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Dare Me: uma obra sobre os sacrifícios e as dores da adolescência

Em uma entrevista para a Vulture, a autora Megan Abbott disse que a inspiração para a história de Dare Me (publicada em 2004) surgiu quando ela lia o artigo de uma revista sobre treinadores que ultrapassaram a linha do apropriado com seus atletas. Na série, que chegou na emissora USA no final do ano passado, a narrativa abordada realmente explora a relação entre a treinadora de líderes de torcida (ou as cheerleaders) Colette French (Willa Fitzgerald, estrela do remake de Scream) e suas duas discípulas Addy (Herizen Guardiola) e Beth (Marlo Kelly). Uma trama que valoriza as perspectivas femininas, estudada a partir do ponto de vista das três protagonistas, ao longo de seus dez episódios a obra ultrapassa o status quo e prova ser mais do que apenas sobre cheering, se tornando uma produção sobre relações entre mulheres e como suas visões podem ser plurais e diferentes, além de falar sobre sacrifício e as dores de ser adolescente, evidenciando a transição de uma jovem para a fase adulta.

Atenção: este texto contém spoilers

É exatamente por esse último motivo que Colette está no centro de todas as narrativas. Antes de voltar para Sutton Grove, cidade onde estudou e se consagrou como líder de torcida, ela constrói uma carreira impressionante treinando times importantes em ligas de faculdade. Sua decisão de retornar para sua cidade natal tem muito mais a ver com seu marido, Matt French (Rob Heaps), do que com sua vontade em si. Inseguro com o fato de que sua carreira está mais fraca do que a da parceira, Matt convence Colette a aceitar um emprego no colégio onde estudou, enquanto ele trabalha com um das figuras centrais da cidade, como engenheiro. O que ele descobre, mais tarde, é que o principal motivo para sua grande oportunidade é que Colette estava sendo sondada para virar treinadora há muito tempo, sendo que seu trabalho com o time de líderes de torcida seria usado para impulsionar a economia da cidade e atrair turistas — já que, nos Estados Unidos, esportes como esse são importantes para a sociedade como um todo.

Apesar de parecer segura e satisfeita com a vida aparentemente perfeita que leva com o marido, Colette é uma personagem muito mais complicada do que aparenta. Enquanto ela tem um pulso firme para treinar seu squad, sua vida pessoal parece envolta em complicações e inseguranças. Sim, ela tem uma carreira estelar, uma casa enorme e um marido sensível, além de uma filha saudável que ela ama. Mas a sensação que o roteiro passa constantemente é que a protagonista está perdida, como se nunca realmente tivesse tido tempo para assimilar sua vida e as consequências de crescer — e sua relação com Addy, que será explorada mais adiante neste texto, reforça muito desse aspecto. Em um dos seus momentos de total desespero, ela começa a ter um caso com o sargento da marinha Will Mosley (Zach Roerig). Ele e seu colega de trabalho, Kurtz (Chris Zylka), ficam de plantão na escola onde ela ensina, com o objetivo de recrutar jovens para se alistar na marinha. Dare Me começa mostrando o relacionamento deles como se baseado em amor e reencontro, algo que não foi explorado até o fim no passado, já que ambos tinham tido um breve caso quando eram adolescentes. No decorrer da história, no entanto, fica claro que existe muito mais sobre a relação do que apenas um flashback.

Dare Me

Em uma narrativa paralela, estão Addy e Beth, duas peças fundamentais no time de líderes de torcida. No pontapé inicial, elas são taxadas como amigas inseparáveis. Existe algo meio “meninas malvadas” atribuída às duas e a dinâmica que elas carregam, sendo que Beth é considerada a líder, enquanto Addy é sua fiel escudeira. Felizmente, no decorrer dos episódios, a narrativa se afasta completamente desse aspecto e aborda essa relação com muito mais profundidade do que realmente parece ser possível no começo.

Quando Colette finalmente chega para treiná-las, ela imediatamente se aproxima de Addy, com quem começa a criar uma relação complicada. Apesar de ser muito mais velha, e consequentemente ter a obrigação de desenhar a linha entre o que é apropriado ou não, a treinadora deixa a menina entrar na sua vida sem hesitar. Ou seja, Addy não só ganha uma tutora para melhorar sua técnica como líder de torcida, como também se torna babá da filha da treinadora, ajuda a esconder seu caso extraconjugal e parece completamente apaixonada por Colette — que a incentiva apenas o suficiente para que Addy continue voltando de novo e de novo. Ao mesmo tempo, Colette parece gostar da atenção que recebe, assim como sente saudades de ser uma jovem livre e com o mundo pela frente, o oposto de uma mulher casada com muitas responsabilidades.

“Coach”, como Addy a chama, também representa uma espécie de escape para a aluna. Vendo que a menina tem ambição demais para ficar presa em Sutton Grove para o resto da vida, ela incentiva a cheerleader a lutar por uma posição melhor dentro do squad, que sonhe alto e tente se destacar, para eventualmente conseguir uma bolsa de estudos na faculdade por causa do esporte. Mas Colette entende que isso não vem sem sacrifícios e, por isso, tira suor e sangue de todas as suas atletas, exigindo o melhor sempre — principalmente de sua aluna favorita.

Beth, no entanto, não se convence das intenções da treinadora e acaba criando uma postura completamente defensiva. De primeira tudo parece apenas ciúmes da posição que ela assume perante o squad, mas logo fica claro que é muito mais sobre o que ela e Addy têm do que qualquer outra coisa. Beth e Addy são mais do que amigas. O roteiro demora para deixar isso claro, escolhendo explorar isso aos poucos, criando uma base para o relacionamento entre elas. Não fica claro logo no começo se aquilo vai ser explorado realmente ou se é apenas o velho e comum queerbaiting (ou isca LGBT, como você preferir), mas a dinâmica realmente é estudada de forma gradual e tem direito até mesmo a beijos românticos na chuva e slow dancing com música indie tocando no fundo. Não é atoa que já existe uma base de fãs sólida que torcem pelo casal. Com a chegada de Colette, no entanto, a relação entre elas começa a deslizar e enfrentar problemas, sendo que Beth começa a sofrer com o que antes parece possessão, e mais tarde se desenvolve para um sentimento de terrível abandono.

É também pela voz de Beth que a série explora realmente o quanto a influência que Colette tem sobre Addy é preocupante. Não só ela é uma mulher maior de idade, cheia de responsabilidades e uma figura de autoridade, como também tem a menina fazendo e encobrindo situações absurdas para ela. Algo que Beth não hesita em apontar, mais de uma vez. Se pela perspectiva de Addy e do roteiro ela antes era pintada como inconsequente e manipuladora, agora as coisas começam a ficar mais claras, reforçadas pelo seu ponto de vista e por uma boa dose de empatia.

Apesar do triângulo amoroso entre Abby, Colette e Beth ser o grande trunfo da narrativa, toda a história vem envolvida em um grande mistério de assassinato, que é o catalisador para todas as consequências exploradas pela obra. O primeiro episódio mostra que, por trás da trama sobre cheerleading, existe alguém que acabou morto. Mais adiante, o roteiro revela que a vítima, na verdade, é o próprio Will. Ao invés de focar na investigação do que aconteceu, Dare Me opta por se aprofundar em como isso afetou ainda mais a dinâmica explosiva entre as três protagonistas.

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Na noite em que Colette o encontra morto, ela liga imediatamente para Addy, como se não soubesse o que fazer. Quanto mais os eventos se desenrolam, no entanto, mais fica claro que alguma coisa não está certa. Ela isola Addy cada vez mais, plantando insegurança e medo em sua cabeça, enquanto Beth luta para puxá-la para o outro lado, fazê-la ver os problemas apresentados pela situação, como se elas estivessem presas eternamente em um cabo de guerra. Cabe à protagonista decidir quem está realmente do seu lado, e a intenção daqueles ao seu redor.

Inicialmente tratada como suicídio, as condições suspeitas envolvendo a morte de Will passam a ser investigadas pela polícia. A primeira temporada acaba justamente com a revelação de que, talvez, tudo aquilo não seja o que parece. Nesse ponto, o roteiro também revela que Colette e seu marido, Matt, possivelmente estavam juntos desde o começo, planejando algum esquema aleatório, cujas motivações ainda são desconhecidas. Uma reviravolta interessante, que abre espaço para outros assuntos serem explorados em uma eventual segunda temporada.

Tudo isso faz com que Beth se sobressaia muito mais do que as outras protagonistas. Se no primeiro momento ela parece ser a mais superficial das três, adotando uma postura cínica e problemática o tempo inteiro, o espectador chega no final da primeira temporada com uma opinião que vai ao oposto extremo, sendo que ela é com certeza a mais humana. Abandonada pelo pai, que traiu sua mãe com a vizinha deles, e trocada por Addy, que, fascinada por Colette, acaba negligenciando sua amiga, e o abuso sexual que sofreu recentemente, existe uma vulnerabilidade comovente na personagem — que sempre parece estar esperando pelo pior. É lógico que sua postura é horrível na maioria das vezes, mas esse aspecto fica claro aos poucos e eventualmente é evidente que suas ações vêm muito mais da sua insegurança e do medo de ficar sozinha do que de maldade propriamente dita. Beth, que odeia tanto Colette e o que ela representa, é mais parecida com ela do que realmente imagina.

Muito da história é focado nas descobertas de Addy como uma jovem mulher. Ao contar a história entre flashbacks e flashforwards, o roteiro oferece um insight pertinente na vida de uma garota que descobre estar apaixonada pela melhor amiga, depois fica fascinada pelo poder de uma mulher (aparentemente) confiante e incrível. Moldada e influenciada pelas mulheres que vivem ao seu redor, não existem vilões ou mocinhos nessa história, apenas pessoas que são motivadas por seus pontos de vistas e perspectivas. Isso fica claro no episódio “Parallel Trenches”, onde uma mesma história é contada repetidamente pelo viés das três protagonistas — Addy, Colette e Beth.

No episódio, a narrativa começa logo após a festa onde Kurtz estupra Beth. A narrativa opta por não mostrar o ato de violência em si, mas fica claro o que aconteceu com ela. Sem saber o que fazer com a amiga, que está machucada e apagada na parte traseira do carro, Addy a leva para a casa de Colette. Assim, o roteiro divide os eventos a partir desse momento pela perspectiva das três. Enquanto Addy parece ter uma visão conturbada das duas, pendendo e entendendo o lado de ambas, a treinadora tem um olhar frio sobre o que aconteceu com Beth, negligenciando seus sentimentos mais uma vez, enquanto Beth, por sua vez, mostra que está acuada, machucada e triste. Sem conseguir expor seus sentimentos ou falar sobre o que aconteceu, os eventos dolorosos do capítulo culminam em um desfecho gore, onde uma das líderes de torcida acaba perdendo os dentes em um acidente que acontece devido a explosão de sentimentos trocados entre elas. Um bom roteiro que serve para lembrar sobre nossas batalhas diárias e que nem sempre sabemos o que se passa na cabeça da pessoa que está ao nosso lado.

O abuso que Beth sofre ainda é um grande ponto em aberto em Dare Me, sendo que ela mal teve tempo para associar o que realmente aconteceu ou explorar a agressão com as outras personagens que, absorvidas no próprio drama, nem sequer percebem direito o que estava acontecendo ali. É importante deixar a protagonista achar uma forma de seguir em frente, sem deixar com que ela tenha que lidar com Kurtz, seu abusador, constantemente. Resta saber como a produção vai abordar isso daqui para a frente.

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É mais ou menos no meio da primeira temporada que o verdadeiro mérito de Dare Me começa a ser revelado. Envolto nos problemas pessoais das protagonistas, o plot do assassinato toma um tempo considerável da trama, claro, mas não é realmente o mais importante. A dinâmica entre os personagens e suas motivações são sempre a prioridade na narrativa, criando uma conexão importante entre o público e a série. Isso é reforçado até mesmo pela câmera, que oferece um olhar íntimo sobre os sentimentos daquelas mulheres, usando da ambientação para criar uma história que é motivada por sentimentos passionais. A trilha sonora, que passa do rap até o pop rock feminista, também é usada em momentos cruciais da narrativa, sendo a música uma espécie de sobrevida do squad.

Dare Me começa muito como todos os dramas adolescentes: abordando intrigas e problemas que são pautados pelas dores de uma época tão intensa na vida, mas aqui se desenvolve para uma história que é muito mais sobre solidão e corações partidos. Beth se sente abandonada pelos pais e depois pela amiga; Colette é uma mulher completamente perdida que comete erros guiados por seus sentimentos obscuros, pelo fato de estar perdida; e Addy tem que lutar constantemente para entender seus instintos e sentimentos. Ao mesmo tempo, a série tem aquela qualidade potente de tramas situadas em cidades pequenas que são abaladas por um crime terrível, com uma história universal e satisfatória.

No final, o seriado é sobre relações femininas: duas amigas que acabaram se apaixonando, uma menina que está se descobrindo e principalmente sobre a relação complicada de uma treinadora e suas alunas. Mais do que isso, é sobre descoberta sexual e até que ponto estamos dispostos a ultrapassar a linha do aceitável por alguém por um suposto conceito de lealdade. Mesmo com assuntos que já foram explorados tantas vezes na TV e no cinema, o mérito aqui é como essas características são subvertidas pelo roteiro, que contém mulheres diferentes, ambiciosas e complicadas.

A série, que estava em desenvolvimento desde 2012, sofreu um pouco para conseguir explorar essas três relações entre mulheres, já que elas são claramente pautadas pelo desejo sexual entre Beth e Addy. Ou entre Addy e Colette. Em um certo momento, foi sugerido a ideia de dar um relacionamento romântico heteronormativo para Addy, como se não existisse uma dinâmica amorosa na produção. Na mesma entrevista para a Vulture citada no começo do texto, Abbott diz que isso foi sugerido porque as pessoas não entendem a natureza da relação delas. Até o momento, o tropo do triângulo amoroso foi algo usado e saturado pelas narrativas no audiovisual. Eles, no entanto, sempre eram protagonizados por uma mulher e dois homens. Ou por duas mulheres e um homem. Em Dare Me, são três mulheres e pelo o que foi apresentado na série até então, é muito mais interessante e cheio de nuances do que qualquer outra dinâmica como essa explorada até então.

Parte fundamental e onipresente em obras norte-americanas sobre a adolescência, já que o esporte é tão grande por lá, essa versão, no entanto, se afasta das meninas bonitas e populares que sempre estão permeando essa narrativa. Em Dare Me, ser líder de torcida é sinônimo de suor, sangue e sacrifício. É algo que conecta e cria ligações, ao mesmo tempo que os quebra de forma abrupta. E é exatamente por isso que, mesmo a prática não fazendo parte da cultura brasileira, a história se torna identificável e empática.

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