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De Sofia Coppola a David Fincher: os melhores filmes de 1999

Em Best. Movie. Year. Ever., o jornalista Brian Raftery aponta que 1999 foi o melhor ano da história do cinema contemporâneo, sobretudo para o cinema hollywoodiano. Às vésperas de um novo milênio, a indústria cinematográfica estadunidense tornou-se capaz de transpor os próprios limites, criando narrativas que eram, em si mesmas, grandes desafios. Em um mundo que se transformava rapidamente, as criações daquele ano, embora longe de serem uma unanimidade, foram o primeiro passo na direção  do cinema que hoje conhecemos; um cinema capaz de ultrapassar barreiras econômicas, tecnológicas e mesmo imagéticas.

Naquele momento, contudo, parecia pouco provável que o último ano do século XX viria a ser tão importante, dividindo espaço com anos como 1939 e 1974, essenciais à história do cinema. Era difícil prever que aqueles filmes (e, principalmente, quais) se tornariam fenômenos, instantâneos ou tardios, e que transformariam o modo de se fazer cinema. Vinte anos depois, é desnecessário dizer que muito mudou; que a maneira como nos relacionamos com o cinema sofreu mudanças profundas, moldadas por novos padrões de comportamento e consumo. Mas enquanto muitas obras se tornaram obsoletas com o passar dos anos, sendo lembradas muito mais por apego e nostalgia, outras permanecem tão relevantes quanto à época de seu lançamento, revelando ora seu caráter atemporal, ora a face de uma sociedade que, embora em constante transformação, permanece, de muitas formas, a mesma. Entre as muitas incertezas que guardam uma nova década, alguns filmes continuam a ser certezas possíveis.

10 Coisas Que Eu Odeio em Você, de Gil Junger

cinema 1999

Baseado livremente em A Megera Domada (The Taming of the Shrew, no original), de William Shakespeare, 10 Coisas Que Eu Odeio em Você atualiza a história de Catherine e Petruchio, transformando-a em uma adorável comédia romântica adolescente que mantém apenas o essencial do texto de origem. Embora carregado de referências bastante óbvias — que vão desde o sobrenome dos personagens até o nome da escola onde estudam —, o filme nunca se torna refém delas, dispensando com facilidade vários dos aspectos mais controversos da narrativa original para dar lugar a uma trama que não apenas renova a obra original como também o torna consideravelmente mais interessante.

Muito disso, claro, vem da própria heroína, Kat (Julia Stiles), uma adolescente muito consciente das injustiças socialmente impostas às mulheres e que por vezes se apresenta como uma típica feminista raivosa (com alguma razão), mas que jamais se limita a sê-lo. Diferente da versão shakespeariana, tão profundamente misógina, 10 Coisas Que Eu Odeio em Você não faz de Kat uma mulher que precisa de um homem para ser domada, nem torna Patrick (Heath Ledger) um abusador como Petruchio. Kat não precisa mudar para ser amada, ao passo que o amor entre ela e Patrick nasce justamente porque ele a respeita e a aceita como ela é. 10 Coisas Que Eu Odeio em Você é uma história de amor, mas é uma história de amor muito consciente de si mesma e de seus personagens, cheio de citações realmente fantásticas e referências que, vinte anos depois, continuam mais fortes do que nunca.

A Bruxa de Blair, de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez 

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Em 1994, três estudante de cinema supostamente desaparecem em uma mata nas proximidades da pequena Burkittsville, em Maryland, enquanto gravavam um documentário sobre a lenda da bruxa que atormentava a região. Nenhum deles é visto novamente, mas o material que filmaram é misteriosamente encontrado um ano após o desaparecimento, e é esse material que compõe A Bruxa de Blair. Naturalmente, trata-se de uma obra fictícia — até mesmo o mistério sobre a bruxa fora criado especialmente para o projeto —, mas é precisamente ao se ancorar na ideia do que pode ser real, que aquilo poderia ter acontecido em algum lugar de verdade, que a obra consegue ser inovadora em um gênero que vinha vivendo uma péssima fase.

Ao contrário do que muito se acredita, A Bruxa de Blair não foi o primeiro filme realizado em formato found footage (o gênero existe desde meados de 1980, com o lançamento de Holocausto Canibal), mas foi o primeiro a fazê-lo em tamanha dimensão, aliando uma história intrigante e a perspectiva dos próprios personagens à ferramentas midiáticas ainda muito novas e, por isso, pouco exploradas — em especial a internet que, alicerçada ao enredo intrigante, o tornaram um verdadeiro fenômeno. É verdade que muito do seu sucesso foi uma consequência do momento específico no qual fora lançado e que a exata estratégia de divulgação provavelmente não funcionaria dentro dos mesmos moldes hoje. Ainda assim, A Bruxa de Blair continua um filme memorável, que saiu da curva e obteve sucesso com isso, consequentemente abrindo espaço para que outras pessoas fizessem o mesmo. Se o terror voltou a ser um espaço de experimentação, saindo das amarras dos grandes estúdios para se aventurar no cinema independente, com seus baixíssimos orçamentos e textos mais orgânicos, A Bruxa de Blair pode ser visto como um divisor de águas.

As Virgens Suicidas, de Sofia Coppola

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Estreia de Sofia Coppola como diretora, As Virgens Suicidas é a adaptação cinematográfica do romance homônimo de Jeffrey Eugenides, publicado pela primeira vez em 1993, que narra a história das irmãs Lisbon, cinco garotas criadas sob a rédea curta de pais muito rígidos e tradicionais. Como no livro, a história é contada a partir do olhar dos garotos da rua, que se encantam pelas jovens e a aura de mistério que as envolve. Mas o que poderia ser um limitador é, na realidade, onde se sustentam questões mais complexas sobre o que acontece longe dos olhos da vizinhança. Diferente do condescendente médico que afirma que uma garota de 13 anos não teria idade para pensar em suicídio, que sua vida não poderia ser trágica o suficiente para isso, o filme contrapõe linhas de pensamento semelhantes e mostra que a realidade adolescente é muito mais complexa e delicada do que pode parecer.

Embora a história não estabeleça definitivamente o que leva as irmãs a cometerem suicídio, Sofia Coppola captura o universo adolescente — e, principalmente, o das garotas adolescentes — com muita precisão e sensibilidade, sugerindo o que poderia tê-las levado até aquele ponto sem, no entanto, apontar dedos ou analisar possíveis motivos de maneira isolada. O mesmo acontece ao abordar o fascínio que a tristeza das meninas suscita nos garotos da região, que perdem de vista o que existe de mais humano em cada uma delas. Muitas das cenas que se originam em suas fantasias são propositalmente ambientadas em paisagens bucólicas, onde as meninas dançam e trançam os cabelos umas das outras; a maneira ingênua e deslocada que visualizam uma realidade tão mais complicada e triste. Como adianta o título, As Virgens Suicidas não é um filme feliz, mas elabora uma reflexão que poucos ainda se propõe a fazer, além de permitir um primeiro vislumbre das características que, mais tarde, se tornariam marcas registradas da obra de Sofia Coppola.

Clube da Luta, de David Fincher

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Embora particularmente tenha muito mais apreço pela obra literária do que por sua versão cinematográfica, não há dúvidas de que Clube da Luta foi — e continua sendo — um dos filmes mais importantes e influentes das últimas décadas. Dirigido por David Fincher, também responsável por títulos como Garota Exemplar (2014) e A Rede Social (2010), e estrelado por Edward Norton, Brad Pitt e Helena Bonham Carter, o filme foi um curioso fiasco de bilheteria que converteu-se em clássico cult e alcançou sucesso comercial somente após o lançamento em DVD — o que pode ser parcialmente explicado pela sensação de desconforto causada pelas projeções.

De fato, Clube da Luta é um filme tão violento quanto sugere seu título, mas não se trata de uma violência gratuita; pelo contrário, a dor serve como ponto de ancoragem para personagens à deriva em um sistema que tenta incansavelmente engoli-los e a violência como metáfora para o conflito de uma geração que não consegue se encaixar em expectativas pré-determinadas e sua brutal tentativa de romper com o status quo. O Narrador (Norton), que é também o protagonista, propositalmente não recebe um nome: ele poderia ser literalmente qualquer pessoa, um homem comum em um emprego estável vivendo uma vida de confortos triviais. É a presença de Tyler (Pitt) que balança as estruturas de uma vida anteriormente muito ordeira, mas sem qualquer significado e que, em consequência, o leva a questionar suas escolhas, que tipo de papel está desempenhando e quem ele realmente é — um processo conduzido com muita minúcia tanto do ponto de vista narrativo quanto estético. Como qualquer adaptação, Clube da Luta guarda algumas diferenças em relação ao material de origem, mas nada que o torne inferior, apenas diferente desta. Em essência, o filme mantém-se fiel à mensagem contida na obra homônima de Chuck Palahniuk, abordando questões que permanecem, ainda hoje, incômodas e, por isso mesmo, extremamente relevantes.

Garota, Interrompida, de James Mangold

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Adaptação do livro de memórias homônimo, Garota, Interrompida narra o período em que Susanna Keyes (Winona Ryder) esteve no Hospital Psiquiátrico McLean após uma tentativa de suicídio, no final da década de 1960. Enviada para a instituição por um psiquiatra que havia acabado de conhecê-la, a estadia, que deveria ser de algumas semanas, logo se expande para pouco mais de um ano, tempo no qual Susanna vive diversas experiências, e são elas que, por fim, a transformam tão profundamente. Muito disso deve-se às pessoas com quem se relaciona e a quem também observa: de pacientes a funcionários, os relacionamentos construídos ao longo do filme são o que de fato dão vida à história e fornecem diferentes perspectivas à protagonista de um mundo que por vezes estava restrito a uma visão bastante limitada.

Observar a evolução de Susanna, tanto em relação ao seu transtorno quanto como ser humano, é muito significativo. Mas se Susanna é a protagonista inegável, James Mangold acertadamente reserva algum tempo para personagens secundárias, que recebem mais ou menos atenção, mas estão sempre presentes e têm a chance de falar sobre seus problemas e expressar suas angústias — às vezes, apenas com um olhar. Garota, Interrompida faz jus ao seu elenco de peso, que conta com nomes como Whoopi Goldberg, Angelina Jolie, Brittany Murphy e Elisabeth Moss, traçando narrativas para todas e não se restringindo apenas à protagonista. Somada a atuações realmente memoráveis, o sucesso de suas personagens secundárias foi notório até mesmo para Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, e foi com o papel da coadjuvante Lisa, uma personagem tão complexa quanto complicada, que Angelina Jolie recebeu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante durante a primeira cerimônia do novo milênio.

Joana d’Arc, de Luc Besson

Menos lembrado do que outras produções lançadas à mesma época, Joana d’Arc remonta a história da heroína francesa canonizada pela Igreja Católica, abrangendo um período de aproximadamente dez anos — da infância, quando passou a relatar a escuta de vozes divinas, até a morte, quando foi acusada de heresia e queimada na fogueira. O filme, no entanto, concentra-se nos anos finais de sua vida, quando conheceu o ainda delfim Carlos VII (John Malkovich), posteriormente coroado rei da França, numa época em que Joana (Milla Jovovich) já era bastante conhecida entre os franceses, e também quando realizou a maior parte de seus feitos, lutando junto ao exército francês contra as tropas inglesas.

Muitas liberdades são tomadas pelo roteiro, que funciona melhor como uma obra de ficção do que como referência histórica. Muitos fatos (como a morte de sua irmã mais velha, Catherine, que atormenta a protagonista durante o filme) e datas são alterados de maneira deliberada, enquanto outros se misturam a histórias nunca confirmadas, como o seu primeiro contato com o delfim, quando teria sido capaz de identificá-lo em uma sala lotada de nobres sem jamais tê-lo visto e sem nada que o destacasse. Mais interessante, porém, é perceber como o filme destaca a ferocidade da personagem-título em campo de batalha — contrariando a ideia de que ela jamais teria lutado — e como a constrói como uma mulher multidimensional e passível de erros — escolhas que não apenas tornam a narrativa mais envolvente como ajudam a explicar por que, até hoje, Joana d’Arc continua a ser um dos maiores nomes da História da França.

Matrix, de Lana e Lilly Wachowski

Primeiro filme da trilogia de mesmo nome, Matrix foi o pontapé inicial do que logo se transformaria em um fenômeno global. Mundialmente, o filme arrecadou pouco mais de 400 milhões de dólares, num momento em que o cinema perdia cada vez mais espaço como alternativa de entretenimento, tornando particularmente difícil alcançar as somas milionárias que hoje nos parecem cada vez mais comuns — o que não é uma surpresa. Matrix revolucionou o cinema de muitas maneiras, de seus efeitos visuais à narrativa que traz como referência ideias que vão da filosofia de Platão ao cristianismo e ao budismo, passando pelos conceitos de simulação e simulacro propostos pelo sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard, introduzidas a um público não necessariamente familiarizado com esses conceitos.

Às vésperas de um novo milênio, Matrix fala diretamente a uma geração que acompanhava as muitas mudanças ocorridas naquele período, ao mesmo tempo em que fala também sobre essas pessoas; uma geração de que vivia num mundo pré-rede sociais, que acreditara no bug do milênio e que ainda não havia vivenciado a tragédia do 11/09. É muito fácil entender por que essas são as leituras mais recorrentes do filme, que de fato propõe um diálogo a respeito desses temas (às vezes, de maneira bastante óbvia) e que, de certa forma, continua a promovê-lo mesmo 20 anos depois, se adaptando aos questionamentos de uma nova geração — porque seu discurso continua, de fato, muito atual. Mais recentemente, no entanto, Matrix tem possibilitado uma nova interpretação dos fatos, que leva em consideração as experiências pessoais de Lilly e Lana Wachowski, responsáveis tanto pela direção quanto pelo roteiro do longa, como mulheres transexuais. Em 1999, tanto Lilly quanto Lana ainda não haviam se revelado publicamente como mulheres trans, mas como argumenta Emily na Vox, em um relato sobre a importância do filme em sua própria experiência enquanto mulher trans, Matrix captura de maneira brilhante a vivência de uma pessoa trans que ainda está se descobrindo como tal — e, em uma história que fala tanto sobre a capacidade do ser humano de transcender o próprio corpo, a surpresa é que tenhamos levado tanto tempo para olhar a obra sob essa perspectiva.

Meninos Não Choram, de Kimberly Peirce

Em 1993, Brandon Teena, um jovem transexual de apenas 21 anos, foi espancado, violentado e assassinado por dois homens do seu círculo social. Ambos foram condenados pelo crime — um, à prisão perpétua, em 1995; o outro, à pena de morte, em 1996 —, mas o caso deixaria uma marca permanente na história do país, tendo sido, em 2013, considerado um dos maiores e mais hediondos crimes de ódio já cometidos nos Estados Unidos. Mesmo nos anos subsequentes, quando a transexualidade era debatida menos abertamente do que hoje, a morte de Brandon reverberaria enormemente, sendo amplificada pela mídia e relembrada em diferentes produções artísticas, como na música “Girls Don’t Cry”, da dupla britânica Pet Shop Boys, e em biografias e documentários, como no filme The Brendon Teena Story, de 1998.

Meninos Não Choram, filme da cineasta norte-americana Kimberly Peirce, é tanto parte do legado de Brandon quanto uma homenagem. Filmado em 1998, o processo de produção do filme começou muito antes, quando Pierce ainda estava na faculdade e, ao ler sobre o caso, iniciou um extenso trabalho de pesquisa para criar um roteiro que pudesse dramatizar a vida de Brendon para além do crime brutal do qual fora vítima, e todo o processo de produção foi bastante demorado. Como um filme independente, Meninos Não Choram foi realizado com um orçamento de apenas dois milhões de dólares, com pessoas trabalhando porque acreditavam naquela história e na importância de contá-la, e não porque estavam sendo pagos, como Hilary Swank viria a lembrar na cerimônia do Oscar em 2000, quando recebeu a estatueta de Melhor Atriz pelo papel do protagonista, e por isso todo o cuidado, toda a delicadeza na construção da história, são perceptíveis para além da projeção. Mesmo com um lançamento limitado e uma restrição etária igualmente limitante, Meninos Não Choram tornou-se um sucesso de bilheteria, foi reconhecido por premiações importantes, entre elas o já citado Oscar, que naquele ano também indicaria Chloe Sevigny na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante; o Globo de Ouro, o Screen Actors Guild, o BAFTA e o Critics Choice Awards.

Mais importante do que números de bilheteria e grandes premiações, no entanto, a história de Brendon Teenan é, mesmo hoje, um lembrete do quanto ainda precisamos caminhar em busca de uma sociedade mais justa, pacífica e igualitária. Nas palavras de Hilary Swank: “(…) Seu legado vive no filme para nos lembrarmos de sempre sermos nós mesmos, de seguir nossos corações e não nos conformarmos. Rezo pelo dia em que não apenas aceitemos nossas diferenças, mas celebremos toda a nossa diversidade.”

O Homem Bicentenário, de Chris Columbus

Baseado no conto homônimo de Isaac Asimov, O Homem Bicentenário narra a história de Andrew (Robin Williams), um robô que passa a viver com uma família realizando pequenas tarefas domésticas e reparos gerais. Como qualquer novidade, a presença de Andrew é tratada de diferentes maneiras por diferentes membros da família: há a atração e a curiosidade, mas também existe a rejeição e a grosseria. Eventualmente, Andrew se adapta à rotina familiar e, mais do que isso, passa a exibir reações inesperadas para uma máquina. O que é visto como uma falha por seu criador, contudo, é tratado como uma habilidade extraordinária por seu dono, e é sob sua tutela que Andrew começa a aprender mais sobre os humanos e desenvolver emoções e sentimentos próprios até tornar-se um ser independente e tão humano quanto qualquer pessoa de carne e osso.

Mais do que a história de um robô que se torna cada vez mais humano, O Homem Bicentenário é uma potente reflexão sobre o que de fato nos faz humanos; uma história sobre liberdade e amor, sobre a importância dos relacionamentos que desenvolvemos uns com os outros, sobre a morte e o significado de estar vivo. É verdade que o filme não alcançou seus objetivos financeiros, tendo um desempenho fraco de bilheteria, sequer suficiente para cobrir os custos da produção. Entretanto, se a ficção científica sempre foi um gênero capaz de propor discussões essenciais a partir de cenários futurísticos, O Homem Bicentenário continua uma história tão importante quando à época de seu lançamento, e em suas mais diferentes formas.

O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan

Lembrado principalmente pela icônica fala de Haley Joel Osment como o pequeno Cole Sear, O Sexto Sentido é, em essência, um filme de terror e uma história sobre fantasmas, mas uma história sobre fantasmas em que eles não exatamente desempenham um papel central, sendo muito mais um meio para um fim do que o próprio fim. Como A Bruxa de Blair, O Sexto Sentido representou um ponto de virada para o cinema de terror, mas onde o primeiro era inovador, a obra de M. Night Shyamalan demonstrou o quanto o gênero poderia ser um sucesso também em sua forma mais tradicional.

A história do homem atormentado, excessivamente ligado ao trabalho e com um casamento aparentemente fracassado não é uma narrativa nova e tampouco o era no longínquo ano de 1999. Mas dos sustos bem utilizados ao seu desfecho surpreendente, passando por atuações realmente impecáveis, M. Night Shyamalan traça uma obra que consegue converter o comum em algo excepcional. Não é uma surpresa que o filme tenha sido uma das maiores bilheterias daquele ano e a maior do cinema de horror até 2017, quando da estreia de It, atual detentor do recorde, ou que tenha sido indicado às principais categorias do Oscar no ano seguinte, incluindo as categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Ator Coadjuvante, com Haley Joel Osment, e Melhor Atriz Coadjuvante, com Toni Collette.

Tarzan, de Chris Buck e Kevin Lima

A história do bebê órfão criado por macacos até a vida adulta não é, de maneira alguma, nova. Criado pelo norte-americano Edgar Rice Burroughs, Tarzan teve seu primeiro volume publicado em 1912 e, desde então, protagonizou inúmeras aventuras em livros, contos avulsos e outras tantas produções para o cinema e para a televisão. Apesar do inegável sucesso, é impossível não considerar os problemas da obra original que, entre outras coisas, retrata o continente africano como um lugar de exotismos e sem quaisquer nuances, reforçando a discriminação e o preconceito perpetuado pelos europeus e seu descendentes até os dias de hoje — como o próprio Burroughs, um homem branco que jamais havia sequer pisado no continente.

Tarzan, a animação, em contrapartida, consegue se desvencilhar de muitos desses problemas, transpondo-os com considerável desenvoltura. Desde a origem do personagem até o seu desfecho, muitos dos elementos da história original são alterados de modo a torná-la não apenas mais condizente e relativamente engajada socialmente, mas também positiva. Assim, mais do que uma aventura envolvente com personagens cativantes, Tarzan trabalha temáticas complexas como amor e respeito dentro de um contexto que permite compreendê-las não como exclusivas aos seres humanos, mas necessárias também aos animais e à natureza como um todo. Da família adotiva do protagonista aos seus amigos e até mesmo a fêmea leopardo que mata sua família biológica, o roteiro trata a todos com muita sensibilidade, reconhecendo que as leis que regem a selva podem ser cruéis, mas que, na luta pela sobrevivência, todas as vidas merecem amor e respeito. A única figura a fugir dessa regra é Clayton (Brian Blessed), o caçador e maior representação do colonizador branco, que, não por acaso, é também o grande vilão da história. A maior ameaça ao meio ambiente, afirma o roteiro, não são os animais que precisam de outros para garantir a própria sobrevivência, mas aqueles que assassinam a natureza em nome da própria ganância.

Toy Story 2, de John Lasseter

Após o sucesso do primeiro filme da franquia, Toy Story 2 coloca Woody (Tom Hanks) e Buzz Lightyear (Tim Allen) novamente sob os holofotes, em uma aventura que diz tanto ao público infantil, quanto a todo o público além dele. A partir do roubo de Woody por um colecionador de brinquedos, o projeto — que começara como uma produção menor, a ser lançada diretamente em vídeo — cresceu de maneira surpreendente, alçando voos maiores do que aqueles realizados anteriormente. Não é uma surpresa que, embora Toy Story tenha se tornado um enorme sucesso, Toy Story 2 tenha conseguido superá-lo em termos narrativos, mantendo sua essência sem deixar que o fato de ser uma sequência o tornasse menor em comparação.

O fato de abordar temas como o abandono, a obsolescência e o verdadeiro papel dos brinquedos na vida de uma criança levam o filme a confrontar e desafiar crenças que, ao menos até aquele momento, não pareciam fazer parte daquele universo. Como alguém que sempre estivera restrito aos limites da casa de Andy (John Morris), não é de se espantar que a experiência de estar em um ambiente novo desencadeie uma série de questionamentos em Woody, que percebe e se encanta com as novas possibilidades que lhe são oferecidas — estar em um museu de brinquedos, afinal, significaria estar protegido da possibilidade de ser deixado de lado ou ser eventualmente descartado. Mas é também verdade que, uma vez ali, ele jamais teria o amor de uma criança, e é dessa maneira que ele chega à conclusão de que aquele nunca fora o seu lugar; uma metáfora poderosa que não se limita às experiências de um brinquedo. Se, anos mais tarde, Woody e seus amigos são novamente confrontados pela perspectiva do abandono, não é exagero afirmar que isso só aconteceria porque, muitos anos antes, Toy Story 2 já se propunha a trabalhar essas questões, permitindo que elas crescessem e amadurecessem com o seu público, tornando-os uma parte intrínseca também das nossas histórias.

Um Lugar Chamado Notting Hill, de Roger Michell

Dentre as muitas comédias românticas estreladas por Julia Roberts ao longo da década de 1990, Um Lugar Chamado Notting Hill talvez seja a minha favorita: despretensiosamente complicada, diferente sem deixar de ser confortável e adoravelmente absurda, a história da famosa atriz que se apaixona pelo dono de uma pequena livraria em Londres não apenas funciona como um entretenimento leve, como promove reflexões que continuam a reverberar, em especial no que diz respeito a misoginia, cujos exemplos são vistos principalmente na figura de Anna (Roberts) e nas situações que vive como uma estrela hollywoodiana.

Como argumenta Paloma Engelke em um excelente texto sobre o filme, uma mulher branca, rica e heterossexual dificilmente poderia ser considerada uma grande sofredora. Ela continua a ser privilegiada onde muitas mulheres não são. Ainda assim, dentro de um recorte muito branco e muito privilegiado, Anna enfrenta situações que não viveria se, em primeiro lugar, não fosse mulher. O fato de ser uma atriz famosa apenas multiplica o alcance dessas situações, que continuam extremamente palpáveis, independente de sua profissão ou do quão conhecida ela é. Em 1999, esses não eram temas debatidos com a frequência de hoje, e sobretudo não em comédias românticas. Mas é justamente por preferir causar algum incômodo quando seria mais fácil se limitar a narrar uma história água com açúcar, quando deliberadamente se propõe a ir mais longe que seus contemporâneos, que o filme verdadeiramente se torna extraordinário. Um Lugar Chamado Notting Hill ainda é uma história de amor, o que significa ser cativante, às vezes um pouco brega, mas nem por isso menos encantadora. Ele poderia ser um filme como outro qualquer e ainda assim seria um ótimo filme, embora muito provavelmente perdesse força com o passar dos anos, mas é justamente ao fazer diferente que ele garante que sua história se mantenha tão atual quanto fora vinte anos atrás. Vida longa.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!