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Bridgerton, primeira temporada: (quase) tudo o que a gente precisava para desopilar o sistema

É uma verdade universalmente conhecida que uma jovem solteira da Inglaterra regencial deve estar em busca de um marido. De Jane Austen a Julia Quinn, essa premissa parece evidente. Se não se aplica necessariamente a todas as jovens, certamente se aplica às suas mães — e não sem motivo. Naquela sociedade patriarcal, o único destino respeitável para mulheres de determinada classe social era o casamento. Esse é o tipo de pressão enfrentado por Daphne (Phoebe Dynevor), a mais velha entre as filhas mulheres da família Bridgerton e primeira de toda a prole a ter sua história de amor retratada na primeira temporada da série Bridgerton.

Atenção: este texto contém spoilers.

Diferente da Sra. Bennet, possivelmente por conta da posição financeira e social confortável da família e da presença de herdeiros homens, a matriarca Bridgerton está mais preocupada com a felicidade da filha do que com seu status. O que Violet (interpretada por Ruth Gemmell) realmente quer é que Daphne conheça sua outra metade da laranja e se case por amor. É claro que essa diferença de representação tem muito a ver com a época em que os livros foram escritos. Ainda que sua obra seja muito lida na atualidade como histórias de amor, Jane Austen escreveu sobre a sociedade em que vivia com um olhar crítico, aguçado e irônico de uma legítima crítica social. Julia Quinn, ao contrário, ainda que se apoie aqui e ali em bandeiras e pautas dos nossos tempos, é uma escritora de histórias de amor. Histórias de amor leves, gostosas, padronizadas e — em alguns momentos — problemáticas.

A temporada da série televisiva é uma adaptação de O Duque e Eu, primeiro dos oito volumes que compõem série literária Os Bridgertons, e conta com a produção executiva de ninguém menos que Shonda Rhimes. A trama gira em torno da apresentação de Daphne à sociedade como uma jovem solteira disponível para casamento. Logo no começo da temporada, a moça é apontada pela Rainha Charlotte (Golda Rosheuvel) como a joia da temporada, e a expectativa é que essa sentença signifique um fornecimento amplo de pretendentes para que ela escolha seu futuro marido. Essa expectativa, entretanto, desmorona quando Marina Thompson (Ruby Barker) entra em cena e rouba a posição de solteira mais cobiçada. A situação se agrava ainda mais pela postura superprotetora de Anthony (Jonathan Bailey), Visconde e irmão mais velho de Daphne, que espanta os poucos candidatos restantes.

É com essa proposta que a série começa, mas as coisas decolam mesmo quando Simon Basset, o Duque de Hastings (Regé-Jean Page), entra em cena e atrai a atenção do enxame de jovens solteiras e mães de jovens solteiras desesperadas para fisgá-lo. O problema é que o Duque não tem nenhuma intenção de se casar. Surge aí um plano: Simon e Daphne combinam um falso flerte para que ele deixe de ser alvo de atenção e ela aumente a sua cotação no mercado matrimonial. O desenrolar dessa trama não tem nada de surpreendente — depois de algumas idas e vindas, os dois finalmente admitem que estão realmente apaixonados um pelo outro e se casam (não necessariamente nessa ordem).

No meio disso tudo, temos ainda o mistério de Lady Whistledown (sem rosto na maior parte da temporada, porém com a voz de ninguém menos do que Julie Andrews), pseudônimo adotado por uma comentarista social anônima autopublicada, que serve como narradora e como impulsionadora da trama em alguns momentos. Na série literária, a identidade da personagem só é revelada no quarto livro, mas a série da Netflix adiantou esse evento para o episódio final já dessa primeira temporada, talvez por medo de que a série televisiva fosse cancelada com essa ponta solta.

Imagem: Família Bridgerton
Hyacinth, Collin, Daphne, Gregory e Benedict (abaixo, da esquerda para a direita), Violet e Anthony (no meio), e Eloise (no topo).

De modo geral, os livros de Os Bridgertons apresentam histórias autônomas, ainda que entrelaçadas. Cada volume da obra é protagonizado por um dos filhos e filhas da família. A primeira temporada de Bridgerton é, em geral, bastante fiel ao primeiro volume, para o bem e para o mal. Uma subversão muito positiva, entretanto, é a diversidade étnico-racial dos atores, que toma o lugar do caminho tradicional e “neutro” de defender uma suposta “verossimilhança histórica” que pinta a aristocracia inglesa moderna como exclusivamente branca. A própria Rainha Charlotte da produção é negra, aproximando-se da teoria histórica de que a Rainha Charlotte original teria de fato sido descendente direta de uma mulher negra. Esse gancho é aproveitado para explicar a diversidade da corte de Bridgerton.

Pessoalmente, não considero que seria necessário dar nenhuma explicação a um fenômeno que parece tão normalizado dentro do universo fictício da trama, mas a série escolheu trazer essa explicação em um diálogo entre Lady Danbury (Adjoa Andoh) e Simon. A explicação é tanto simples quanto simplista: amor. O rei teria se apaixonado por uma mulher negra, se casado com ela e assim, como um passe de mágica, todo o racismo acabou. Ou quase todo, porque a pressão para fazer jus à nova posição social é usada como justificativa para o comportamento negligente e hostil do antigo Duque de Hastings com relação ao filho. Por sinal, é essa “história de origem” de Simon que determina todo o comportamento do personagem na trama. O Duque perdeu a mãe no parto, foi criado por empregados e completamente rejeitado pelo pai por ter dificuldade de fala. É Lady Danbury, melhor amiga da falecida mãe, que resgata o menino de uma situação de negligência e o cria para ser o adulto rabugento e traumatizado que aprendemos a amar.

Esse histórico familiar conturbado é o oposto da relação familiar fofinha dos Bridgerton. Violet e o falecido Visconde se casaram por amor e cercaram de amor a vida de todos os filhos, e é isso que ela deseja para todos eles. Violet é a personalização da idealização patriarcal de que casamento e filhos são o único caminho possível para uma vida feliz e plena. É com a melhor das intenções que ela pressiona o primogênito a abandonar a vida de libertinagem e formar uma família. É com a mesma boa intenção que ela questiona a decisão de Daphne de se casar quando a jovem se mostra descontente com o rumo dos acontecimentos.

Aviso de gatilho: o parágrafo abaixo aborda o tema do estupro retratado na série.

Com planos de fundo tão diferentes, não é de se estranhar que o começo do relacionamento de Daphne e Simon tivesse seus contratempos. A cena de estupro, entretanto, passa de qualquer limite do que poderia ser considerado um “contratempo”. A cena está no livro, apesar de ter sofrido algumas modificações, e a escolha de ter mantido essa parte da trama na adaptação é, no mínimo, questionável. O ocorrido se desenvolve e a série segue em frente sem questionar, como se não tivesse sido nada mais grave que uma pequena traição de confiança, e não uma violência sexual em toda sua definição. Essa situação joga luz sobre quão precária ainda é a conversa sobre consentimento e masculinidade. Não é possível desatrelar o estupro da questão de gênero — só no Brasil, conforme estatísticas do Anuário de Segurança Pública de 2019, 81,8% das vítimas de violência sexual são mulheres. Essa discussão, entretanto, com frequência dificulta que a violência seja reconhecida quando foge a esses moldes. O gênero feminino é tão marcado pela cultura do estupro como o gênero estuprável que se torna até difícil conceber que homens adultos também poderiam ocupar essa posição. É incompatível com a própria ideia de masculinidade.

Lady Danbury e Simon
Lady Danbury e Simon

Para além dessa situação de violência, o tema da sexualidade é trazido à pauta em outros dois momentos: na incursão de Benedict (Luke Thompson), segundo Bridgerton mais velho, pelo mundo dos artistas sexualmente livres e fluidos, e na ignorância completa das mulheres sobre qualquer coisa relacionada a sexo, prazer e ao próprio corpo. No que diz respeito a Benedict, a situação beira o queerbaiting e nos deixa esperançosos com a possibilidade de que nem todos os Bridgertons sejam heterossexuais. Apesar disso, essa trama nunca é explorada nos livros e, se a série seguir com sua fidelidade à obra original, também não será na adaptação audiovisual.

Já o segundo ponto, relativo à sexualidade feminina, aparece em pelo menos dois momentos durante a temporada. Uma vez é em um diálogo altamente impróprio entre Daphne e Simon durante a falsa corte, na qual ela pergunta a ele diretamente sobre o que acontece na lua de mel e ele a ensina a se masturbar — situação que não parece nada plausível para o contexto da época, mas felizmente fidelidade histórica não é o que estamos pedindo de Bridgerton. O outro momento é quando Eloise (Claudia Jessie), Bridgerton número 5, entra em uma busca determinada pelo esclarecimento do mecanismo pelo qual os bebês são feitos. Essas situações representam diretamente os dois elementos do ato sexual — prazer e reprodução —, e a forma como mulheres foram, e com frequência ainda são, mantidas na ignorância com relação a ambos.

Eloise é a única outra filha Bridgerton que ganha um pouco de destaque. Francesca, respectivamente a terceira filha mulher e sexta de todos, está viajando durante quase toda a temporada, e Hyacinth (Florence Hunt), a única outra menina, é ainda criança. Ao contrário de Daphne, que parece aceitar e abraçar as expectativas sociais de matrimônio, Eloise tem outros sonhos. Inteligente e curiosa, o que ela queria mesmo é estudar — mas o casamento da irmã faz com que a sua vez de ter o mesmo destino pareça assustadoramente próxima. Na série literária, a história de Eloise ocupa o quinto volume, resta saber se a série vai seguir a ordem dos livros e conceder uma temporada a cada um dos irmãos, ou se seguirá por caminhos diferentes.

Tudo indica que a sequência dos livros será mantida na série. A segunda temporada, já confirmada, vai girar em torno de Anthony, o primogênito. Na primeira temporada acompanhamos o romance do Visconde com Siena Rosso (Sabrina Bartlett), cantora de ópera. Ao final da temporada, Siena finalmente termina o relacionamento clandestino, após aceitar que o amado jamais a assumiria publicamente, uma vez que ela não cumpre os requisitos sociais para se tornar sua esposa. Na próxima temporada, o par será outro, e resta ver se o novo casal vai conquistar o público tanto quanto Daphne e seu novo marido.

Em linhas gerais, Bridgerton cumpre o prometido com honras. Vemos em cena ótimos atores, figurinos maravilhosos, uma fotografia linda e uma trilha sonora surpreendente com diversos hits pop contemporâneos travestidos de música instrumental, o que contribui para a atmosfera jovem e atual da série como um todo. É uma produção que não faz feio junto aos títulos da Shondaland que já conhecemos e amamos, o que se comprova pelo fato de ter se tornado em cerca de um mês a série mais assistida da história da Netflix. A quem ainda não assistiu, fica a recomendação de programa de fim de semana para distrair a cabeça. A nós que já maratonamos todos os episódios disponíveis, resta esperar a próxima temporada.

Banner Bridgerton - Temporada 1, Estados Unidos 2020, 4 estrelas

1 comentário

  1. Eu gostei muito da série, e logo depois, peguei o primeiro livro pra ler. Confesso que gostei muito mais da versão da Shonda, porque os livros tem alguns furos super problemáticos. A cena do estupro, por exemplo, com certeza deveria ter sido retirada dali, porque a Shonda conseguiu corrigir tudo, menos esse momento mega desnecessário.

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