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Carol Danvers, Capitã Marvel e a problemática da feminilidade

Não é fácil discutir feminilidade. Para falar a verdade, essa é e continua sendo uma das grandes questões que dividem as vertentes feministas em um espectro que vai desde o feminismo liberal, para o qual tudo é uma questão de livre escolha e tudo bem, até formas mais radicais (radical vindo de “raiz”, sempre importante explicar) que reconhecem na feminilidade uma das formas de manutenção e manifestação do patriarcado, passando por uma visão pós-moderna que encara a feminilidade como performance. Tudo isso, claro, simplificando completamente um debate que é muito mais complexo e cheio de nuances do que isso. A intenção desse texto não é aprofundar esse debate ou tomar partidos, e sim analisar o modo como a feminilidade é retratada em Capitã Marvel, especialmente no que tange à representação de sua protagonista, Carol Danvers, interpretada pela tão amada e tão odiada Brie Larson.

Antes mesmo do lançamento, Capitã Marvel já começou a causar polêmica no meio nerd por nada mais, nada menos, que o fato de que a atriz principal aparecia em todos os materiais de divulgação com expressão séria. Que absurdo uma mulher que não está sorrindo o tempo todo! Pode parecer um detalhe bobo e irrelevante para alguns, mas essa discussão carrega um simbolismo muito forte a respeito do comportamento esperado de mulheres na sociedade. A questão aqui é muito mais profunda do que parece à primeira vista, e o que se observa durante o filme, ainda que de forma sutil, vai no mesmo sentido.

Atenção: o texto a seguir contém spoilers!

Carol Danvers não está sorrindo nem nos materiais de divulgação e nem em boa parte do filme simplesmente porque isso não faria sentido. Uma mulher que não lembra nada sobre o próprio passado e acaba descobrindo, do mais absoluto nada, que tudo o que ela considera verdade é mentira; que ela foi basicamente sequestrada da sua própria vida e das pessoas que ama para ser levada para outro planeta, onde seus poderes foram limitados e usados como forma de controlar o seu comportamento, não tem realmente muitos motivos para estar rindo à toa. Ela é apenas mais uma no meio de um universo vasto de super-heróis com histórias de origem trágicas, e o único motivo pelo qual o público espera que ela esteja sorrindo é para corresponder às expectativas sociais a respeito do comportamento de uma mulher.

Sorte nossa, as afrontas de Carol ao patriarcado não terminam por aí. Apesar de Brie Larson estar absoluta e completamente dentro dos padrões estéticos vigentes, Carol Danvers não parece comprar o padrão de feminilidade de nossa sociedade — para uma explicação breve e didática sobre essa diferença, recomendamos esse vídeo da Louie Ponto. Para começar, a personagem rejeita expressamente as roupas canonicamente “femininas”, projetadas para dificultar nossa mobilidade e nos tornar mais frágeis e vulneráveis. Isso vai desde saias curtas e apertadas que limitam a possibilidade de abertura das pernas, que nos obrigam a ficar preocupadas o tempo inteiro em não mostrar “mais do que deveríamos”, até saltos altos que basicamente impossibilitam qualquer tentativa de fuga em caso de necessidade — necessidade essa que, para nós, não é uma possibilidade tão remota.

Carol Denvers fazendo "hanglose"

Essa visão da beleza e da feminilidade é explorada e aprofundada no livro O Mito da Beleza, de Naomi Wolf. Na obra, a autora analisa a posição do discurso da beleza e da feminilidade como forma de controle social exercido massivamente sobre as mulheres estadunidenses, especialmente após a segunda onda feminista, na qual muitas mulheres (importante ressaltar: em grande parte brancas e de classe média) começaram a questionar as limitações socialmente impostas a elas e o papel que ocupavam nessa sociedade.

Carol Danvers, em diversos níveis, recupera essas reflexões e busca romper com o padrão de feminilidade sem dar satisfações a ninguém, mesmo antes de sofrer o acidente no qual desenvolve seus superpoderes. Isso vai muito além da aparência: ela exerce uma profissão de alto risco e que exige habilidades físicas e mentais que normalmente não são consideradas ao alcance de mulheres; ela não é doce, frágil ou indefesa; ela não faz nenhuma questão de sorrir e ser agradável com ninguém; não tem “bons modos”, não demonstra um pingo de delicadeza, seja na parte corporal ou no comportamento; não veste roupas da seção feminina das lojas. Por último, mas não menos importante (muito pelo contrário): ela não tem e não parece estar interessada em ter um interesse romântico.

Para nós, membros da comunidade LGBTQ+, ávidas por representação decente e relevante nas nossas obras do coração, não deixou de ser uma decepção o fato de o relacionamento entre Carol e Maria Rambeau (Lashana Lynch) não ser canônico. As interações entre as duas, especialmente em flashbacks, são, na maior parte do filme, bem sugestivas de que algo diferente acontece entre as duas, só que mais tarde fomos decepcionadas nas nossas expectativas. De qualquer forma, é possível enxergar tanto aspectos positivos quanto negativos para esse grande desapontamento sofrido. Em primeiro lugar, o reforço na mensagem de que existem sim amizades verdadeiras entre mulheres, mulheres que apoiam mulheres, que formam famílias sem que isso signifique que estejam romanticamente envolvidas. Rever nosso conceito de família nuclear também é uma questão urgente. Romântica ou não, a relação entre Carol e Maria é linda, verdadeira, e profunda.

No lado negativo da balança, temos mais uma oportunidade de representação perdida (ou, pelo menos, adiada — porque o sonho é meu e eu escolho acreditar), e uma situação geral que beira perigosamente o queerbaiting.

Carol Denvers e Maria Rambeau

Ainda nesse quesito, nunca é demais lembrar que a própria heterossexualidade é um elemento importante da ideologia da feminilidade. Nesse quesito, a ambiguidade performática de Carol Danvers aparece como mais um desafio ao status quo, mesmo que no fim ela nunca revele sua orientação sexual e mantenha o foco absoluto no trabalho.

Finalmente, outro ponto positivo dessa omissão calculada da orientação sexual da personagem é a separação que isso traz entre a performance de gênero e a orientação sexual. Ao não entrar nessa questão, a obra traz a possibilidade de representação e validação cultural para meninas e mulheres que não performam feminilidade, independentemente de sua orientação sexual. Afinal, é perfeitamente possível não performar feminilidade e ainda assim ter interesse romântico e/ou sexual por homens. Ou por mulheres. Ou por qualquer pessoa independente do gênero. Ou por ninguém.

No fim das contas, o que vemos em Carol Danvers e em Capitã Marvel é o começo de uma ruptura com o modelo da mulher universal que não vimos em Mulher-Maravilha. Enquanto Diana Prince (Gal Gadot) corresponde com perfeição a quase todos os requisitos da feminilidade e cumpre suas missões cercada por homens e ao lado (quase guiada) de seu interesse romântico, Carol Danvers pisa em tudo o que se espera dela e tem os lugares mais importantes da sua vida ocupados por mulheres. Sendo assim, não é à toa que ela desagradou muita gente.

Que fique claro: não estou aqui comparando mulheres e estimulando nenhum tipo de rivalidade entre as personagens, estou comparando obras e a mensagem política passada por elas. Tudo é político e esse tipo de “detalhe” importa muito, tanto como um indicativo dos nossos pequenos progressos rumo a uma sociedade mais igualitária, quanto como um instrumento a mais na construção dessa sociedade que tanto desejamos.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.