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Summerland: de onde vêm as histórias que contamos?

Durante os anos em que a Inglaterra esteve em guerra contra a Alemanha nazista, o condado de Kent, localizado no sudeste do país, serviu como abrigo para crianças refugiadas, muitas delas vindas da capital, Londres, onde bombardeios da Luftwaffe eram frequentes. Embora não tenha sido a única região afetada pela Blitz (a operação visava, sobretudo, centros militares e industriais, muitos dos quais estavam localizados em áreas secundárias do país), a capital inglesa sofreu algumas das perdas mais significativas durante os ataques, com cerca de 20 mil civis vitimados e a destruição completa ou parcial de um milhão de moradias.

Com familiares frequentemente envolvidos nos esforços de guerra (inclusive mulheres; somente na Grã-Bretanha, estima-se que mais de 400 mil mulheres tenham participado ativamente dos esforços de guerra, estivessem elas longe ou próximas do front), os lares temporários se tornaram a única opção para muitas crianças. Assim, elas eram enviadas ao seio de famílias voluntárias, que se disponibilizavam a recebê-las e criá-las, ocupando-se não apenas de suas necessidades mais básicas (alimentação, educação, segurança, moradia, etc.), mas permitindo-lhes ter uma infância — se não inteiramente alheia aos horrores do conflito, ao menos mais distante dele.

Filho de um piloto da Royal Air Force (RAF) e de uma mãe cujo trabalho não é exposto com clareza, Frank (Lucas Bond) é uma das muitas crianças levadas ao interior para viver com uma família voluntária, e sua doçura e timidez logo sugerem sua disposição e benevolência em se adaptar à situação. O mesmo, no entanto, não pode ser dito sobre Alice (Gemma Arterton), suposta voluntária designada para recebê-lo. Escritora há muito reclusa, Alice é uma mulher jovem e pouco amigável, mais conhecida pela falta de simpatia do que quaisquer outras características. As crianças a conhecem como bruxa; os adultos, não muito mais gentis, se perguntam se ela não seria uma espiã nazista; e Alice, que não parece se importar com uma coisa nem outra, permite ter sua imagem moldada pela opinião interiorana, uma máscara que a mantém longe das dinâmicas interpessoais comuns a uma comunidade tão pequena.

Atenção: este texto contém spoilers!

A chegada inesperada de Frank é o que promove uma ruptura para Alice, que deixa de ter sua imagem lida exclusivamente pelo olhar dos moradores locais para ganhar a perspectiva de uma criança desprovida de preconceitos. Aos poucos, ela revela novas facetas, até então mascaradas por um desejo intrínseco de preservação. Como mulher lésbica, Alice sabe quão hostil é o mundo que a cerca, um lugar — e uma época — em que a homossexualidade ainda era considerada crime e vista como desvio de caráter. É somente ao lado de Frank que Alice encontra uma oportunidade de ser ela mesma, e se a presença da criança é inicialmente vista como incômodo, ela logo se torna essencial.

Em busca de Summerland 

Muito do que motiva a aproximação de Alice e Frank é a pesquisa conduzida por Alice sobre Fata Morgana, fenômeno óptico/atmosférico que cria uma espécie de miragem vista acima da linha do horizonte. Seu nome é uma referência a Morgana, feiticeira das histórias do Rei Arthur, a quem popularmente era atribuída a formação das miragens. Mais do que a mera observação científica do fenômeno, no entanto, o estudo de Alice busca entender a relação da Fata Morgana com Summerland, a versão celta do paraíso judaico-cristão. “Todo mundo quer magia ou um deus ou algo assim”, é o que Alice diz a Frank enquanto também desmistifica a existência destes. Mas é também ao lado do menino, uma criança a quem recai tanto e tão cedo, que ela percebe que Summerland, embora cercada por misticismos, não está além da vida.

A busca de Alice, que passa a ser também a busca de Frank, se converte, portanto, em uma busca mútua por felicidade — Frank, na ausência dos pais e diante da perspectiva de que eles possam morrer a qualquer momento; Alice, como uma mulher que precisa enxergar a si mesma como alguém que pode (e deve) ser feliz. É também à medida que o relacionamento se desenvolve, e o cuidado passa a navegar em uma via de mão dupla, que Alice permite a si mesma abandonar as barreiras que a protegiam, em um processo que joga luz sobre o seu passado — e, consequentemente, projeta nuances sobre sua jornada — e ajuda a explicar o que a levou ao exílio e à solidão em primeiro lugar.

Summerland

O passado ao lado de Vera (Gugu Mbatha-Raw) e as consequências do término são, em tempo, revelados ao garoto. Mas se a existência de um grande amor no passado de Alice não surpreende, cabe a Frank a surpresa de fornecer um olhar delicado e amoroso sobre a história da tutora. “Você acharia estranho se uma mulher amasse outra?”, questiona Alice, ao que o garoto responde que não; que a maioria das pessoas vissem aquele tipo de amor como pecado, conforme afirma Alice, não faz sentido para ele — com efeito, um casamento sem amor lhe parece muito pior.

Frank toca Alice profundamente, mas não deixa de ser também tocado por ela. Quando seu pai falece em ação e seu principal temor se concretiza, o garoto foge para Londres em busca da mãe. Sozinho em uma cidade caótica que ainda sofria com ataques inimigos, é Alice quem resgata Frank, que chora com ele ao ver sua antiga casa em pedaços e pela perspectiva, não menos realista, de que sua mãe pudesse também estar morta. Não seria a primeira nem a última vez que ele seria salvo por Alice, literal ou figurativamente, e vice-versa, mas o momento compartilhado em Londres determina quão poderoso havia se tornado aquele laço. Em tempo, Frank e Alice encontram o que procuram, a Summerland encantadora que cria castelos dourados no ar. Mas, no fim das contas, Summerland apenas concretiza a bela amizade que se constrói entre eles; um lugar seguro a que ambos podem chamar de lar em meio aos escombros do mundo.

Amor. Magia. Esperança

Embora seja a relação de Alice e Frank o grande fio condutor e potência narrativa de Summerland, o roteiro de Jessica Swale (também responsável pela direção do longa) não abandona o passado de Alice uma vez que ela parece fazer as pazes com ele, recuperando, em certa medida, o período vivido ao lado de Vera. As cenas, mais curtas do que sugere o material de divulgação, desvelam momentos chave do relacionamento, como o primeiro encontro, a evolução para o romance e seu inevitável desfecho, motivado, principalmente, pela discrepância de expectativas das duas mulheres: Vera e Alice seguem caminhos separados não porque deixam de se amar, não por uma grande tragédia, mas porque entendem que almejam da vida coisas muito diferentes. Não deixa de ser um término traumático; para Alice, sobretudo, o amor romântico parece ser deixado em modo de espera. Summerland, no entanto, acredita que um grande amor sempre pode encontrar seu caminho de volta, ainda que de forma inesperada. É desnecessário dizer que Vera e Alice encontram uma maneira de voltar aos braços uma da outra — e esse talvez fosse um desfecho um pouco pitoresco demais para qualquer história, mas não para uma em que mágica, amor e esperança são fatores centrais.

Summerland

De fato, Summerland não busca reinventar um gênero: é um filme que cativa muito mais pela doçura e sensibilidade com que trata seus temas, pelas paisagens bucólicas e personagens adoráveis, do que por um roteiro particularmente inovador. Em entrevista ao Collider, Swale conta que fazer um filme sobre a realidade política do mundo ou sobre questões cotidianas não lhe interessava particularmente; para ela, o cinema é uma experiência de escape, em que o espectador pode ir além das experiências banais do dia a dia, e Summerland não poderia ser diferente. A mágica é o que realmente importa e, nesse sentido, é compreensível que o filme não se aprofunde em questões mais complexas, ainda que o roteiro perpasse algumas delas.

Talvez por isso seja preciso ir mais longe para entendê-lo como sendo mais do que um filme meramente encantador (o que ele é), mas uma obra que é, ao seu próprio modo, também revolucionária — revolução esta que pode passar despercebida aos olhares menos atentos (que as críticas negativas tenham vindo, em sua maioria, de homens, não surpreende). Mais do que centralizar a trajetória de uma mulher lésbica durante a primeira metade do século XX ou celebrar o amor entre duas mulheres, assumindo todos os clichês de um gênero tomado por casais heterossexuais, Summerland é também um exemplo de representatividade nos bastidores: da direção à produção, dos figurinos até a fotografia, todas as áreas de produção do longa contam com pelo menos uma mulher, a maioria em posições de liderança e muitas à frente de equipes inteiras formadas por outras mulheres ou, ainda, mistas. É um caso extraordinário, que demonstra, na prática, uma estrutura mais discutida do que de fato executada.

Segundo dados da Celluloid Ceiling, pesquisa que desde 1998 analisa a representação feminina nos bastidores da indústria cinematográfica, em 2020, a porcentagem de mulheres diretoras alcançou recordes históricos, mas em outras funções os números permaneceram praticamente os mesmos. Somente 9% das produções empregaram 10 ou mais mulheres nas funções de direção, roteiro, produção, produção executiva, edição e fotografia. A grande maioria das obras (67%) empregaram menos de quatro mulheres nas funções citadas — às vezes, nenhuma.

Na maior premiação do cinema estadunidense, o Oscar, a situação não foi muito melhor. Entre os 186 indicados de 2020 nas principais categorias, excluindo categorias de atuação, apenas 56 mulheres foram indicadas contra 130 homens (30% versus 70%, respectivamente) — um aumento de 5% para as mulheres em relação ao ano anterior. A mesma premiação, em seus mais de 90 anos de história, continua a ter apenas uma mulher como vencedora na categoria de Melhor Direção: Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror, em 2010. Nos anos que se seguiram, apenas outra mulher foi indicada na categoria: Greta Gerwig, em 2018, por Lady Bird. Até a finalização deste texto, nunca uma mulher não-branca foi indicada à categoria de Melhor Direção. Também em 2018, Rachel Morrison tornou-se a primeira mulher indicada na categoria de Melhor Fotografia por Mudbound (Dee Rees, diretora do filme e mulher negra, contudo, não foi indicada).

Os dados não surpreendem, mas fornecem um importante panorama do que significa ser mulher na indústria cultural. Se ainda é necessário discutir a qualidade da representação feminina frente às câmeras, é talvez ainda mais urgente discutir quem são as pessoas por trás delas e quantas delas são mulheres. Summerland não é um filme ambicioso, tampouco deixa de cometer deslizes, mas amplia uma importante discussão sem perder a ternura e a delicadeza, sem deixar de acreditar na magia cotidiana, no amor e na gentileza humanas, de ter esperança em tempos sombrios e acreditar em finais felizes. Como afirma Frank, “todas as histórias vêm de algum lugar”, e é no processo de desvendá-las que a mágica realmente acontece.