encomendas para outros pontos do Japão com toda a praticidade, adquirir produtos de higiene ou até mesmo pagar contas. As lojas de conveniências, que ficam abertas 24 horas por dia, são intrínsecas à paisagem urbana do Japão e são retratadas em animes, mangás, filmes e doramas como parte da rotina de seus moradores. As konbinis nunca fecham, mesmo nos feriados, e estão espalhadas por todo o país, somando mais de 60 mil unidades em funcionamento, de diferentes redes.

Querida Konbini

Em Querida Konbini, Sayaka Murata utiliza as famosas lojas de conveniência — onde a própria autora também trabalhou — como pano de fundo para criar um retrato da sociedade contemporânea do Japão, sua maneira de lidar com o diferente e como isso reflete na vida de sua protagonista, Keiko. Ao não compreender completamente a maneira como a sociedade funciona e o que se espera dela como parte desse ambiente, Keiko se vê à margem até que começa a trabalhar na konbini. Com instruções claras e um cronograma a seguir, Keiko consegue se sentir útil, mesmo que não entenda o motivo pelo qual deva se sentir assim. Por meio de Keiko, Sayaka Murata cria um retrato asséptico da sociedade japonesa, demonstrando seus valores, seus medos e pudores, abrindo um universo a que nós, ocidentais, não estamos acostumados a associar à cultura do Japão.

“Se as pessoas acham que alguma coisa é esquisita, sentem-se no direito de invadir essa coisa para descobrir os motivos de sua esquisitice. (…) Às vezes, as pessoas me importunam tanto que tenho vontade de bater nelas com uma pá para que parem, como fiz no primário.”

A maneira de pensar de Keiko geralmente contraria as convenções sociais, e Querida Konbini usa a falta de lugar de sua protagonista para apontar alguma questões pertinentes à sociedade japonesa contemporânea como, por exemplo, a expectativa que os familiares têm com relação a casamentos, trabalho e futuro de seus membros. No caso de Keiko que, aos 36 anos, ainda é solteira, é possível lembrar da tendência que tem tomado conta do Japão nos últimos anos: o país possui uma das menores taxas de nascimentos no mundo e sua população está envelhecendo rapidamente. Em 2017, mais de um quarto dos 127 milhões de seus habitante já passava dos 65 anos de idade, e a maior parte dos jovens japoneses não demonstra interesse em sexo ou relacionamentos românticos.

Ainda que no caso de Keiko isso pareça ir além de uma simples escolha, não é possível desvencilhar Shiraha, colega da protagonista na konbini, dos chamados “homens comedores de grama”, ou soshoku-danshi, em japonês. Embora o personagem seja mais misógino e sociopata do que um soshoku-danshi por definição, é difícil não relacionar o comportamento de Shiraha com o desse grupo de homens japoneses. De acordo com Victor Hugo Kebe, estudioso da cultura japonesa, os “homens comedores de grama” são aqueles que, mesmo que se declarem heterossexuais, não estão em um relacionamento com mulheres e acham, inclusive, difícil se interessar por sexo, namoro ou casamento. Os soshoku-danshi constituem mais um dos problemas da sociedade japonesa contemporânea, contribuindo para a manutenção da taxa de natalidade em níveis baixos. No caso de Shiraha ainda é possível ver o quanto de ódio ele carrega dentro si, acreditando piamente que o universo lhe deve, entre outras coisas, uma mulher para desprezar e destratar conforme achar necessário.

“Eu queria voltar logo para a loja. Lá, as coisas não são tão complicadas. O importante é você ser um membro da equipe. Gênero, idade e nacionalidade não importam, pois ao vestir o uniforme todos se tornam Funcionários, em pé de igualdade.”

Do outro lado da moeda, no entanto, ainda há a pressão que Keiko sente para se integrar perfeitamente ao meio em que está inserida. Estar solteira não é algo visto com bons olhos pelas pessoas ao seu redor, e a pressão social que Keiko enfrenta para se casar, ter filhos e arrumar um emprego fixo a deixam exausta — uma série de atividades que devem receber “check” na lista de obrigações a serem cumpridas em uma sociedade pautada pela tradição. Suas amigas estão casadas e com filhos, assim como sua irmã mais nova, e o fato de Keiko não ter nenhuma das duas coisas a destaca — de maneira negativa, ou com olhares de pena — em seu círculo de amizades. Em Querida Konbini, Sayaka Murata não se furta às meias palavras e mostra o lado cruel de ser diferente, de não se encaixar.

Vencedora do Prêmio Akutagawa, um dos mais prestigiosos do Japão, e com mais de 700 mil exemplares vendidos em seu país de origem, Sayaka Murata cria em Querida Konbini uma trama que debate as relações de gênero e a pressão social de maneira verossímil, crua e direta. Em Keiko encontramos uma protagonista que tem dificuldades para se conectar com outras pessoas — caracterizando-a, muito provavelmente, como portadora de um Transtorno do Espectro do Autismo —, que é incrível e especial à sua própria maneira. Da mesma forma que Keiko acha difícil se comportar em situações sociais, ela pode se sentir perfeitamente integrada e parte da loja de conveniências onde trabalha, sabendo com exatidão o que deve fazer, e quando fazer, para manter a konbini funcionando com maestria. Keiko não julga seus colegas ou clientes da konbini, é focada em suas tarefas e completamente devotada ao seu trabalho. Querida Konbini não tem uma trama cheia de reviravoltas ou momentos inesperados, mas nos mostra, por meio da narrativa inspirada de Sayaka Murata — aliada à tradução de Rita Kohl —, um pouco da vida e da rotina de Keiko enquanto mescla humor à cenas bizarras, mimetizando a vida no Japão, seus ritmos e expectativas. Querida Konbini é um prato cheio para quem tem interesse em enxergar o Japão, sua cultura e sociedade, sem lentes cor-de-rosa.

O exemplar foi enviado como cortesia pela Estação Liberdade.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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