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A Assombração da Casa da Colina: o terror psicológico de Shirley Jackson

A Assombração da Casa da Colina esteve ausente das prateleiras das livrarias brasileiras por muitos anos. Um livro difícil de ser encontrado devido suas edições esgotadas, finalmente retorna em capa dura e lançado pela Suma de Letras, editora responsável também pela reedição de Sempre Vivemos no Castelo, ambos escritos por Shirley Jackson. A autora é considerada uma das mais notáveis escritoras norte-americanas e foi responsável por influenciar toda uma geração de escritores, de Neil Gaiman a Stephen King.

Shirley Jackson é vista como “herdeira” direta de Edgar Allan Poe e do gótico norte-americano e, ainda que tenha tido uma vida breve, deixou inúmeros trabalhos concluídos e de incrível sucesso. Seu primeiro livro lançado, em 1948, The Lottery, a fez alcançar a fama na mesma medida em que dividiu a opinião dos leitores, mas isso não impediu Shirley de continuar escrevendo — ao total ela produziu mais de 55 contos que foram reunidos, ao longo dos anos, em diversos volumes encadernados e coleções. Suas obras mais famosas são exatamente as duas reeditadas recentemente no Brasil, Sempre Vivemos no Castelo, cuja publicação original data de 1962, e A Assombração da Casa da Colina, publicado em 1953 e transformado em filme estrelado por Catherine Zeta-Jones em 1999, e em série lançada recentemente pela Netflix com Carla Gugino encabeçando o elenco, A Maldição da Residência Hill.

“Passado os portões enferrujados e cercas não aparadas, a Casa da Colina medita e aguarda.”

A premissa de A Assombração da Casa da Colina é bastante simples: quando Eleanor recebe uma carta do Dr. Montague convidando-a para passar um tempo na Casa da Colina, a mulher não pensa duas vezes antes de aceitar o convite. Conhecida por suas manifestações fantasmagóricas, a Casa da Colina não é vista com bons olhos pelas pessoas que moram próximas a ela, e lendas a respeito dos atos de violência que aconteceram na casa são famosas entre aqueles que vivem na pequena comunidade próxima à casa. A ideia do Dr. Montague é justamente pesquisar se o sobrenatural existe e para tal ele convida, além de Eleanor — que durante a infância passou por uma experiência sobrenatural —, também Theodora, uma sensitiva, e Luke, parente dos donos da Casa da Colina.

A partir de então, o grupo formado pelos quatro aventureiros chega à Casa da Colina para passar uma temporada com o intuito de comprovar se a residência é mesmo assombrada pelos fantasmas de seus antigos moradores, tentando, enquanto isso, documentar suas manifestações. Se no início o tempo que os quatro hóspedes passam na Casa da Colina é regado à diversão e bem-humoradas explorações, as coisas começam a mudar quando portas se fecham sozinhas e barulhos assustadores tomam conta da casa durante a madrugada. O que parecia uma inocente aventura logo é capaz de transformar os piores pesadelos de seus hóspedes em realidade, evidenciando o quanto as vidas — e a sanidade — de cada um dos quatro aventureiros está em risco.

“O medo é a renúncia da lógica, a renúncia voluntária de padrões sensatos. Ou cedemos a ele ou lutamos contra, mas não nos é possível encontrar um meio-termo.”

A Assombração da Casa da Colina é considerada uma das melhores histórias de terror do século XX, serviu de inspiração para muitos outros autores e foi descrita pelo The Guardian como “a história definitiva sobre casas mal-assombradas”. O que faz de A Assombração da Casa da Colina um livro tão assustador quanto clássico está muito mais ligado aos seus personagens, e nas lutas internas que travam contra o horror que enfrentam, do que na casa assombrada em si — ainda que ela atue como um personagem à parte. Com sua arquitetura peculiar, paredes erguidas em ângulos tortos, torres e escadarias repletas de segredos e que somem dependendo da perspectiva que se observa a construção, a Casa da Colina é feita para ser perturbadora e igualmente bizarra. Os hóspedes se perdem facilmente em seus inúmeros corredores e cômodos, e a própria fachada da casa é capaz de despertar calafrios em quem a observa por muito tempo. Shirley Jackson não escreve uma história baseada no jumpscare — técnica que filmes e jogos de videogame costumam usar sem critérios para assustar, o que cai no óbvio —, mas sim nos medos e paranoias que nascem em cada um dos quatro hóspedes da Casa da Colina, e como eles lidam com o que os assombra a cada noite.

Shirley Jackson não entrega sua história logo de início mas vai, aos poucos, construindo um enredo que entrelaça leitor e personagens em um mistério que pede para ser desvendado ainda que deixe muitos questionamentos ao final de suas pouco mais de duzentas páginas. Portas que se fecham sozinhas, cômodos que são mais frios do que outros pontos da casa e passos ecoando nos corredores durante a madrugada fazem com que Eleanor e companhia sintam, muito mais do que vejam, que há alguma coisa presente na casa além deles. A Assombração da Casa da Colina tem sua tensão construída uma página por vez, tornando impossível para o leitor soltar o livro antes de desvendar o mistério que ali habita. Se no início dessa jornada Dr. Montague, Eleanor, Theodora e Luke agem como bons amigos, os relacionamentos mudam de tom quando a atmosfera opressiva da casa começa a atuar sobre eles, levando-os a duvidar uns dos outros e do que acreditavam ser real.

“A gente nunca sabe de onde está vindo a nossa coragem.”

A maneira como Shirley Jackson constrói sua história, capítulo por capítulo, nos faz elaborar teorias sobre o que está, de fato, acontecendo na Casa da Colina, e esse é um dos pontos mais positivos de sua obra. Mesmo que eu não tenha sentido medo durante a leitura, a vontade de desvendar o mistério que cerca a Casa da Colina é o suficiente para seguir virando as páginas — em determinado momento, a narrativa nos faz questionar o medo e a sanidade dos personagens, e até que ponto os acontecimentos estranhos que tomam forma são feitos da casa em si ou da mente de seus hóspedes. A linha que separa realidade de imaginação em A Assombração da Casa da Colina é bastante tênue — estaria o medo sentido por Eleanor, Theodora, Luke e Dr. Montague espelhando o que acontece na Casa da Colina ou é a própria casa causando medo em cada um deles? Shirley Jackson é capaz de construir essa atmosfera de dúvida com maestria, nos fazendo questionar os fatos até o último momento.

Com personagens que não são nem completamente bons ou maus, uma casa bizarramente construída e coisas estranhas acontecendo nos corredores, Shirley Jackson consegue montar uma história de fantasmas e assombrações fora do comum. Aqui não sentimos um medo cru e visceral, mas nos pegamos pensando a respeito da sanidade de cada um dos hóspedes da Casa da Colina, tentando compreender a linha que separa o real da fantasia. Lembrando que a autora coloca a deixa logo no capítulo inicial:

“Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta”. 

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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