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Um Match Surpresa: idealização e desencanto

Lançado em novembro de 2021, o filme Um Match Surpresa, com direção de Hernán Jiméne e roteiro de Rebecca Ewing e Danny Mackey, é uma típica comédia romântica cujo objetivo é exclusivamente tentar aquecer nossos corações.

Atenção: este texto contém spoilers!

Nele, Natalie Bauer (Nina Dobrev) é uma jornalista que escreve sobre seus encontros de aplicativos de relacionamentos, ou melhor, sobre os enormes fracassos desses encontros. Contudo, Natalie não está no mundo dos matches, deslizando incessantemente a tela do celular para esquerda e para direita, apenas para conseguir pautas para suas matérias: ela deseja encontrar um amor verdadeiro. E um dia, isso parece acontecer. A jornalista dá match com Josh Lin (Jimmy O. Yang), cujo perfil diz tratar-se de um rapaz que gosta de viajar, de natureza, é inteligente, lindo, atencioso. Ou seja, perfeito! A conversa flui de tal forma que Josh acaba por dizer que gostaria que Natalie passasse o Natal com ele. E ela decidi ir, de surpresa.

Acredito que com esse pequeno resumo já dê para notar que o filme vende a ideia de uma produção leve, divertida, romântica — como devem ser filmes do gênero. Porém, em meio a tudo isso, que de fato existe na história, ele traz à tona algumas problemáticas importantes de serem pensadas acerca da busca pelo amor verdadeiro.

Um Match Surpresa

A primeira delas é a eterna procura por um alguém perfeito. Quando abrimos um aplicativo, estamos em busca da pessoa mais maravilhosa que possa existir ali, óbvio. Quem seria o louco de distribuir corações e mais corações para pessoas que não nos atraem, que de cara deixam claro que gostam de coisas com as quais não suportaríamos conviver? Se os ideais políticos são distintos, “x” para a pessoa; se são semelhantes, “coração”. Também fazemos coisas como: o penteado da pessoa nos incomoda, passa para a esquerda; a pessoa tem gatos, passa para a direita. E por aí vamos até que os matches acontecem, a sensação de “Ai meu deus agora vai” nos invade, a conversa engata e o encontro é marcado.

Muitos de nós vão para encontros com uma lista de elementos que a pessoa tem de ter, ou não ter, senão ela não serve. No filme, Natalie tem, de fato, muitos encontros que não poderiam seguir adiante, com pessoas que mentiram sua idade, que eram casadas, que colocaram fotos que não correspondiam mais a como são no presente, pessoas que simplesmente sumiram sem nem se preocupar em como ela se sentiria. Mas ela também teve encontros nos quais as pessoas nem tiveram a chance de mostrar quem eram por motivos não tão absurdos, como ter hamsters ou sorrir demais.

Apesar de hoje existir uma grande desconstrução da absurda ideia do príncipe que vem num cavalo branco, te dá “oi” e vocês são felizes para sempre, parece ainda atravessar as nossas relações o desejo de encontrar alguém exatamente como se idealizou e que o amor nasça de maneira instantânea na primeira troca de olhares. “Geralmente imaginamos que o amor verdadeiro será intensamente prazeroso e romântico, cheio de amor e luz. Na verdade, o amor verdadeiro está totalmente relacionado a trabalho”, diz bell hooks em Tudo Sobre o Amor. Assim, se alguém não se encaixa na imagem perfeita que criamos da pessoa que queremos, sem tirar nem pôr, se os encontros não são exatamente como imaginamos, se algo demanda tempo para ser, de fato, conhecido, não há chance de um próximo encontro. Nós não costumamos querer enfrentar o “trabalho”, queremos só a parte do “amor e luz”.

Um Match Surpresa

Outra problemática a fazer parte de Um Match Surpresa é a presença no enredo de uma prática denominada catfishing — que nada mais é do que criar um perfil falso em aplicativos de relacionamentos, usando fotos de outras pessoas e coisas assim. Aqui, terei de contar que Josh, o cara perfeito, na verdade não é o homem que aparece nas fotos. Ao chegar à casa do rapaz, Natalie descobre que ele havia usado as imagens de outra pessoa, Tag (Darren Barnet), um amigo de sua infância. É importante dizer que, de acordo com uma matéria do jornal O Globo, de 2019, entre os anos de 2014 e 2018, o número de mulheres enganadas por perfis falsos em aplicativos (não apenas por catfishing, mas também por outros tipos de fraudes) aumentou cerca de 253% — imaginem hoje, com a pandemia, que fez com que ainda mais pessoas usassem aplicativos, quanto esse número não terá aumentado?

No filme, existem momentos em que a prática é apresentada como algo errado, mas a discussão não se aprofunda, o tema é tratado de maneira bem amena. Estamos diante de uma comédia romântica e sabemos que dificilmente algo será tratado com grande seriedade, mas na vida real, o catfishing é muito perigoso — a pessoa te engana, não mostra quem é e você vai até ela às cegas, sem imaginar que dará de cara com um alguém que não tem nem mesmo o rosto com quem você acreditou falar por dias. Acredito que por maior que seja a leveza de um filme, temáticas como essa precisam de alguma forma lançar luz sobre a real gravidade do que é apresentado. A romantização de práticas negativas é bastante danosa — e aqui indico O Golpista do Tinder, com direção de Felicity Morris, que apesar de mostrar outras práticas usadas para enganar pessoas em encontros de aplicativos, deixa claro o quanto podemos ser afetados quando alguém entra em nossa vida fingindo ser outrem.

Um Match Surpresa

O último ponto que quero destacar é o medo de não ser suficiente para alguém, de não ser “a pessoa perfeita” para ter a possibilidade de um próximo encontro. Esse medo, não raras vezes, nos leva a tentar ser quem não somos, dizer que gostamos de coisas que odiamos. Josh não usava suas próprias fotos no aplicativo porque acreditava que mulheres como Natalie nunca se interessariam por ele, não lhe dariam a chance de mostrar quem era além da aparência, que ele mesmo julgava não ser atraente. Mas ser uma pessoa diferente do que somos é difícil e uma hora, mesmo que você não queira, seu “eu verdadeiro” dá as caras. Citando bell hooks:

“A essência do amor verdadeiro é o reconhecimento mútuo — dois indivíduos que veem um ao outro como realmente são. Todos nós sabemos que a abordagem comum é conhecer alguém de quem gostamos e mostrar a melhor versão de nós, ou até mesmo um falso self, que acreditamos ser mais simpático para a pessoa que queremos atrair. Quando nosso verdadeiro self aparece em sua inteireza, quando o bom comportamento se torna demais para sustentarmos e as máscaras são retiradas, a decepção vem.”

A máscara de Josh cai quando Natalie acredita em seu convite e chega de surpresa para o Natal. E Natalie, por sua vez, se decepciona por não encontrar a pessoa perfeita, o modelo de cara com quem ela sonhava viver um grande amor.

Um Match Surpresa, como já mencionado, não lida com tanto cuidado com as questões apresentadas, ele faz o que comédias românticas fazem, nos desliga do mundo por alguns minutos e deixa o coração aquecido. Mas é interessante se dar conta que as problemáticas estão lá de alguma forma e se deixar pensar criticamente sobre elas, como tais situações se apresentam constantemente ao nosso redor, como elas nos afetam.


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