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Sempre Vivemos no Castelo: até onde um refúgio pode proteger quem nele reside?

Desde que comecei meu passeio pela literatura americana, não me lembro de ter ouvido falar uma única vez o nome de Shirley Jackson, o que neste momento eu tomo por uma falta muito grande, visto que seu último livro, Sempre Vivemos no Castelo, publicado em 1962, não pode ser descrito de outra forma senão impressionante. A autora americana foi amplamente reconhecida ainda em vida; suas obras são tópico de estudo na literatura americana pela sua peculiaridade temática e narrativa, além de ser notadamente uma das influências de autores como Neil Gaiman e Stephen King, só para citar alguns nomes.

Com essa apresentação nos resumos biográficos espalhados pela internet e na contracapa dos seus livros, é impossível não ter a atenção chamada para essa autora, construindo algumas questões: onde ela esteve por todos esses anos quando não na sua prateleira, e por quê não vemos mais livros dela traduzidos por aí?

Jackson era casada com o crítico literário Stanley Edgar Hyman, e por muitos anos o trabalho deles era complementar um ao outro. Mas Hyman, segundo os biógrafos da autora, era um marido infiel e sujeitava Jackson a aceitar seus casos extraconjugais calada. Somado a isso, Shirley Jackson sofria de obesidade e crises de ansiedade severas, tendo desenvolvido agorafobia por alguns anos de sua vida. Os medicamentos que tomava para tratar as duas doenças conflitavam entre si, e hoje especula-se se isso não contribuiu para a morte precoce da autora por complicações cardíacas quando ela tinha apenas 48 anos. O ponto, ao levantar o contexto da vida de Jackson durante seus anos de produção, está na reflexão do quanto sua visão perante a própria vida influenciou seus contos e livros.

O parágrafo introdutório de Sempre Vivemos no Castelo, por exemplo, apresenta a narradora e protagonista de uma maneira curta e grossa: “Meu nome é Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. […] Todo o resto da minha família morreu”. A maneira como Mary Katherine se apresenta e emenda a informação da morte da família indica que ela não esboça sentimento algum sobre o fato. É uma introdução que coloca o leitor de imediato na posição desconfortável de seguir uma história conduzida por uma heroína não confiável (ou, melhor dizendo, anti-heroína), mas que ainda assim é atraído por tamanha sinceridade a respeito daquilo que a cerca.

Atenção: este texto contém spoilers!

Merricat mora com sua irmã mais velha, Constance, e seu tio inválido, Julian, no casarão dos Blackwood. Desde o incidente que matou o resto da família — os pais das moças, o irmão caçula e a esposa de tio Julian —, os três vivem isolados, seguindo a rotina doméstica que harmonizaram. A única que sai dos limites da propriedade é Merricat, que vai até o vilarejo uma vez por semana para comprar mantimentos e devolver os livros que pegou emprestado da biblioteca. Mas os habitantes não gostam da família Blackwood — abastados, eles faziam o que podiam para manter os habitantes longe da grande propriedade, e quando vivo, o pai das moças inclusive limitou o acesso da trilha que cortava caminho até o vilarejo — e por isso sempre que viam Merricat em público as crianças zombavam dela e do ocorrido com a família dela enquanto os adultos trocavam olhares e cochichos por trás de suas costas. No entanto, a menina mantinha o orgulho, e embora desconfortável, nunca se desviava ou demonstrava estar chateada. Muito pelo contrário, o único sentimento que ela tinha que reprimir era o de desejar que todas aquelas pessoas estivessem mortas.

E ela repete isso várias vezes ao longo do livro. Todos aqueles que a incomodavam ou à Constance ou ao tio Julian deveriam cair mortos para que ela pudesse caminhar por cima de seus corpos. Tão assombroso quanto pode ser, quando está protegida entre as paredes de sua casa, esse lado da personalidade da protagonista é apaziguado, e Merricat é, na maior parte do tempo, afetuosa com sua irmã e seu gato de estimação chamado Jonas, ao mesmo tempo em que se esforça para ser gentil com o tio Julian, já em estado senil. Às sextas-feiras, uma antiga “amiga da família”, Helen Clarke, se juntava a elas para tomar o chá da tarde e ocasionalmente trazia alguma companhia. Das poucas vizinhas que visitavam os Blackwood remanescentes, Merricat acreditava que o faziam por senso de obrigação, mas ela era instruída a se portar bem e cumpria seu papel durante a visita, mas não sem sutis provocações às senhoras — coisas que normalmente apenas Constance notava.

Na ocasião em que Helen Clarke visitou as moças junto a Sra. Wright foi que os detalhes sobre o assassinato em massa da família vieram à tona: em meio à cordial conversa, tio Julian começou a falar sobre a fatídica noite em que todos os membros da família foram envenenados com arsênico posto no açúcar que usaram para comer a sobremesa; Merricat se salvou por ter sido mandada para o quarto sem jantar, Constance por não fazer uso de açúcar, e tio Julian por não ter ingerido uma quantidade suficiente para matá-lo, apenas para deixar sequelas em sua saúde. Durante os seis anos que se seguiram, a obsessão do senhor era registrar cada detalhe sobre aquele dia, e assim ficamos sabendo do período em que Merricat passou no orfanato, enquanto Constance era julgada como suspeita de assassinato, sendo posteriormente absolvida e liberada para retornar para a casa de onde nunca mais saiu, sendo essa uma das semelhanças que a personagem tem com a autora. Só que como toda essa história é contada pelo personagem com suas faculdades mentais alteradas, ficamos sem acreditar nela inteiramente, e essa é uma das características marcantes da construção narrativa de Jackson.

A verdade é que apesar da boa intenção que essas vizinhas tem para com as moças Blackwood, elas nunca estão completamente confortáveis em manter contato com a família estando o caso do suposto homicídio tão palpável na atmosfera daquele lugar. Tampouco Constance e Merricat fazem questão de voltar a se integrar na sociedade. O único desejo de Constance é superar sua agorafobia, o que acaba sendo justamente o maior medo de Merricat, pois isso representa uma das mudanças que ela teme, uma das mudanças das quais ela protege seu lar atribuindo magia de proteção em palavras secretas e objetos pendurados em árvores. Merricat faz o que está a seu alcance para proteger a irmã mais velha de retornar à sociedade, mas não consegue, por outro lado, impedir que visitantes indesejados entrem em sua casa — como, por exemplo, seu primo Charles, que chega para, supostamente, ajudar as moças, mas apresenta outras ambições nada respeitáveis.

A hostilidade de Mary Katherine aflora desde o primeiro momento, e ela faz de tudo para mostrar o quanto a presença do primo é indesejada, agindo muitas vezes de forma psicopata e infantil. Constance, por sua vez, é incapaz de enxergar a dúbia intenção da visita de Charles, além de não ser capaz de controlar o temperamento da irmã — dois extremos que causam o desequilíbrio da rotina pacífica que outrora elas tiveram. Embora seja a irmã mais velha, a extrema passividade mesclada à doçura da personalidade de Constance a deixa à mercê daqueles que a cercam, enquanto tio Julian nada pode fazer por estar fora do fogo cruzado nesse conflito.

Sempre Vivemos no Castelo é um livro peculiar de várias maneiras. Embora tenha um assassinato na base da construção narrativa, ele não é essencialmente um livro policial. Embora o ar de mistério permeie a obra, não se trata de algo que precise ser solucionado, uma vez que o crime ficou no passado; não, o mistério está intrinsecamente ligado às personagens. A história que lemos é centrada em Mary Katherine e Constance Blackwood e suas personalidades complexas, cujo passado que possivelmente traria as justificativas para o comportamento de ambas não faz parte da narrativa, então resta-nos especular. Merricat não tenta disfarçar por um minuto o lado perverso do seu caráter, mas ao mesmo tempo não é dado ao leitor motivos diretos para temê-la — até onde acreditamos, ela pode ser só uma menina mimada fazendo ameaças da boca para fora. Contudo, a história é escrita de forma que também não podemos descartar nada. Quando os fatos são esclarecidos, a sensação que temos não é de grande revelação, mas de confirmação de uma hipótese.

O desfecho da história revela que as irmãs preferem, literalmente, viver nas ruínas de sua vida do que se abrir às pessoas e aceitar qualquer mudança. No mínimo, o livro traz à tona a reflexão sobre até que ponto estamos certos em fincar nossas escolhas àquilo que é familiar para que algo pareça imutável mesmo que não seja. As definições de felicidade e lugar perfeito é subjetiva a cada um, e está além do alcance de outrem convencer o contrário.

Tomando contato sua obra, acaba não sendo uma surpresa o fato de Shirley Jackson estar inclusa na lista de influências de muitos escritores notórios da atualidade. A identidade literária da autora carrega uma fórmula única: Shirley Jackson não ousa mascarar a temática, não ousa disfarçar a índole de sua anti-heroína para tentar enganar o leitor (o que faz com que o leitor fique desconfiado por si mesmo), e não ousa deixar de usar elementos incomuns em sua história mesmo que eles tornem-a um tanto estranha. E que bom que ela faz isso, pois, me atrevo a dizer, tudo isso dá sentido ao fato de suas obras estarem imortalizadas.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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