Em 2017, morreu aquele que muitos consideravam uma “lenda”, um grande “bon vivant”, um “mito”: Hugh Hefner, empresário, dono e idealizador da revista Playboy. O dito revolucionário da liberdade sexual enfim descansou seu corpo depois de 91 anos de álcool, charutos, drogas, festas e mulheres. Todos queriam ser Hugh Hefner — ou reproduzir seu estilo de vida. Após sua morte, sua figura foi enaltecida inadvertidamente pelos que aqui ficaram. Ou, ao menos, por aqueles que não têm uma vagina entre as pernas.
Ao longo de sua vida, Hugh Hefner cativou a admiração e o carinho de diversas esferas da sociedade. Para os homens, ele ofereceu um meio de extravasar seus desejos sexuais no conforto de seus banheiros e quartos. Ensinou-os a “ler com uma mão só”. Em 1955, o editor advogou pelos direitos LGBTQ+ ao publicar uma ficção científica assinada por Charles Beaumont sobre uma sociedade em que heterossexuais eram perseguidos em um mundo homossexual. O conto, escandaloso para a época, poderia colocar em risco sua revista que mal havia decolado, mas a ideia de revolução sexual era mais importante para ele.
Parte da população negra também viu no trabalho de Hefner um espaço de aceitação e conforto. A seção de entrevistas (que deu origem a uma piada que perdura até hoje sobre como as pessoas compram Playboy para ler e não para ver) estreou em 1962, com a lenda do jazz Miles Davis. A conversa foi conduzida por Alex Haley, que mais tarde escreveria livros importantes sobre a participação do negro na história americana.
Também foi celebrado o espaço que a Playboy deu para escritoras mulheres, como Margaret Atwood e Ursula K. Le Guin, assim como a defesa dos direitos reprodutivos feita pela publicação, que sempre advogou a favor do uso da pílula e publicou o seu primeiro artigo a favor da legalização do aborto em 1965, oito anos antes de a Suprema Corte Americana reconhecer esse direito. A militância da revista e sua visionária abordagem editorial, ao lado da posição de aliado que Hugh Hefner reivindicou para si nas lutas dos movimentos negro e LGBTQ+, são argumentos fáceis para quem quer defendê-lo daquelas que questionaram o seu endeusamento post mortem.
Reza a lenda que, aos vinte e poucos anos, após a publicação dos dois primeiros relatórios Kinsey sobre a sexualidade humana, Hugh Hefner estava fascinado pelo sexo como tema. Mas ele não inventou nada, apenas foi visionário o suficiente para apostar nisso e transformar um empréstimo de 8 mil dólares em um império. Ou seja, ele agiu como um bom “jovem empreendedor”: teve a sensibilidade para perceber o zeitgeist de uma época e monetizá-lo.
A sacada de Hefner foi resgatar a pørnografia do submundo e sequestrar o nu das galerias de arte. Ele construiu seu império pørnográfico e irreverente sobre as curvas bem delineadas de suas coelhinhas. Em sua jornada pela revolução sexual, tirou a pørnografia das sombras e a levou para a conversa do almoço do domingo, fazendo com que a nudez à serviço da libido se transformasse em mainstream. No entanto, Hefner jamais normalizou a vida sexual. Ele trouxe as fantasias puritanas para as bancas de jornais, ajudando a vendê-las ao apoiar a pílula e o aborto, maneiras de suprimir a punição divina para o sexo fora do casamento em forma de uma gravidez indesejada.
Não foi só uma fantasia sexual que Hefner ajudou a vender. O que também estava a venda era o seu estilo de vida, o novo modelo para uma geração que começava a frutificar no pós-guerra — a “sociedade romântica” de Hefner, se você preferir. A masculinidade no american way of life estava à venda a apenas alguns (ou muitos) dólares de distância: nos carros, nas bebidas, nos cigarros. E, é claro, nas mulheres curvilíneas com um curioso rabinho de coelho. Hefner doutrinou homens a vestirem-se bem e a nutrir gostos elegantes, tudo para poder conquistar as mulheres deslumbrantes que estampavam as páginas duplas do meio da revista.
Mas e quanto às mulheres supostamente celebradas nas páginas centrais da Playboy? E quanto à ode ao corpo perfeito e curvilíneo impossível de se atingir reproduzida nas páginas da revista? E a objetificação de suas figuras, que acabaram se tornando sinônimo de vulgaridade e indignas de respeito? Qual parte da sexualidade delas foi incentivada?
As aspirantes a coelhinhas pareciam ter em suas mãos o poder de escolher seus destinos e o que fazer com seus corpos. Na verdade, elas eram submetidas a maus tratos e falta de respeito. Uma matéria do Washington Post, de 2007, mostra que um número desproporcional de playmates morreram jovens, de overdose, suicídio e outras causas não naturais.
Décadas antes dessa publicação, a ativista Gloria Steinem já alertava para a realidade das chamadas “coelhinhas” — “coelhinhas de chocolate”, se fossem negras. Como jornalista freelancer, ela pôde desvendar o lado podre dos Playboy Clubs, os clubes do bolinha idealizados por Hefner. Steinem foi contratada na unidade de Nova York, onde descobriu que as garotas eram mal pagas, obrigadas a entregar parte de suas gorjetas, e forçadas a usar corsets dois números menores como parte da fantasia de coelhinha que há mais de 60 anos vive no imaginário ocidental — Hefner foi um dos responsáveis por as pessoas ainda acreditarem, no século XXI, que um espartilho super apertado confere à mulher sua melhor silhueta.
Depois de sair da mansão de Hefner e se recuperar da severa depressão que desenvolveu lá dentro, Holly Madison, que foi uma de suas namoradas no início dos anos 2000, passou a se considerar uma “feminista-renascida”. “Eu não posso me chamar de feminista, ou as pessoas vão me atacar por isso, dizendo ‘como você pode ser feminista, você viveu com Hugh Hefner!’ Mas eu sinto que vem uma hora na vida de cada mulher quando você tem para se tornar feminista”, afirmou em entrevista ao Buzzfeed, em 2015.
Em seu livro de memórias, Down the Rabbit Hole: Curious Adventures and Cautionary Tales of a Former Playboy Bunny, Holly contou o que passou ao lado de Hefner em seus tempos de coelhinha, de 2001 a 2008. Ela afirma que Hefner distorcia os limites do sexo consensual ao persuadir suas namoradas a ingerir drogas antes de participar de orgias com ele. Claro que poderiam haver mulheres que se sentiam a vontade com aquela situação e não há nada de errado no estilo de vida poliamorista que ele promovia — desde que usufruído por todos os lados da relação em condições de igualdade. Mas Holly e outras garotas que viviam na mansão afirmaram inúmeras vezes que o sexo com Hefner era parte de um acordo não dito, um preço a ser pago pela comida, pelas roupas e pela potencial carreira que poderiam — ou não — iniciar a partir dali. Com um toque de recolher marcado para às 21h, muitas delas relataram que a vida na mansão da Playboy era uma verdadeira prisão.
No livro, Holly desconstrói o sonho de morar na mansão: Hefner podia se envolver com outras mulheres, mas elas, não. O empresário manipulava as companheiras para que se voltassem umas contra as outras, criando um clima de instabilidade e cheio de intrigas, simplesmente para ter o poder na relação. As namoradas estavam autorizadas a sair da mansão desde que voltassem antes das 21h e que passassem o tempo fora do local em salões de beleza e fazendo compras, para manter a aparência loira, magra, depilada e siliconada, de acordo com a preferência do magnata.
Nem quando trabalhavam fora dessa rotina, Holly, Bridget Marquardt e Kendra Wilkinson, suas outras duas namoradas na época, eram reconhecidas: segundo a primeira, apesar de serem as estrelas do reality show The Girls Next Door, lançado pelo canal E! em 2005, elas não foram remuneradas pela primeira temporada.
O programa veio a ter seis temporadas e foi a forma de Hefner, usando a imagem das três mulheres, trazer o império da Playboy uma vez mais para o mainstream. Com a popularidade do reality, produtos com o logo da marca se tornaram itens da moda e a própria revista, com ensaios de Holly, Bridget e Kendra, passou a ser mais vendida. The Girls Next Door teve seis temporadas, ao longo das quais Hefner teve seis namoradas, duas delas irmãs gêmeas, então com 19 anos. Desde que fossem jovens, loiras e bonitas, as namoradas eram substituíveis — por outras ainda mais jovens, mais loiras, mais bonitas. Não surpreende que Hefner repudiasse o movimento feminista. Em um memorando interno feito nos anos 70, que veio a público, ele escreveu: “Essas garotas são nossas inimigas naturais. O que eu quero é uma reportagem devastadora que separe as feministas militantes. Elas se opõe totalmente à sociedade romântica que a Playboy promove.”
Em entrevista para John Heilpern, publicada em 2010 pela Vanity Fair, Hugh Hefner não hesitou ao afirmar que as mulheres são objetos. De fato, graças à Playboy, alguns tabus sexuais hoje caíram por terra, mas não podemos deixar que isso nos impeça de enxergar que algumas coisas não mudaram. Em qualquer vídeo pørnográfico, o ponto de vista é o do homem. Hefner não fez nada de libertador para a sexualidade feminina, ele só fez com que ela trocasse de mestre — da reprodução, nosso corpo passou a servir ao entretenimento masculino.
O nosso comportamento também passou a ser avaliado por esses parâmetros. Numa era em que muitos acreditam que o feminismo foi superado, mulheres podem ter uma vida sexual ativa, mas desde que sempre depiladas e com o peso controlado; aprendam a fingir orgasmos ao mesmo tempo em que sabem 37 maneiras diferentes de fazer o homem gozar; vão a clubes de strip para se divertir (lembrando, é claro, que são só mulheres que se apresentam) e beijam as amigas só porque é engraçado (desde que haja um público masculino a ser entretido). Sejam todas muito bem-vindas ao que a escritora norte-americana Ariel Levy chamou de “raunch culture”, ou a cultura do vulgar. Não precisamos nem nos atentar ao coelhinho da Playboy em pingentes e perfumes pra saber que sim, Hugh Hefner ajudou a moldar a cultura do século XX, deixando uma herança sentida até hoje. Só resta saber em benefício de quem.
Isabela Moreira, tão louca por cultura pop que alguns amigos a chamam de IMDB. Queria ser um pouco mais Lorelai, mas na verdade é uma mistura entre Paris Geller e Jim Halpert. Atualmente escreve sobre ciência, cultura e comportamento para a revista Galileu e sobre feminismo e cultura pop em sua newsletter pessoal, Reprisa.
Nina Finco, jornalista de cultura, psicóloga de boteco, encrenqueira de fila longa. Queria poder dobrar o tempo para conseguir terminar o sem-número de tarefas que inventa de começar ao mesmo tempo. Diz que não acredita em signo, mas não perde a oportunidade de usar uma desculpa astrológica.
Odhara Caroline. Escritora. Continua sendo jornalista do mesmo jeito que continua acreditando em coisas boas — só de birra. Adora se apropriar de xingamentos dizendo que é feminazi, persegue cachorros na rua, explica tudo o que faz com base no mapa astral, sempre acaba fazendo drama demais e pedindo desculpas depois. Como boa millennial, não tem a menor ideia do que tá fazendo com a própria vida.
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