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Cavaleiro da Lua e a representação do Egito na cultura pop

Com o fim da Saga do Infinito (2008–2019), a Marvel Studios vem buscando novos heróis que guiem as próximas fases de seu universo cinematográfico. Uma das formas de testar o impacto desses personagens com o público é explorar suas histórias em minisséries no serviço de streaming Disney+. A minissérie Cavaleiro da Lua, que estreou em março de 2022, ao contrário de WandaVision (2021) ou Loki (2021), não era uma das mais aguardadas pelos fãs do estúdio. Mas de onde ninguém esperava nada, saiu uma representação hollywoodiana bem respeitável da cultura egípcia.

Atenção: este texto contém spoilers!

Fugindo da fórmula Marvel

A minissérie Cavaleiro da Lua (Moon Knight, no original) apresenta a história do mercenário Marc Spector, interpretado por Oscar Isaac, que é o avatar do deus egípcio da Lua, Khonshu (F. Murray Abraham). Desta forma, Marc recebe poderes de regeneração, força e um traje especial para levar a justiça de Khonshu aos maus-feitores. Contudo, Marc não é uma pessoa mentalmente saudável. Traumas da infância levaram Marc a criar Steven — uma segunda personalidade. Enquanto Marc tem todas as memórias dolorosas de sua vida, Steven seria a sua versão de uma vida feliz. Sem conflitos, sozinho e com um trabalho comum como atendente da lojinha de um museu em Londres, na Inglaterra.

A escolha por afastar a história de Marc da cidade de Nova York, nos Estados Unidos, é um dos pontos fortes da série, apesar das críticas pela falta de conexão com outros personagens e eventos do Universo Marvel (nem todos foram duramente afetados pela perda do Tony Stark e tudo bem). Ao longo dos seis episódios que compõem a minissérie, o principal espaço externo explorado é a cidade de Cairo, capital do Egito. Na verdade, as gravações ocorreram em países do Oriente Médio, uma vez que o Egito, que é um país do norte da África, tem um sistema burocrático para permitir gravações estrangeiras em seu território. Contudo, um CGI bem-feito e um bom estudo de campo permitem uma semelhança com o país que buscam representar.

“Eu achava que era uma regra, que a Marvel nos faria incluir algo, mas eles nos disseram que talvez, nesta produção em específico, a grande surpresa seria que não havia nenhuma conexão óbvia com as outras histórias. Era isso que fazia nossa série única”, disse Mohamed Diab, diretor da minissérie em entrevista à Variety.

Inicialmente, acompanhamos a história pelo ponto de vista de Steven, que não sabe o que está acontecendo quando estranhos querendo matá-lo começam a aparecer em sua vida. Até então, Steven acreditava ser apenas sonâmbulo, sendo este o motivo para acordar em lugares e situações estranhas. A minissérie mergulha na mitologia egípcia e no psicológico de Marc/Steven, o que permite uma construção bem interessante. Apesar de haver um vilão a ser combatido, o foco da série é entender quem é Marc/Steven.

Destaco aqui o Episódio 5, “Asylum”, em que Steven e Marc precisam buscar o equilíbrio de seus corações em um manicômio mental dentro do barco da deusa egípcia Taweret (Antonia Salib), que percorre o submundo egípcio, o Duat. Toda a situação mostrada no episódio revela novas nuances da vida de Marc e como seu caminho foi sendo trilhado até levá-lo a Khonshu. No final, Marc e Steven não podem ser heróis se não lutarem juntos. O conflito interno entre Marc e Steven se reflete também na luta entre as divindades Khonshu e Ammit (Saba Mubarak), que têm visões distintas sobre justiça. O primeiro defende a punição de pessoas que fazem o mal, enquanto Ammit acredita que a punição deve ocorrer antes que a pessoa de fato cometa algum crime.

Mas qual é a linha que separa ambos? Não há perdão e clemência em nenhum dos lados. Marc, por exemplo, é um criminoso, um assassino. Entretanto, quando conhecemos todas as camadas de sua história, não é possível acreditar que ele mereça a punição eterna. Para os deuses não há o cinza entre o bem e o mal, mas a vida humana sempre permeia esse campo.

A egiptomania na cultura pop

Apesar de trazer um elenco diverso, com muitos atores egípcios e ter como diretor e showrunner Mohamed Diab, escritor, roteirista, e o primeiro cineasta egípcio a assumir a cadeira de diretor de um projeto da Marvel, a série ainda dá algumas escorregadas na representação da cultura egípcia. Para entender isso é importante conhecer o conceito de “Egiptomania”, que significa “pegar aspectos estéticos do Antigo Egito e os reinterpretar na atualidade”, segundo a arqueóloga Márcia Jamille. Ao longo dos episódios, informações sobre mumificação, identificação de estátuas em pirâmides e a própria representação dos deuses são reconstruídos para trazer aspectos da modernidade — o que pode ser justificado por se tratar de uma adaptação de um quadrinho.

O erro sobre a mumificação, por exemplo, não é um caso isolado, e a franquia A Múmia, de 1999, já apresentou informações incorretas sobre a questão. A franquia reproduz bem a visão ocidentalizada sobre a cultura egípcia, assim como Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida (1981), que reforça uma visão mítica do Antigo Egito sem de fato fazer a lição de casa. A principal problemática dessas obras é que a inclusão do fantástico para tornar as produções rentáveis e atrativas retira o significado dos objetos, ritos e da própria história egípcia. Desta forma, fica mais fácil para o Ocidente se apropriar de algo que não lhe pertence.

Contudo, para a felicidade dos telespectadores, são os acertos que se destacam em Cavaleiro da Lua. Aqui, não há nada do famoso filtro amarelado que costuma acompanhar produções de Hollywood sobre qualquer país que não seja europeu ou o próprio Estados Unidos. Além disso, os locais retratados, no caso das cidades, trazem aspectos modernos de forma a fugir da premissa que os países africanos e do Oriente Médio só podem ser vilas ou regiões rurais.

“Eu me lembro de assistir à Mulher-Maravilha 1984 e tinha uma grande sequência no Egito. Era uma desgraça para nós. Você tinha um sheik — isso não fazia o menor sentido! O Egito parecia um país da Idade Média. Parecia o deserto”, revelou Diad em entrevista ao SFX.

O espaço para as lutas reais 

Conflitos políticos e culturais também não ficam de fora. Mohamed Diad, famoso por Cairo 678 (2011), obra que apresenta a história de mulheres egípcias lutando contra a cultura do assédio sexual no país — que ainda oferece poucos direitos e espaço de voz à elas —, trouxe a primeira super-heroína egípcia do Universo Cinematográfico Marvel. A personagem Layla El-Faouly (May Calamawy) foi criada especialmente para a minissérie e aparece na história como arqueóloga e esposa de Marc Spector.

Quando Khonshu ameaçou escolher Layla para ser seu avatar, Marc decide abandoná-la e se esconder nas sombras da vida de Steven. A meta é terminar a missão de combater Ammit para cortar sua ligação com Khonshu e proteger Layla. No final, quando a grande batalha finalmente ocorre, Layla — que não é nenhuma mocinha indefesa e executa as melhores sequências de luta — aceita ser o avatar da deusa Taweret para conseguir enfrentar Arthur Harrow (Ethan Hawke), avatar de Ammit, se tornando então a Escaravelho Escarlate (Scarlet Scarab, em inglês). O nome vem de um herói masculino de 1977 e já morto nos quadrinhos.

Na cena, enquanto está lutando nas ruas do Cairo, uma menina salva por ela pergunta: “Você é uma heroína egípcia?” e admira Layla. No momento em que mulheres egípcias estão lutando por seus direitos e reivindicando suas raízes — a questão de assumir os cabelos cacheados, por exemplo, que se tornou um ato político no país — a presença de Layla é revigorante. May Calamawy brilha em suas cenas e apresenta uma Layla, que apesar das perdas e decepções, luta pelo que acredita.

“É uma coisa difícil, exumar a dor do passado. É fácil ficar preso. Obcecado pelo que nos feriu”.

Outra questão é a inclusão de um gênero musical censurado no país. O uso da música “El Melouk” nos créditos dos episódios é uma crítica direta ao governo conservador e autoritário de Abdel Fattah el-Sisi, que controla o país. Conhecido como mahraganat, o gênero proibido pelo governo é uma mistura de eletrônico, hip hop e rap, sendo associado às classes mais pobres do país.

Mesmo com pontos tão altos, o final da minissérie é um pouco decepcionante pela necessidade de deixar o futuro do personagem em aberto para sua participação em outras produções. Por ser uma minissérie, não é esperada uma segunda temporada, mas há questões a serem respondidas. Agora é esperar para ver onde encontraremos o Cavaleiro da Lua e a Escaravelho Escarlate novamente.