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Crítica: A Favorita

Em meados do século XVIII, Inglaterra e França estão em guerra. A Rainha Anne (Olivia Colman) é a última herdeira Stuart, e com sua saúde debilitada e uma série de tragédias particulares com as quais lidar, se apoia nos conselhos e amizade de Lady Sarah Churchill (Rachel Weisz), a Duquesa de Marlborough, para não mergulhar em uma espiral de depressão. A dinâmica entre as duas é bem consolidada devido à longa amizade que compartilham, conhecendo-se desde crianças e vivendo juntas no palácio desde a coroação de Anne em 1702, mas tudo começa a mudar quando Abigail (Emma Stone), prima de Sarah e uma lady em ruínas, chega à corte de Anne e começa, aos poucos, a entrar em suas vidas. É assim que tem início A Favorita, filme do diretor grego Yorgos Lanthimos, com roteiro de Deborah Davis, indicado à dez estatuetas no Oscar 2019.

Atenção: este texto contém spoilers!

A Favorita tem sido descrito pela mídia especializada como uma “comédia de vingança”, o que subverte de maneira brilhante aquilo que se espera de um drama de época. Ainda que todos os elementos do gênero estejam presentes nas quase duas horas de filme — os cenários extravagantes e ricamente decorados, o figurino pomposo e detalhado, as cenas à luz de velas e as paisagens campestres da Inglaterra — há, também, diálogos afiados e jogos de câmera inusitados, principalmente nas cenas filmadas com a lente olho de peixe, que dão um toque completamente novo ao period drama. Por mais que fale sobre política, voltando sempre à questão da guerra travada na França e a vida na corte, A Favorita é basicamente uma dança entre Anne, Sarah e Abigail ao som de suas vontades e disposições.

Amiga de Anne desde a infância, Sarah transformou-se no braço direito da rainha e mesmo que faça tudo por ela, e para ela, tem sua própria agenda de compromissos a seguir. A rigor, é Anne quem usa a coroa, mas Sarah tem seus métodos para fazer com que a rainha faça o que ela deseja no que tange o governo da Inglaterra, visto que a Duquesa de Marlborough tem ideias próprias a respeito de como o país deve ser gerido. É assim que Sarah insiste com Anne para que a guerra na França continue, visando o melhor para a Inglaterra, no seu ponto de vista, mesmo que, para isso, tenha que colocar até mesmo seu marido na barganha, já que o Duque Marlborough (Mark Gatiss) é quem lidera o exército inglês em solo francês. Anne não se interessa muito pelo andamento da guerra, ou o que isso significa no panorama geral das coisas, e deixar Sarah tomar as rédeas da situação — como tem feito desde que eram meninas — parece ser a coisa mais fácil a fazer. É Sarah quem toma as decisões difíceis, como dobrar os impostos para continuar financiando a guerra, enquanto Anne prefere ficar em seus aposentos com seus dezessete coelhos. Ainda que os coelhos não tenham de fato existido na vida da verdadeira Rainha Anne, os animais têm a função, no filme, de simbolizar o luto da monarca que perdeu todos os dezessete filhos, alguns devido à abortos espontâneos, outros pela saúde frágil dos bebês após o nascimento.

A Favorita

As mortes dos filhos causaram traumas incuráveis em Anne que é sempre assombrada por angústias, pesares e pensamentos suicidas. Enterrar um filhos após o outro deixou marcas não apenas em Anne como mulher e mãe, mas também como monarca, visto que a falta de herdeiros e a incerteza da continuidade da Coroa é capaz de deixar uma corte bastante tumultuada. Marcada por tanta dor e pesar, não é raro Anne acordar durante a noite gritando de pavor, principalmente quando sua saúde debilitada cobra seu preço, e é Sarah quem sempre está ao lado da rainha, certificando-se de que ela se acalme. É em um desses rompantes de dor e histeria que Abigail vê uma brecha para se aproximar da monarca e cair em suas graças. Quando chega na corte, Abigail pede a Sarah, sua prima, apenas um trabalho para que possa recomeçar a vida, algo que a Duquesa de Marlborough concede fazendo dela uma serva no palácio. Filha de um nobre, Abigail foi perdida pelo pai em um jogo de cartas e desde muito jovem precisou lidar com um casamento que não desejava e os abusos de um marido que não amava. Disposta a recuperar sua posição, Abigail, repleta de gentilezas, começa um jogo de sedução que tem como objetivo afastar Anne de Sarah, colocando-a, enquanto isso, nas boas graças da rainha. Abigail não mede esforços para chegar onde deseja, e para isso costura alianças onde possível, seja com o encantador Samuel Masham (Joe Alwyn) ou Robert Harley (Nicholas Hoult), membro do partido da oposição no parlamento inglês e que deseja colocar um fim à guerra que Sarah tanto deseja prolongar.

Não é difícil, em um primeiro momento, simpatizar com Abigail e sua situação de pobreza e históricos de abuso, principalmente quando Sarah, em contrapartida, nem sempre é a epítome da gentileza quando lida com Anne ou os demais membros da corte. Em determinada cena, quando Anne aparece maquiada de maneira exuberante para se encontrar com os súditos, Sarah não mede as palavras ao apontar o quanto a rainha se parece com um texugo, o que deixa a monarca mortificada. Em outro momento, Sarah se recusa a perder alguns minutos de seu tempo com os coelhos de Anne, enquanto Abigail pede para acariciá-los e demonstra estar genuinamente interessada por eles. Abigail é inteligente e dissimulada, e assim que entende a dinâmica entre Sarah e Anne, coloca-se entre elas fazendo-se de inocente até que consiga chegar ao coração da rainha que está sempre carente de atenção e carinho. Não demora até que Abigail descubra que o relacionamento entre Anne e Sarah vai muito além da amizade, e quando as vê trocando beijos e carícias, fica claro o que ela deve fazer para receber os favores da rainha.

A doçura de Abigail mascara uma vilania e crueldade que nem mesmo Sarah sabe como lidar. Embora a Duquesa de Marlborough tente dispensar Abigail quando descobre as intenções da prima de se tornar a nova favorita da rainha, a antiga lady é mais rápida e consegue fazer com que Anne a empregue como sua camareira. A nova posição de Abigail impede que Sarah a mande embora do palácio e a coloca em contato direto com a rainha, o que apenas facilita seu plano de se restabelecer, conquistando uma série de favores de Anne enquanto revela os planos de Sarah para o governo a Robert Harley. Sarah vê Abigail por aquilo que ela verdadeiramente é, mas Anne, que se diverte e aprecia as brigas entre as primas por seus favores, não se importa com o que a duquesa tem a dizer sobre a sua nova amiga e amante. Com a ajuda das maquinações de Abigail, Anne e Sarah acabam por romper, o que faz com que a Duquesa de Marlborough seja expulsa do palácio, deixando Abigail como a única favorita da rainha. Mesmo que Abigail sinta-se vitoriosa ao ver Sarah deixar o palácio, o inferno de cada uma delas está apenas começando quando a duquesa se retira.

A Favorita

A vitória de Abigail não é, no entanto, uma vitória por inteiro. Ainda que ela tenha conquistado sua posição de volta e se transformado na favorita da rainha, não tarda para que Anne finalmente veja além da fachada de boa moça que Abigail construiu para si. Lady Sarah podia ser fria e por vezes insensível com Anne e suas inseguranças, mas os objetivos de Abigail eram simplesmente frívolos ao se intrometer entre as duas. De uma maneira um pouco torta, Sarah amava Anne verdadeiramente e, separadas, as duas sofrem e sentem falta uma da outra. A Duquesa de Marlborough tenta retomar o contato com a Rainha Anne, mas Abigail impede que isso aconteça, e as antigas amigas se tornam reféns de um mal-entendido que poderia ter sido remediado não fosse Abigail.

A sequência final de A Favorita demonstra que as três — Anne, Sarah e Abigail — encontram-se em estágios diferentes de infelicidade após todo o jogo de que participaram. Anne descobre o sadismo de Abigail quando a vê maltratando um de seus coelhos e entende que fez a escolha errada ao mandar Sarah para longe; Sarah está banida da corte e da Inglaterra, dois de seus maiores amores, enquanto Abigail está, novamente, sob o jugo de alguém muito mais poderoso do que ela e a quem deve se submeter sexualmente — mesmo que envolta em sedas, Abigail está presa em um novo relacionamento abusivo. A roda da fortuna girou para as três mulheres e o resultado não poderia ter sido pior. Quando o filme se encaminha para seus minutos finais e a tela fica repleta das imagens sobrepostas de Anne, Abigail e os dezessete coelhos da rainha, isso simboliza, talvez, que o luto, a mágoa, o pesar e a desolação são tudo o que restou em seu reinado.

A Favorita não perde tempo ambientando seu público no que está acontecendo na Inglaterra, ou no mundo, como um todo, e foca objetivamente nos laços que unem Anne, Sarah e Abigail. A câmera do diretor Yorgos Lanthimos quase não sai do palácio em que vive a corte de Anne e boa parte da trama se desenvolve entre corredores, dormitórios e salões. O cerne de A Favorita é a troca de poder entre as três mulheres muito mais do que qualquer rigor histórico, algo que o próprio diretor apontou em uma entrevista ao The Hollywood Reporter: “algumas coisas são corretas, e outras, não”, indicando que ele tomaria certas liberdades para inserir o que fosse necessário na trama do filme para torná-lo complexo e poderoso. O rigor histórico, aqui, realmente não interfere na qualidade de seu produto final, o que transforma A Favorita em um drama de época completamente único e diferente. Para o diretor, era importante que ele pudesse explorar as personagens de Anne, Sarah e Abigail de maneira a chegar no âmago de cada uma delas, construindo seus relacionamentos de maneira a demonstrar como a troca de poder seria capaz de afetar o destino não apenas daqueles que com elas conviviam, mas de um país inteiro.

A Favorita

Os caprichos de Anne, as vontades de Sarah e as ambições de Abigail reverberam muito além das paredes do palácio, e aí está um dos pontos mais fortes da construção do roteiro de A Favorita. Ao colocar essas três mulheres no coração da trama, recebemos personagens políticas, intensas e que exercem autoridade sem precisar de justificativas. É comum pensar que mulheres não eram capazes de exercer domínio político nos idos de 1700, mas A Favorita mostra que, mesmo no século XVIII, elas estavam tão presentes quanto possível; no longa, inclusive, os personagens masculinos geralmente são retratados com cores fortes e poucos gentis, a começar pelas perucas rebuscadas que os membros do parlamento gostavam de usar, passando pela maquiagem caricata e terminando na falta de ação da parte deles — tudo o que acontece em A Favorita, acontece pelas mãos de suas personagens femininas sempre belamente interpretadas por Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone.

De maneira geral, poderia se dizer com facilidade que não há protagonistas e coadjuvantes em A Favorita: a alternância de poder entre as personagens é basicamente o mesmo que entre as atrizes que, em perfeita sincronia, entregam personas intrincadas, obscuras e multifacetadas. Inspirada por um artigo de jornal que contava o suposto envolvimento amoroso entre a Rainha Anne e Lady Sarah, hoje corroborado por cartas trocadas entre elas, Deborah Davis criou uma trama em que drama, comédia e tragédia andam juntas e em perfeita sintonia enquanto suas personagens navegam entre protagonistas e antagonistas em uma roda que nunca para de girar. Lanthimos, enquanto isso, embrulha a trama de Davis em tecidos rebuscados e movimentações singulares de câmera que fazem de A Favorita um filme inovador, um drama de época com diálogos afiados e que manda às favas o rigor histórico — o que justifica, sem dificuldades, as dez estatuetas a que está indicado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

A Favorita recebeu 10 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Atriz (Olivia Colman), Melhor Atriz Coadjuvante (Emma Stone e Rachel Weisz), Melhor Direção de Arte (Fiona Crombie e Alice Felton), Melhor Figurino (Sandy Powell), Melhor Montagem (Yorgos Mavropsaridis), Melhor Fotografia (Robbie Ryan), Melhor Roteiro Original (Deborah Davis), Melhor Direção (Yorgos Lanthimos).