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Luis Miguel, a série: o machismo não é maniqueísta

Imagine se um Roberto Carlos de 40-e-poucos-anos autorizasse a produção de uma série biográfica depois de esconder da imprensa detalhes de sua vida pessoal por tanto tempo. Provavelmente sentaríamos com nossas mães para ver todos os episódios, né? Algo parecido aconteceu no México: a adaptação televisiva de um livro sobre o cantor Luis Miguel virou um fenômeno a ponto de impulsionar a carreira de um artista que beirava o esquecimento. Contar a história de um ícone latino dos anos 80 e 90 foi uma aposta na nostalgia. Antigos fãs relembraram o fascínio pelo ídolo e jovens puderam conhecer e entender por que aquele cantor de baladas românticas virou um mito, o sol do México. Como resultado, Luis Miguel, a série virou assunto recorrente nas redes sociais, os ingressos para os shows do artista começaram a vender mais e as músicas tão famosas no passado voltaram a fazer sucesso — antes no rádio, agora nos serviços de streaming.

Luis Miguel, também chamado de Luismi ou Micky, é um desses cantores que tem uma legião de fãs mulheres, uma voz de qualidade indiscutível e um charme como marca registrada. Ele começou a cantar profissionalmente aos 12 anos e cresceu nos bastidores da música. Vendeu mais de 70 milhões de discos e recebeu o primeiro Grammy ainda na adolescência. Mesmo com todo esse currículo, Luis Miguel não é tão conhecido no Brasil. Provavelmente pela barreira do idioma, que também pode explicar por que o sucesso da série por aqui não foi forte como nos outros países latino-americanos. Talvez você se lembre de um disco que ele gravou com músicas em português ou do seu álbum mais famoso, “Romance” (1991), com regravações de boleros mexicanos.

A história oficial sobre a evolução do artista mirim para o jovem galã foi contada em 13 episódios exibidos no primeiro semestre de 2018 pela Netflix e pelo canal estadunidense Telemundo. Luis Miguel foi interpretado por Diego Boneta e outros dois atores nas fases da infância (Izan Llunas) e da adolescência (Luis de la Rosa). A primeira temporada teve o apelo de revelar detalhes, ainda que ficcionais, da vida pessoal do cantor. Uma vida representada como uma novela mexicana com amores proibidos, ostentação de riqueza, um casal digno de comédia romântica e um vilão que todos amam odiar. Também contribuíram para o sucesso da série o esquema de liberar um episódio por semana e o grande mistério da vida de Luis Miguel: o que aconteceu com Marcela Bastieri, a mãe do cantor?

O drama é o seguinte: com o incentivo do pai que logo virou seu empresário, Luismi começou a cantar para resolver os problemas financeiros da família. Luis Rey (Óscar Jaenada), o pai, era um cantor que também começara a trabalhar muito cedo mas já não tinha mais espaço no mundo da música. Vendo o filho fazer o sucesso que ele nunca fez, passou a exigir de forma questionável um rigor e uma dedicação de uma criança. Marcela (Anna Favella) observa preocupada a evolução da carreira do filho, principalmente quando ele abandona a escola, mas não pode fazer muita coisa porque não tem poder algum na estrutura familiar. O marido não permite que ela trabalhe nem quando ele já não consegue sustentar a casa e depois não deixa que ela opine na carreira de Luis Miguel porque, para ele, o lugar dela é em casa, limpando, cozinhando e cuidando do filho mais novo.

No enredo do casamento dos pais de Luismi, a série alcança o auge de seu maniqueísmo, característica marcante de todas as novelas. Ainda que não seja a protagonista, Marcela é a mocinha oprimida pelo marido, impedida de participar da vida do filho, oferecida como um bibelô para que Luis Miguel consiga uma certa oportunidade de trabalho, culpada quando qualquer aspecto da carreira dele não sai como o esperado e, além de tudo isso, é traída sistematicamente. Luisito Rey ocupa tão bem a posição de vilão que é até difícil se deixar comover pelos momentos em que ele demonstra carinho pelo filho, como quando o ajuda a resolver problemas relacionados à mudança da voz dele no começo da adolescência.

Assim, Luis Rey só aparece como o pai que explora o filho, como o homem ganancioso que não se importa com ninguém e faz o que for preciso para alcançar seus objetivos (principalmente os financeiros) e como o marido controlador que destrata Marcela em tantas cenas. A série alterna entre esse passado de início da carreira de Luis Miguel, quando o casamento de seus pais estava em crise, e um presente em que Luismi já é uma celebridade reconhecida internacionalmente que finalmente percebe que estava sendo manipulado pelo pai o tempo inteiro. O protagonista está no começo da vida adulta, tenta tomar o controle da própria carreira e aproveita os privilégios da fama, claro. Aos poucos, percebemos que nem o irmão mais novo e nem a mãe fazem parte da vida cotidiana de Luis Miguel. Alex (Juanpa Zurita), o caçula, está num colégio interno nos Estados Unidos. Mas a pergunta “onde está Marcela?” não é respondida facilmente. Ela morreu? Abandonou os filhos? Fugiu sem deixar rastros?

No ensaio “Culpable o no, publicado na Revista AnfibiaCarolina Spataro e Malvina Silba escrevem que o desaparecimento da mãe de Luis Miguel é contado sob a ótica de uma “lente violeta” que amplifica a percepção do contexto de violência doméstica na vida de Marcela. De fato, em outros tempos o casamento dela com Luis Rey poderia ser visto como uma relação “normal” que passava apenas por algumas dificuldades, e é preciso reconhecer que todo o debate público atual sobre feminismo facilita a identificação de relacionamentos abusivos como o retratado na história. O problema é que o tom da série é tão maniqueísta que deixa a impressão de que Luis Rey é o único personagem ruim de todo o seriado, talvez de todo o México. Ele reúne tudo o que há de ruim no mundo, toda a ganância, toda a desonestidade e inclusive todo o machismo. Rotular um personagem como O Homem Opressor parece, nesse caso, uma artimanha para amenizar o comportamento machista do resto do elenco masculino. Em comparação, ninguém é tão ruim quanto Luis Rey, e isso faz com que nenhum olhar problematizador caia nos outros personagens homens e principalmente em Luis Miguel, como se ele realmente fosse um mocinho perfeito, o galã impecável. Ou, pior, como se tudo o que ele faz de errado fosse culpa do vilão, o pai explorador e machista.

É claro que a versão dos fatos ali contados passaram sob alguma forma de crivo do próprio Luis Miguel, que provavelmente não teria concordado com um projeto que prejudicaria sua imagem pública. O cantor já esteve envolvido em escândalos suficientes, processado por antigos empresários ou tendo que cancelar shows por não estar sóbrio o suficiente para se apresentar. E a maquiada nos fatos fica óbvia quando vem à tona o rumor de que ele teria uma filha não assumida de um antigo relacionamento. Questionado pela então namorada Erika (Camila Sodi), Luis Miguel desconversa como se não tivesse nada a ver com a história porque ainda era um homem muito jovem, estava no começo da vida e não deveria ter esse tipo de preocupação. Depois de ver uma foto da criança, não demonstra muito interesse pela menina e o assunto se encerra numa cena que era pra ser comovente, quando o empresário do cantor fala que ele daria um bom pai e Luis Miguel se emociona ao considerar a opção de reconhecer a filha.

Mesmo com toda essa diferença de tratamento dos comportamentos machistas de alguns personagens, a série ao menos dá um bom exemplo ao mostrar lados vulneráveis do mito Luis Miguel enquanto homem famoso sedutor: quando ele se apaixona, quando sofre com saudade da mãe, quando se distancia do pai ao perceber que ele era uma pessoa tão egoísta e interesseira. Ao longo da história, dá pra perceber como o personagem tenta lutar contra essas emoções porque um homem não deveria se deixar abalar por questões sentimentais ainda que, na esfera pública, ele cante sobre amores não correspondidos e traições. “Qué pena, nuestra historia pudo ser fantástica. Y ahora dime mi amor: ¿quien te va a defender?”

Na TV, essa retração emocional de Luis Miguel aparece como uma consequência de se crescer num ambiente contaminado pela masculinidade tóxica, com aquele clichê de ter a primeira relação sexual com uma garota de programa arranjada pelo pai, por exemplo. Uma das poucas explicações plausíveis para que ele tenha tanta dificuldade de enfrentar o desaparecimento da mãe como um problema familiar urgente é que ele aprendeu desde cedo que um homem não deve se deixar abalar com esse tipo de preocupação doméstica. E, assim, não deveria demonstrar a fraqueza de sentir falta de Marcela mesmo depois da separação conturbada dos pais, quando lá pelos 16 anos teve que escolher entre ficar com a mãe e os irmãos ou com Luis Rey, o pai-empresário que controlava sua carreira musical.

Se a vida de Luis Miguel realmente foi dessa forma, ele poderia ter dado um depoimento interessante para The Mask You Live In, documentário de Jennifer Siebel Newsom sobre como as noções de masculinidade são prejudiciais aos homens por incentivar a reprodução de um comportamento frio, violento em algum nível, de isolamento emocional. O cantor poderia falar sobre como fugia das conversas com o irmão Alex sobre a mãe deles e sobre como evitava até telefonar para os familiares na Itália ou na Argentina para saber se alguém tinha ideia do paradeiro de Marcela. Em resumo, sobre como tinha medo de encarar o problema de frente para evitar o próprio sofrimento.

O adolescente Micky realmente não tinha boas referências masculinas e estava inserido num mundo quase exclusivamente de homens. Na série, são poucas as personagens mulheres bem desenvolvidas, que chegam perto de assumir um papel relevante na história. Daria para dizer que Marcela é a única que apresenta tantas nuances, e até ela logo desaparece. Talvez se possa mencionar também Mariana Yazbek (Paulina Dávila), a primeira namorada do protagonista. Uma fotógrafa profissional, que tinha uma vida social independente e questionava as ações do namorado. É ela quem abre os olhos de Luis Miguel para as manipulações orquestradas pelo pai dele até que o relacionamento termina por obra indireta do super-vilão Luisito Rey. No final das contas, ela aparece apenas nos episódios iniciais.

De qualquer forma, houve uma falha na representação do conservadorismo da indústria musical do México naquela época, algo bem feito no mundo publicitário na Nova York de Mad Men, série que retratava um quadro similar. É claro que as principais posições da indústria estavam ocupadas por homens, mas e onde estavam as pioneiras, as secretárias, as cantoras? A maioria das mulheres que aparecem de forma recorrente são as esposas que recebem os maridos em casa, são parentes distantes, são as mulheres que não passam nem cinco minutos na vida amorosa de Luis Miguel. A exceção é Rosy Esquivel (Vanessa Bauche), que trabalha na equipe que gerencia a carreira de Micky, mas ela é retratada o tempo inteiro como se estivesse assumindo um papel de segunda mãe para ele. Como se ela só existisse pelo instinto maternal. Na verdade, a série escancara todo um lado conservador e de privilégios no México que chega a afetar a narrativa. Por exemplo, os personagens que interpretam empregados domésticos são os únicos com traços indígenas e eles têm pouco ou nenhum destaque na trama, assim como boa parte das mulheres.

Como o cantor teve e continua tendo o seu sucesso ancorado no público feminino, era de se esperar que as personagens mulheres tivessem uma maior importância para o desenrolar da história. Uma pequena homenagem às fãs aparece no capítulo “La chica del bikini azul (sim, cada episódio recebeu o nome de um hit do cantor), quando uma aficionada de Luis Miguel ganha um concurso para assistir a um show a partir do backstage e ali consegue se camuflar entre as mulheres que participariam de uma festa privada na casa do próprio artista. Maravilhada, ela mal consegue falar de tanta emoção ao ver o ídolo de perto e acaba invadindo o banheiro onde ele estava tomando banho numa cena agradável para os admiradores do ator principal. Ainda que tenha um desfecho dramático, o episódio é divertido por nos fazer sonhar com a chance de conhecer o artista da preferência de cada um, celebrando a experiência de ser fã.

Afinal, o que Luis Miguel, a série tem de melhor é o material de fofoca sobre um artista internacional, com direito a um bom drama familiar e à oportunidade de dar uma olhada na elite mexicana, essa que tem casas de veraneio em Acapulco e ignora os problemas da sociedade. Em entrevista ao New York Times, Diego Boneta disse que a melhor parte da série é que ela retrata outra parte do México que não o narcotráfico de forma a ampliar a percepção que se tem sobre o país. Não que o seriado seja propaganda oficial, mas é uma história de sucesso sobre o melhor cantor latino de todos os tempos (palavras do ator, que passou cerca de dois anos no personagem). Uma história de fundo positivo como A Casa das Flores, também da Netflix mexicana, e que é uma opção para dar continuidade a uma maratona latino-americana.

5 comentários

  1. um adendo ao primeiro parágrafo: Luis Miguel é um nome conhecido no Brasil pra quem tem idade e memória para lembrar da novela Deus nos Acuda (de 1992) e o hit La Barca, uma música que tocou incesantemente nas rádios porque era tema do casal protagonizado por Claudia Raia e Edson Celulari. eu tinha uns 4 anos e provavelmente foi a primeira letra em espanhol que eu decore. (a outra foi corazón partío, heh).

  2. Querida Jornalista,
    O Luís Miguel foi e é bastante conhecido no Brasil, Basta lermos sobre todos os prêmios dele, para chegarmos à conclusão de que ele é sim, um dos maiores cantores latinos da história e não são palavras do ator, que também é um dos produtores da série. Portanto, se a história é baseada no que o próprio cantor, contou quem somos nós para duvidar? A série retrata a época, que era bem mais machista. Então, não da pra imventar só para agradar as feministas.

  3. Poxa,Luís Miguel é super conhecido no Brasil,foi no Chacrinha quando criança e no gugu quando jovem.suas musicas fizeram muito sucesso nas novelas deus nos acuda e salsa e merengue com a música Dame,que tocava muito nas rádios nos anos 90.

  4. non me platiques más, na novela Kubanacan também. Amo Luis Miguel e ele é bem conhecido aqui sim!!

  5. A série retrata uma época, num determinado país. Na ótica de quem viveu tudo na pele. Então, não dá para achar isso ou aquilo. Deveria ser assim, ou assado. Vamos aceitar e respeitar a vida do outro. Quer isso agrade ou não.
    Luis Miguel é bem conhecido aqui no Brasil sim ! Mas não para todo e qualquer público!

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