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Uma celebração da TV e um estudo sobre o luto: a jornada ambiciosa de WandaVision

Escrita por Tom King, a série de HQs Visão: Pouco Pior que Um Homem, composta por um total de seis arcos, é uma das melhores obras da Marvel que li nos últimos anos. Para ser bem honesta, é um dos melhores quadrinhos que li, ponto. Não me considero uma grande especialista no assunto, mas sempre que absorvo alguma produção cultural, procuro entender o que ela quer dizer, e tenho tendência a dar prioridade para produções que contêm arcos bem feitos para seus personagens, que eles saiam um pouco diferente do lugar em que começaram ou tenham uma jornada satisfatória dentro do contexto geral ou de si mesmos. Nessa história, o protagonista Visão conta como ele — um androide sintozóide — apagou sua memória e resolveu criar uma família de “Visões” e se mudar para o subúrbio de Washington DC. A trama é repleta de metáforas e aborda o que exatamente significa ser humano — ou a tentativa de ser humano — e a jornada do protagonista em tentar entender seu papel no mundo.

Desde que foi anunciada, fiz um paralelo direto entre WandaVision, a primeira produção da Marvel na TV, e a HQ Tom King. Apesar de a trama em si não ter muita correlação e passar em momentos diferentes da vida dos protagonistas, além de serem feitas para mídias diferentes e, portanto, existirem dentro de suas próprias limitações, tanto Wanda como Visão são pessoas que vivem em circunstâncias extraordinárias, com poderes que vão além do comum, mas acabam caindo em cenários onde a tentativa de ser “normal” e se “encaixar” fica evidente. No caso do Visão, o sintozóide estava tentando criar uma família no subúrbio. Para Wanda, isso consistiu em construir um cenário que lembra alguns sitcoms clássicos da TV norte-americana. Essa busca pelo pertencimento é catalisada nos dois casos por coisas muito diferentes, mas essa é uma narrativa que me chama atenção. Portanto, posso dizer que não só gostei muito das HQs, como também apreciei demais a jornada de Wanda dentro da sua própria série de TV.

WandaVision

Apesar de ter gostado muito da obra, analisá-la foi um pouco complicado. Existe muito a se falar sobre a trajetória de Wanda em si e como ela e Visão foram, talvez pela primeira vez dentro do universo Marvel, explorados em todo o seu potencial. Ao mesmo tempo, o seriado criou e ampliou discursos sobre como consumimos cultura em 2021. Portanto, fazer uma crítica decente de WandaVision se tornou, pelo menos para mim, uma tarefa um pouco mais complicada do que o comum.

WandaVision tem uma trama que pode ser considerada um tanto quanto peculiar. A série começa logo após os eventos de Vingadores: Ultimato, quando aqueles que foram “mortos” pelo o que ficou conhecido como “o blip” — após o vilão Thanos (Josh Brolin) estalar os dedos e fazer metade da população simplesmente sumir — voltam a vida por causa do sacrifício dos seis Vingadores originais. Se é difícil o suficiente voltar para uma sociedade mudada, onde a perda e o luto se tornaram parte da rotina daqueles que ficaram, para Wanda (Elizabeth Olsen) as coisas são ainda mais difíceis. A trajetória da heroína dentro do MCU (o Universo Cinematográfico Marvel) sempre foi baseada na perda e no luto.

Antes ela perde seus pais, depois seu irmão gêmeo e, por fim, Visão (Paul Bettany). Em Guerra Infinita, ela sacrifica seu namorado para que Thanos não tenha acesso a Joia da Mente, que faz parte de Visão, só para mais tarde o próprio vilão usar a Joia do Tempo para evitar que Wanda a destrua e, por fim, poder fazê-lo no processo de roubar a última joia para si. Quando Thanos estala o dedo e metade da população vira fumaça, Wanda vai embora e não tem tempo para trabalhar os seus traumas. Até o momento em que ela volta do nada, em um cenário completamente diferente do que estava acostumada cinco anos atrás.

WandaVision

É justo dizer que, dentro do universo Marvel, Wanda estava longe de ter o melhor desenvolvimento. Apesar de ser considerada uma das personagens mais poderosas entre seus pares, seus dramas pessoais sempre foram deixados de lado para desenvolver os protagonistas (99% das vezes homens) e ela nunca teve espaço para falar sobre os seus sentimentos e lidar com as suas perdas. As coisas foram simplesmente acontecendo e lutar por sobrevivência sempre foi sua prioridade. Consertar isso depois de anos, e dar prioridade para uma personagem que foi negligenciada pela própria narrativa durante tempo demais, é um trabalho árduo e, por isso, fazê-lo por meio de uma série de TV foi com certeza a escolha certa. Com um total de nove episódios de meia hora cada, os mistérios da jornada proposta pela trama foram desenvolvidos de forma gradual, assim como o relacionamento de Wanda e Visão, e até mesmo seus sentimentos individuais. Como resultado, WandaVision se tornou algo genuíno que, ao invés de ser apenas uma série expositiva com milhares de plots apressados e reviravoltas mirabolantes, tentou falar sobre luto, perda e amor de forma honesta, mesmo errando em alguns passos da sua construção.

Atenção: este texto contém spoilers!

Criada e roteirizada por Jac Schaeffer e dirigida por Matt Shakman, o primeiro episódio coloca Wanda e Visão morando na cidade de EastView, onde eles têm uma casa espaçosa, um quintal, amigos, um relacionamento saudável e uma vida que não poderia ser mais comum. A estética, no entanto, indica que alguma coisa está errada. Tudo acontece como se eles estivessem numa sitcom dos anos 1950, com tudo em preto e branco e confusões que envolvem situações rotineiras de uma família daquela década — ou, pelo menos, na forma como a televisão aborda as mesmas. Em seus dois primeiros episódios, WandaVision explora o relacionamento dos dois (e o que está acontecendo), usando elementos de séries como I Love Lucy (1951-1957), The Dick Van Dyke Show (1961-1966) e até mesmo Bewitched (1964-1972). Na medida em que a história vai se desenvolvendo, outras referências surgem de produções clássicas, passando por The Brady Bunch (1969-1974), Full House (1987-1995), Malcolm in the Middle (2000-2007) e chegando até mesmo aos dias mais modernos, com Modern Family (2009-2020). Apesar do pano de fundo que lembra sitcom ser apenas isso, um decoy que está distraindo Wanda do que está bem na sua frente, é impossível negar que esse aspecto criou uma atmosfera mais divertida e especial para WandaVision, arrancando um desempenho melhor de todos os envolvimentos na obra.

WandaVision

O trabalho da produção, por exemplo, é impecável. Todos os detalhes e referências foram construídos com calma e precisão, sendo que o trabalho com os figurinos e os cenários se tornaram parte fundamental da experiência. Até mesmo os comerciais são parte da trama e apresentam pequenos elementos e referências ao universo da Marvel como um todo. Por causa da mudança constante no jeito como a história era contada, que sempre acompanhava a forma como as séries referenciadas abordavam seus conflitos, isso exigiu também um pouco mais dos atores. Tanto Elizabeth Olsen como Paul Bettany se destacam, mas os coadjuvantes também fazem um bom trabalho e criam vínculos do público com outros personagens que também acabaram negligenciados pela narrativa de um filme blockbuster, de uma forma ou outra. Esse é o caso de Darcy, vivida por Kat Dennings, e Jimmy Woo, interpretado por Randall Park, por exemplo. Mas o destaque real fica por conta da agente da S.W.O.R.D Monica Rambeau (Teyonah Parris) e a vizinha intrometida de Wanda, Agnes (Kathryn Hahn).

“Trauma e luto não definem quem você é, eles te moldam” 

O mistério se desenvolve com pequenos fragmentos que provam que, de fato, existe algo muito errado ali. Em momentos quase dignos de filmes de David Lynch ou até mesmo de um episódio aleatório de The Twilight Zone, Wanda vê um homem saindo do bueiro, apenas para voltar no tempo e fazer Visão esquecer do que aconteceu; ouve alguém chamando-a no rádio e pergunta quem está fazendo isso com ela; acha objetos que não condizem com a época em que sua pequena série está no momento; quando ela engravida, seus gêmeos nascem e crescem em questões de dias e até mesmo os personagens coadjuvantes da sua história parecem não se encaixar. Agnes é meio que uma figura onipresente, e Monica, antes introduzida como uma vizinha chamada Geraldine, parece saber mais do que uma pessoa comum de WestView.

Todos esses pequenos momentos são, na verdade, pistas sobre a história que o seriado está tentando contar. As perguntas vão se respondendo com o tempo e, ao entrar mais profundamente na forma como Wanda se sente após retornar do “blip”, WandaVision revela que a heroína, tomada pelo luto e pela perda, acabou criando o que eles chamam de “hex”, quando sequestrou uma cidade inteira e usou seus poderes para criar uma nova versão do Visão e sua ideia do que é um mundo perfeito. Tal poder atraiu os agentes da S.W.O.R.D e, especialmente, Monica. A personagem, que foi introduzida em Capitã Marvel como uma criança, filha de Maria Rambeau (melhor amiga de Carol Danvers, interpretada por Lashana Lynch), agora é uma mulher adulta que, após retornar do “blip”, descobre que sua mãe morreu. Sozinha no mundo e tomada pelo luto, ela é a única que parece entender pelo o que Wanda está passando e luta para que seus chefes não usem a violência como a primeira medida.

O poder de Wanda também atraiu pessoas semelhantes e Agnes revela, mais tarde, ser na verdade Agatha Harkness, uma feiticeira que consegue roubar o poder dos outros. Uma bruxa poderosa que existe nos quadrinhos, Agatha fica fascinada com a forma que a protagonista consegue manter a cidade e as pessoas ao seu redor, e mantém Wanda na coleira, sendo uma das principais responsáveis por todo o “caos” que a está rodeando. Obviamente foi Wanda quem criou o Hex, mas sua situação é perpetuada pela forma como Harkness está constantemente fazendo com que ela esteja incerta da sua condição mental. A vilã coloca empecilhos no seu caminho, mata as pessoas ao seu redor, instaura dúvida, faz uma versão aleatória de Pietro (Evan Peters) aparecer na porta da sua casa e consegue fazer com que Wanda acredite que ela é a vilã. O gaslighting ali é claro e é uma parte fundamental dos episódios, catalisador dos acontecimentos nos últimos dois episódios da série.

O episódio oito, intitulado de “Previously On”, e o melhor de WandaVision, leva Wanda em uma pequena viagem pelo seu passado. O roteiro parece sair de uma série de TV com anos no seu currículo, quando o desenvolvimento do personagem já é forte o suficiente para levá-lo em uma jornada como essa — que pode ser ao mesmo tempo emocional e catártica para o público. A protagonista visita sua família na Rússia, quando eles assistiam sitcoms famosas para treinar o inglês, passa pela época em que era um experimento do governo e, finalmente, vê a si mesma quando já estava com os Vingadores, sofrendo para superar a morte do irmão. Apesar da aproximação de Visão e Wanda ser vaga nos longas, aqui existe uma cena que explana muito bem a conexão entre os dois (e como ela surgiu).

WandaVision

Um dos aspectos mais interessantes de Visão: Um Pouco Pior que um Homem, citado no começo do texto, é justamente os pensamentos complexos que o protagonista tem, constantemente lutando para entender seu lugar no mundo e o que significa ser humano, amar e ser amado, passar por perdas e problemas. A série conseguiu captar bem essa complexidade e passar das páginas para as telas. Durante uma das sequências do episódio oito, ele tenta consolar Wanda falando sobre o luto e tentando mostrar empatia pela situação que ela estava, mesmo que ele mesmo nunca tenha passado por nada igual. Se você achou a cena um pouco “awkward” (esquisita, em tradução literal), provavelmente é porque foi mesmo. Como um “robô”, ele não sabe exatamente como consolá-la, mas ao tentar fazê-lo acaba dizendo a coisa certa e os dois, consequentemente, se aproximam. A fala “but what is grief, if not love persevering?” [“mas o que é o luto senão o amor que perdura?”] marcou as pessoas ao ponto do diálogo viralizar na internet e gerar debates sobre o que foi dito, sendo que as respostas foram uma mistura de comentários positivos e negativos.

Por causa da pandemia, WandaVision é a primeira obra da Marvel em mais de um ano e, de certa forma, parece que ela chegou em um tempo muito pertinente. Entre o debate positivo e negativo sobre a fala de Visão, acho que existe um ponto a ser apontado: de que Wanda está passando por algo que milhares de pessoas também estão enfrentando neste momento e, por isso, o diálogo ganhou uma forma quase inesperada. A forma como a cultura pop explora o luto sempre foi um assunto que me interessou e ano passado cheguei até mesmo a escrever sobre, incluindo a forma como Vingadores: Ultimato explorou o assunto. Mas se no filme esse é um tema tocado de forma apenas superficial por uma narrativa de três horas que envolve uma trama megalomaníaca de viagem no tempo, a série conseguiu resumir o sentimento de forma muito mais sucinta e honesta, fazendo com a trajetória de Wanda para entender seu luto, suas perdas e seus traumas fosse mais sensível e intimista — como se faz, geralmente, nas melhores séries de TV.

O que Visão oferece para Wanda, naquele momento, é uma espécie de conforto, uma forma de seguir em frente. E no momento atual que estamos vivendo, é natural que essa fala tenha ficado ou tocado as pessoas no geral — mesmo que outras tenham revirado os olhos para ela e a mesma tenha se tornado um meme. WandaVision funciona como metalinguagem justamente porque entende que o entretenimento é uma forma de escapismo (já que Wanda usa seu amor por sitcoms, e o conforto que elas trazem na sua memória, para criar um mundo perfeito para ela), mas também sabe que ele pode oferecer um sentimento catártico para quem está assistindo. Os dois aspectos podem coexistir.

O desempenho de Elizabeth Olsen aqui pode parecer uma surpresa para quem nunca tinha visto a atriz em outras produções além do seu papel da Marvel, mas essa é a sua segunda série sobre luto e em ambas a atriz consegue passar uma sensação bem honesta e crua sobre o sentimento. Em Sorry for Your Loss, obra do Facebook Watch com apenas duas temporadas, ela vive Leigh, uma jovem mulher que acabou de perder o seu marido. Ao contrário de Wanda, Leigh não tem poderes sobrenaturais e, ao invés de sequestrar uma cidade inteira para criar um cenário perfeito, ela tem que aprender a lidar com sua perda da mesma forma que todos os seres humanos: falando sobre isso, um dia de cada vez. Costurando uma narrativa que mistura o presente com o passado, quando Matt (Mamoudou Athie) ainda estava vivo, o roteiro é cheio de nuances e aponta como a protagonista não aguenta mais sofrer, mas ao mesmo tempo não consegue deixar esse sentimento de lado com medo de perder Matt de vez, como se o sofrimento fizesse dele uma figura ainda presente na sua vida. De certa forma, Wanda achou o equilíbrio para essa sensação. Uma forma de manter Visão ao seu lado, sem nunca esquecê-lo, e parar com o seu sofrimento. Se fosse dada a oportunidade, Leigh também não faria a mesma coisa? Talvez. É impossível não comparar a trajetória das duas personagens que, apesar de serem interpretadas pela mesma atriz, têm personalidades e reações tão diferentes, mas ainda com uma atuação intensa em ambos os casos.

“É como se uma onda tivesse me derrubando de novo e de novo. Ela me derruba e eu tento me levantar, mas acaba vindo outra vez. E acho que ela vai me afogar”

Outro aspecto bem trabalhado na série é a forma como ela usa o luto para unir as pessoas, fazer com que elas se coloquem na situação dos outros e tenham um olhar mais empático pelos sentimentos alheios. Esse momento citado entre Wanda e Visão é um exemplo claro disso, mas a forma como Monica parece lutar para fazer com que a protagonista não se torne uma vilã, também. Tirando Visão, a personagem é a única que entende minimamente o que a protagonista está sentindo. Depois de voltar do “blip” e descobrir que sua mãe está morta, ela se vê completamente perdida e não tem outra escolha a não ser abraçar seu trabalho para ocupar a mente. A natureza do seu relacionamento com Carol Danvers, inclusive, é incerta para o público. Assim, ela cai diretamente em WestView, onde vai investigar o que ou quem está fazendo isso com Wanda. Ao perceber os sentimentos que assolam a protagonista, Monica adota uma postura mais branda para abordá-la, pedindo que ela não deixe ninguém torná-la vilã. A personagem não necessariamente perdoa Wanda pelo o que ela fez com as pessoas daquela cidade, mas parece entender melhor pelo o que está passando, sem taxá-la como louca ou grande perigo.

Além disso, o histórico da Marvel com personagens femininas e as relações que elas carregam entre si é praticamente inexistente. O status mudou um pouco com Capitã Marvel e o relacionamento de Carol Danvers (Brie Larson) com Maria Rambeau (Lashana Lynch) e até mesmo com Guardiões da Galáxia e o dinâmica de Gamora (Zoe Saldana) e Nebula (Karen Gillan), mas no geral desenvolver esse tipo de relação não parece uma prioridade, fazendo com que os momentos “girl power” dos últimos dois Vingadores sejam vazios e superficiais. Mesmo assim, o pequeno elo criado entre Wanda e Monica é interessante, bem como a amizade de Monica e Darcy e, por vezes, até a luta de poder entre Wanda e Agatha.

O maior problema de WandaVision, inclusive, está um pouco nesse último aspecto e no último episódio. O embate final entre Agatha e Wanda é repleto de exposição e CGI. Alguns diálogos não hesitam em ser realmente expositivos sobre o poder de Wanda e, principalmente, sobre o livro Darkhold de Agatha, no qual a protagonista rouba para estudá-lo na conclusão. O momento mais importante da luta caótica entre elas é quando Wanda libera a totalidade do seu poder e se torna, enfim, a Feiticeira Escarlate. Esses momentos, em específico, são o mais perto de uma produção comum da Marvel que a série chega em seus nove episódios, apresentando aquele básico feijão com arroz de sempre. Isso não é problema nenhum, obviamente, mas é impossível não notar que as partes mais interessantes do episódio são aquelas mais subjetivas, como quando Wanda tem que se despedir dos filhos e Visão, deixando-os ir para que ela possa seguir em frente.

WandaVision

O momento em que Wanda levanta o Hex e deixa a população de WestView livre é agridoce, criando uma conclusão emocional para a história de amor que existe entre os dois protagonistas. A personagem está fazendo o que é certo, obviamente, mas o sacrifício é a perda do seu amor e da vida que um dia ela ousou sonhar para si. Não existe um futuro assim para ela no presente (e talvez até no futuro), e a realização disso é dura não apenas para a personagem, mas também para o público que a acompanha e aprendeu a torcer por ela, mesmo que suas ações e o sequestro de uma cidade não tenham sido ações certas. A situação é moralmente ambígua e, no final, é isso que faz com que toda a situação seja tão satisfatória de acompanhar. Essa característica eleva WandaVision, uma ótima série que às vezes flerta com a possibilidade de ser excelente, a uma das poucas produções da Marvel que são reais e acessíveis, onde o heroísmo não necessariamente é perpetuado por uma pessoa com moral inabalável, uma figura como o Capitão América (Chris Evans), mas sim por alguém que errou e, eventualmente, decidiu fazer a coisa certa. Um ser humano, ainda que ele tenha poderes sobrenaturais.

“Você é o pedaço da joia da mente que vive em mim. Você é um corpo de fios e sangue e ossos que eu criei. Você é minha tristeza e minha esperança. Mas mais importante, você é meu amor.”  

O discurso ao redor de WandaVision 

Em um artigo sobre a série, a jornalista Emily VanDerWerff diz: “WandaVision é a primeira produção da Marvel em 18 meses. Naturalmente, não conseguimos parar de falar sobre.”  

O discurso ao redor de WandaVision foi, durante nove semanas, incansável. Se você não visse o episódio no começo da manhã, era melhor permanecer longe das redes sociais até que pudesse se atualizar na trama. Debates sobre a forma como os capítulos eram liberados (com uma parte por semana, como nas séries tradicionais) abriram precedentes para discutir sobre o jeito que consumimos cultura hoje. E as milhares de teorias que pipocaram na internet abriram uma discussão sobre o que hoje é conhecido como “cultura da teoria”.

Apesar de estar situada em um universo querido e gigante — não só quando falamos de quantidade de produções, plots e personagens, mas também de alcance de público — WandaVision parece ser algo completamente novo. Era muito fácil a Marvel adotar a mentalidade “nove episódios que na verdade formam um longo filme”, mas aqui acontece o oposto. A primeira série do estúdio tem exatamente o formato de um seriado de TV, fazendo uma homenagem bem-vinda às fórmulas usadas por sitcoms e entende muito bem os pontos fortes de conduzir uma produção como essa. Os mistérios são resolvidos com pequenas pistas do que está acontecendo e, portanto, o público não sabe exatamente o que está se passando com Wanda durante um bom tempo — se ela é responsável pela sua situação atual ou existe alguém puxando as cordas por trás. Tanto sua situação psicológica, quanto as respostas mais básicas sobre a trama são respondidas ao longo dos nove episódios, sempre de forma gradual, sempre priorizando a jornada da protagonista.

WandaVision é também uma série que liberou seus dois primeiros episódios e depois disso um capítulo por semana. Além disso, apoiou uma boa porção da sua trama em nostalgia para aqueles que gostam de TV — e principalmente sitcoms —, ao mesmo tempo que tentava oferecer uma construção honesta para o luto e as perdas da protagonista, com um viés mais intimista e episódico. Dessa forma, o seriado atraiu dois tipos de público: aqueles que são fãs e acompanham o universo da Marvel e queriam saber mais sobre Wanda, e aqueles que apenas gostam de televisão e estavam lá pela mistura divertida dos elementos apontados acima. Assim, a obra se tornou um híbrido interessante, dando palco para uma discussão pertinente.

Hoje é comum vermos grandes produções que procuram plot twists baratos, apenas com intuito de chocar, ao invés de criar arcos satisfatórios para seus personagens, que uma obra como essa, cujo objetivo passa longe disso, é quase estranha de acompanhar. A prova disso foi a impaciência que as pessoas tiveram na hora de acompanhar a série. “Era melhor terem liberado todos os capítulos de uma vez” era o argumento mais frequente na internet e cada vez mais as pessoas procuravam pelo próximo cameo, ou pelo próximo grande figurão da Marvel que iria aparecer nos episódios. O diretor de WandaVision, inclusive, chegou a dizer que muitas pessoas iam ficar decepcionadas com a conclusão da trama, já que surgiram muitas teorias e a maioria delas não iriam se concretizar. Mas até que ponto essas teorias eram baseadas em rumores absurdos ao invés de pistas deixadas pela narrativa? Se você está acompanhando uma produção e consegue adivinhar uma reviravolta que vem sendo bem trabalhada, isso geralmente quer dizer que ela foi bem feita, sendo que a história foi deixando pequenas pistas para atingir o seu clímax.

Como uma pessoa que gosta de televisão e prefere séries a filmes, sempre ouvi falar da forma como, eventualmente, essas produções da TV — que são de escala menor — iam acabar se tornando uma espécie de blockbuster e perdendo suas qualidades mais charmosas. Durante anos, vi exatamente isso acontecer, ainda que de forma lenta. O caso mais famoso é fenômeno de Game of Thrones: a produção, que começou com um roteiro afiado e inteligente, terminou com uma das piores conclusões já feitas na história, onde os personagens estavam fora de sua essência, tiveram arcos apressados e ridículos e finalizar a história de forma satisfatória foi algo deixado em segundo plano para que os criadores pudessem chocar a audiência, criando uma porção de tramas mal desenvolvidas. A trilogia recente de Star Wars também é um exemplo pertinente que, ao tentar recriar o momento “Luke, I’m your father” entre Luke Skywalker (Mark Hamill) e Darth Vader em O Império Contra-Ataca, acabaram criando um dos plots mais vazios e ridículos dos últimos tempos: Rey Palpatine.

A necessidade de ter uma história com mil reviravoltas e tê-las discutidas na internet de forma incansável hoje é parte da cultura pop e, na maioria das vezes, se isso não existe em uma obra ela é considerada inferior. Mas WandaVision sempre foi honesta sobre o que estava se propondo e, salve alguns pequenos deslizes, os criadores mantiveram sua essência do começo ao fim, nunca dando a entender que talvez existisse algo maior por trás daquilo tudo. Até mesmo a aparição do Pietro de Evan Peters, que viveu o herói na versão dos X-Men da Fox, antes da empresa emergir com a Disney, serve como uma grande piada para essa cultura da teoria, sendo que no final é revelado que ele é, na verdade, um ator chamado Ralph Boner, contratado por Agatha para confundir Wanda. E analisando a história da série e seus nove episódios, isso bate muito mais com o que foi proposto pela trama do que um plot twist absurdo de que ele tivesse vindo de um universo paralelo (ou seja lá qual fosse a teoria do momento).

No final, toda produção cultural quer dizer alguma coisa. Umas fazem um trabalho melhor em transmitir sua mensagem, outras acabam deixando a desejar. Mas uma coisa é certa: se tudo que uma obra tem a oferecer são reviravoltas meia boca, não existe nada muito válido para se explorar ali. WandaVision está longe de ser um grande conglomerado de tramas vazias, no entanto. A série com certeza não é perfeita, mas dá para perceber que as pessoas por trás dela (dos roteiristas, diretores e até os atores) queriam contar algo que falasse com as pessoas em geral — fossem os fãs da Marvel ou aqueles que chegaram agora. E mesmo se toda a conversa ao redor da série tenha sido cansativa e muito (muito) longa, foi também estimulante de acompanhar: como aponta VanDerWerff, quando falamos de WandaVision não estamos falando apenas da série em si, mas também da forma como consumimos cultura no geral.

O que o futuro reserva para Wanda Maximoff?

Na conclusão dos nove episódios, Wanda desfaz o Hex, se despede do marido e dos seus filhos e está pronta para seguir em frente. Com sua nova identidade como Feiticeira Escarlate (que tem direito também a um novo uniforme) e com o Darkhold nas mãos, fica claro que seu futuro dentro da Marvel ainda é importante. Sua presença no próximo filme do Doutor Estranho, intitulado Multiverse of Madness, já foi confirmada e talvez alguns dos eventos da série possam afetar o que veremos na produção, que será dirigida por Sam Raimi e tem previsão de estreia para 2022.

Durante o final de WandaVision, Agatha diz que a magia de Wanda é a do “caos” e que ela tem potencial para trazer destruição ao mundo. Tenho mil e uma ressalvas sobre utilizar o luto e a perda de uma personagem feminina para transformá-la em uma vilã, começando pelo fato de que muitas narrativas já o fizeram antes. Muitas mesmo. Só nos últimos anos, por exemplo, tivemos uma nova versão da Fênix Negra — que explora a perda de controle de Jean Grey (Sophie Turner). Com Wanda, esse estereótipo é ainda pior pois sua característica “vilanesca” surge porque ela passa por um momento de desestabilidade emocional e, não conseguindo segurar seus sentimentos e seus poderes, acaba destruindo e matando muitas pessoas. No geral, não vejo problema nenhum em ter personagens femininas como vilãs, mas o fato é que a Marvel não tem o melhor histórico cristalino com suas heroínas e a forma como contam suas histórias. Da hipersexualização de Viúva Negra até o seu sacrifício, passando pela morte de Gamora e a forma como Wanda foi negligenciada pela trama, existe um buraco enorme na forma como elas foram tratadas — e que eles vem tentando mudar nos últimos tempos.

Existe uma possibilidade real de que Wanda seja a vilã do próximo filme do Doutor Estranho, sendo que sua brincadeira com o Hex possa ser o catalisador para criar o tão esperado “multiverso”. Mas não acho que esse é o caso aqui (ou realmente espero que não seja). WandaVision passa uma grande parte da sua história tentando humanizar os sentimentos de Wanda. Não necessariamente tentando apaziguar o que ela fez e a seriedade dos seus atos, mas colocando uma visão empática sobre o que aconteceu com ela e a forma como lidou com isso. Colocá-la como vilã em Multiverse of Madness seria um retrocesso para a protagonista, em mais de uma forma. É importante lembrar que quando ela fez seu debute no MCU, Wanda já era uma espécie de vilã, sendo que ela evoluiu, teve uma pequena redenção, entrou para os Vingadores e sempre tentou fazer o bem. Regredi-la ao status de vilã é um retrocesso para sua jornada e, ainda por cima, reforça a mensagem de que uma pessoa é definida por suas dificuldades, perdas e luto.

Uma das mensagens de WandaVision é que o luto não é algo que define uma pessoa, mas a molda. Se Wanda assumisse o papel de vilã isso não seria justamente o contrário do que eles se esforçaram para trabalhar na série? Apesar de estar conectado por um grande universo, os filmes da Marvel são bastante episódicos entre si. Você pode, por exemplo, amar Thor: Ragnarok e mesmo assim não ter curtido Homem-Formiga e A Vespa. Isso quer dizer basicamente uma coisa: as produções estão nas mãos de criadores diferentes, com visões muito diferentes do que vem a seguir. Por isso, a próxima pessoa que for lidar com Wanda pode muito bem ter em mente uma visão mais cínica para a personagem — uma visão que não necessariamente condiz com a que foi criado em WandaVision. Pode ser até mesmo que, no final, Ralph Boner não exista e o Pietro de Evan Peters seja apenas… o Pietro. Nunca se sabe.

Não há como prever o que vai acontecer a seguir, mas espero que Wanda possa continuar a ser honesta sobre seus sentimentos e que consiga seguir em frente, ao mesmo tempo que tenha que arcar com as consequências do que aconteceu em WestView. Talvez ajudar o Doutor Estranho com seus poderes bem trabalhos seja uma forma de se redimir. Uma coisa é certa: estou torcendo para que a Marvel não deixe-a sofrer ainda mais e que, pelo menos uma vez, ela encontre um pouco de paz. Afinal, o estereótipo da “personagem feminina forte” que só é forte porque sofre é algo muito batido e ultrapassado.

Wanda Maximoff, ou a Feiticeira Escarlate, sempre foi uma personagem com um potencial claramente imenso — que foi ignorado seja pelas circunstâncias ou por elementos ainda maiores. Pode ter demorado para ela ganhar um espaço pertinente no universo Marvel, mas esse momento finalmente chegou e ele não decepciona. WandaVision é uma celebração sobre fórmula, um estudo sobre perda e luto e a conclusão emocional de uma história de amor (pelo menos por enquanto). Mas é também um belo início para a empreitada da Marvel na TV e um passo importante na história de Wanda, que hoje, mais de cinco anos após sua introdução em Vingadores: Era de Ultron, finalmente merece o título de personagem mais poderosa do seu universo — talvez não só por causa dos seus poderes, mas também pela forma como sua trajetória foi abordada.